publicado dia 12 de fevereiro de 2020
Milton Santos: por uma geografia cidadã e ativa
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 12 de fevereiro de 2020
Reportagem: Cecília Garcia
📄Resumo: Conheça o geógrafo baiano Milton Santos (1926-2001), único do Brasil a ganhar o prêmio Vaultrin Lud – um equivalente ao Nobel na geografia – e pioneiro em pensar o espaço geográfico a partir das dinâmicas ativas do território e das desigualdades produzidas nele.
A geógrafa Amanda de Lima Moraes têm dedicado sua pesquisa aos territórios negros de São Paulo: tanto em sua tese de graduação quanto de mestrado, a pesquisadora se debruça sobre como se deu o embranquecimento de regiões centrais como a Sé, a Liberdade e o Bixiga, e também como as populações negras têm resistido à esse apagamento espacial.
Leia + Lélia Gonzales Defensora do feminismo afrolatinoamericano e da universidade acessível.
No decorrer da pesquisa, a geógrafa esbarrou em um dos mais ricos conceitos espaciais propostos por Milton Santos: as rugosidades, que são alterações deixadas pela presença humana ao longo do tempos nos espaços, os resquícios que carregam história, cultura e memória.
Embora territórios como o Largo do Rosário, objeto de estudo da geógrafa, e outros não existam mais, suas rugosidades são um atestado do quanto o território é fruto das relações sociais, econômicas e raciais travadas nele.
Quem postulou rugosidades, como outros inúmeros conceitos-chave na geografia brasileira, foi Milton Santos. O geógrafo baiano, único do Brasil a ganhar o prêmio Vaultrin Lud – um equivalente ao Nobel na geografia – Milton foi pioneiro em pensar o espaço geográfico a partir das dinâmicas ativas do território e das desigualdades produzidas nele.
Conheça mais sobre o trabalho da geógrafa Amanda de Lima Moraes no trabalho Memórias da População Negra de São Paulo: Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1725-1904)
“Milton promoveu uma revolução epistemológica na geografia. Até a década de 1970, o estudo geográfico era muito vinculado ao planejamento estatal, ao IBGE. Já o Milton falava de um produção de geografia moral, ativa, preocupada politicamente em mudar a sociedade”, explica Thiago Adriano Machado, doutor em geografia pela UFF (Universidade Federal Fluminense).
O geógrafo também é referencial nos estudos de urbanização e cidadania atravessados pela questão racial, como lembra Amanda, que também é professora da rede de ensino público em São Paulo.
“Milton é um intelectual de pensamento consolidado e vasto. É importante sua existência enquanto intelectual negro, muito para minha trajetória enquanto pesquisadora negra, porque parto da perspectiva que as relações raciais são fundamentais para compreender o mundo e sobretudo como nosso país foi estruturado”.
Concepções miltonianas de território
Quando se fala da produção literária de Milton Santos, como a Natureza do Espaço (1996) e A Urbanização Brasileira (1993), é preciso pontuar o quanto Milton trabalhava conceitos. Sua epistemologia era um levante contra terminologias e ideias importadas de uma geografia eurocêntrica. Ele sempre esteve interessado na construção de um conjunto de conceitos que atendesse a geografia enquanto ativa na transformação social:
Um de seus conceitos-chave – caro à concepção de educação integral e cidade educadora – é o território. O conceito, na geografia, esteve tradicionalmente ligado à ideia de Estado-nação.
Quando essa definição entra em crise com a globalização – processo agudamente estudado por Milton – o geógrafo estabelece que esse conceito não dá mais conta e que o território pode ser definido como um espaço de produção de relações, e também sujeito a elas.
Diversos grupos sociais – movimentos sociais, empresas, sujeitos variados – produzem dinâmicas territoriais, se apropriando do espaço e estabelecendo relações de poder.
É o território usado, conceito que Thiago define: “É o território não só mais como recurso; Milton passa a compreender o território como um híbrido de materialidade e imaterialidade. Deve-se estudar o território usado, como ele está usado, porque isso permite que se encontre um conceito geográfico para estudar como empresas, lógicas globais e movimentos usam e constroem o território”.
O conceito miltoniano de território encaixa-se na pesquisa desenvolvida por Amanda sobre os territórios negros de São Paulo. É importante entender quem os construiu, como se deram os processos de apagamento e suas disputas.
“A espacialidade e vivência negra incomodavam a elite branca do centro de São Paulo. Entra em voga um projeto de urbanização racista que tem teor pretenso de modernização mas que no fim traz o pensamento racista do período. É por isso que a Igreja do São Rosário dos Homens Pretos é demolida e bairros como o Bixiga ou a Liberdade não são lembrados como territórios negros”, adiciona a geógrafa.
Por uma geografia cidadã e ativa
Compreender os territórios como espaços em disputa também lança luz a outros conceitos caros a Milton Santos. Seu estudo urbano olha para a construção de cidades em um país cuja noção de cidadania adveio da violência, escravidão e apagamentos históricos:
“Milton criou o conceito de cidadania mutilada: não há uma integralidade na cidadania brasileira, por conta de um processo político e econômico que não permite construir uma lógica de direitos, mas que é subvertida por uma lógica econômica e consumista”, explana Thiago.
Thiago relembra quão importante é a discussão que Milton Santos faz da ditadura militar, período em que o autoritarismo muitas vezes é relativizado e justificado com base na eficiência econômica: “Se faz um milagre econômico na ditadura militar, mas o que foi esse milagre econômico em termos de cidadania? Nós tivemos os trabalhadores superexplorados, ou seja, ganhando menos. Uma taxa de exploração maior, e uma classe média remediada. Quando acontece o processo de redemocratização, uma parcela da sociedade não está preocupada com uma generalização de direitos, e sim uma manutenção de privilégios”.
Amanda interliga este conceito ao questionamento de quem de fato tem direito à cidade, ou seja, quem é considerado cidadão: “O pensamento de Milton é muito atual. Quando ele fala de perspectiva cidadã, quem é considerado cidadão hoje é quem consome. Os direitos estão relacionados a direitos à partir do capital, e não de uma cidadania que efetive direitos sociais”.
Quando Milton em obras como Espaço do Cidadão (1987) defende o uso do território voltado a uma lógica cidadã redistributiva, ele pede por uma reconstrução de um modelo cívico calcado na escravidão e na exploração, como explana Thiago: “É preciso refazer o modelo cívico brasileiro, sair da lógica de recurso e pensar pela lógica de valor cultural, dos seus sujeitos e atores”.
Os sujeitos para Milton Santos
E quem são esses sujeitos, capazes de promover uma outra lógica territorial, um outro modelo cívico para o Brasil? Na utopia de Milton Santos, um pensador que Thiago diz ser um dos raros a pensar a geografia e a história como instrumentos do futuro, são as minorias: sujeitos negros, sujeitos migrantes, sujeitos historicamente marginalizados e atores fundamentais em processos democráticos brasileiros.
Homens lentos: Definição pouco trabalhada na geografia, o homem lento pode ser definido como carregado de humanidade e subjetividade, gerador de espontaneidade no cotidiano do lugar. Saiba mais no artigo O “homem dos riscos” e o “homem lento” e a teorização sobre o risco epidemiológico em tempos de globalização, de Gil Sevalho e no trabalho O Uso do Território pelos Homens Lentos, de Ana Luisa Miranda.
“Para o Milton, o futuro como projeto será portado pelos homens lentos, os homens dos espaços opacos, os negros e os migrantes, em um período popular e futuro da história realizado pela emancipação do que outros autores vão chamar dos oprimidos”.
O pensamento geográfico de Milton e sua disposição de olhar para a geografia como um processo ativo, responsável por esse futuro possível e indissociável da questão racial, foi uma das referências para a criação do NEPEN (Núcleo de Estudantes e Pesquisadoras Negras do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo), do qual Amanda faz parte:
“O NEPEN surge no final de 2016, de uma inquietação de colegas da geografia sobre questões raciais. A gente sentia tratar as disciplinas a partir de uma epistemologia branca, eurocêntrica, uma leitura de mundo que não nos contemplava. É preciso olhar a questão racial do espaço e da urbanização”, relata a geógrafa. Milton Santos e Lélia Gonzalez são pilares das discussões.
Pensar racionalmente a geografia como fez Milton Santos tem feito parte do trabalho de Amanda na sua tese de mestrado: ela está olhando como as populações negras tomam as ruas da cidade e se apropriam dos espaços urbanos e das rugosidades, tão importantes no trabalho de Milton Santos, para construir novas narrativas urbanas.
“Pesquiso as resistências da população negra, trazendo a dimensão do uso e apropriação das ruas como movimento de resistência; é preciso trazer esse debate para todas as instâncias, a gente precisa de mais educadores negros, de teorias, de outras epistemologias que não fiquem centradas nesse olhar que foi construído historicamente”, conclui Amanda.