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publicado dia 7 de novembro de 2018

“O cordel cumpriu uma valorosa função social. Mais que função, missão”

Reportagem:

Em setembro deste ano, uma boa notícia foi comemorada: o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconhecia, enfim, a literatura de cordel como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. Um reconhecimento bem-vindo, mas extremamente tardio.

“O cordel sempre foi um patrimônio histórico, cultural, imaterial, material, afetivo, linguístico do povo brasileiro”, resume Marco Haurélio, idealizador da Antologia do Cordel Brasileiro, a primeira publicação do gênero a reunir representantes de todas as gerações da poesia popular brasileira.

Em entrevista ao Portal Aprendiz, o escritor, professor e pesquisador da literatura de cordel e do folclore brasileiro, refaz a trajetória do gênero no Brasil e explica como esta literatura tonou-se a “cartilha do sertanejo” ao representar o místico nordestino, satirizar momentos ou personagens históricos ou ainda ao embalar “a saudade dos que partem para o reino do Vai-Não-Torna, acalentando o sonho de muitos brasileiros”. Confira:

Portal Aprendiz: Em primeiro lugar, poderia explicar as origens da literatura de cordel? Como esta expressão genuinamente nacional surgiu e quais vozes exprime?

Marco Haurélio: As origens do cordel são por demais complexas e não há um consenso a respeito de sua origem. Muitos se prendem a aspectos formais quando tratam da questão das origens, e acabam remetendo a Portugal e a outros países que se valeram dos tipos móveis de Gutemberg para registrar ou recriar tradições que remontavam ao Medievo europeu. No Brasil, apenas com a chegada da família real portuguesa, em 1808, estabelece-se o primeiro “parque gráfico”. No século XIX, no Rio de Janeiro, a Livraria Quaresma publicava folhetos portugueses e os poemas do potiguar João Sant´Ana de Maria, o Santaninha. Eram poemas de cunho histórico ou circunstancial, para consumo imediato. Um trabalho jornalístico, eu diria.

Com Leandro Gomes de Barros (1865-1918) é que o cordel ganhará, de fato, corpo e, principalmente, alma. Leandro sabia, como poucos, folhear o grande livro do Inconsciente, de onde extraía enredos mirabolantes que iam do Oriente longínquo à gesta de Carlos Magno. Não se esqueceu do sertão nordestino, com seus místicos e cangaceiros e nem desprezou o momento histórico, sendo responsável por sátiras compostas com a acidez dos grandes mestres. Sabia resumir numa história todo o sentimento de uma coletividade. Fez com que a manifestação que ele reinventou, e que muito depois seria chamada de cordel, se identificasse para sempre ao Nordeste e ao país que teve a honra de vê-lo nascer.

Portal Aprendiz: Quais são as temáticas mais comuns dos cordéis? Como se relacionam com a narrativa épica?

MH: O cordel é filho da canção de gesta e neto da epopeia. Tem ligações anímicas com o Épico de Gilgamesh, o primeiro livro da humanidade. Pouca gente se dá conta, mas no Gilgamesh há a descrição de uma vaquejada, quando o herói da história sai em busca do touro celeste enviado à terra por Inanna/Ishtar. As representações iconográficas da luta com o touro são muito semelhantes às capas de alguns cordéis clássicos do ciclo do boi, caso do Valente Sertanejo Zé Garcia, de João Melchíades.

As canções de gesta são um conjunto de poemas épicos surgidos no raiar da literatura francesa, entre os séculos XI e XII.

Por outro lado, a gesta carolíngia rendeu títulos clássicos, como A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás e A Prisão de Oliveiros, ambos de Leandro, cordéis que se baseiam na História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, mas que tem como ancestral distante a canção de gesta francesa Fierabras (Ferrabrás), composta, possivelmente, no século XIII. Outro tema de grande aceitação popular é o da esposa caluniada e redimida, que tem a ver com lenda de Crescência, e que, no Brasil e em Portugal, inspirou a História da Imperatriz Porcina.

Portal Aprendiz: Sabendo que determinada expressão artística diz muito de seu povo e região, como o território está presente na literatura de cordel?

MH: O cordel cumpriu, por muito tempo, uma valorosa função social. Mais que função, missão. Forneceu temas para cantadores de feira, alguns deles cegos, empregou um grande número de pessoas, desde a produção gráfica até a sua comercialização e foi, como se dizia, a cartilha do sertanejo. Além de seu valor artístico hoje inegável e de sua inserção na cena cultural brasileira.

Apesar de ser identificado ao Nordeste, foi levado na mala do migrante para a Amazônia da época da febre da borracha e para São Paulo, nos estertores do ciclo do café e início na industrialização.

Apesar de ser identificado ao Nordeste, foi levado na mala do migrante para a Amazônia da época da febre da borracha e para São Paulo, nos estertores do ciclo do café e início na industrialização. Dramas de migrantes podem ser lidos em romance como Mariquinha e José de Sousa Leão, de João Ferreira de Lima, e Um Drama nas Selvas do Amazonas, de Paulo Nunes Batista. Leandro foi mestre da sátira, com seu personagem Cancão de Fogo, síntese de muitos anti-heróis e retrato idealizado do sertanejo safo que não se deixa dobrar ante o poder estabelecido, seja ele religioso ou secular.

Portal Aprendiz: E qual a relevância do reconhecimento da literatura de cordel como patrimônio cultural imaterial do Brasil?

MH: Vou repetir aqui o que disse numa postagem numa rede social:

“O cordel sempre foi um patrimônio histórico, cultural, imaterial, material, afetivo, linguístico do povo brasileiro. Ontem, no Rio de Janeiro, veio o reconhecimento institucional ‘quae sera tamen’.

São muitas vozes que, desde sempre, se empenharam para que tal chancela viesse. Participei de muitas reuniões, acompanhei o trabalho competente da professora Rosilene Melo e sua equipe, o pedido feito pela ABLC, com o aval dos poetas presentes a um encontro em Brasília em 2010, as discussões ora ásperas, ora amenas acerca de questões conceituais e outras menos importantes.

Falo de Rosilene e dos membros de sua equipe que viajaram o Brasil, colhendo depoimentos, registrando histórias, pesquisando acervos e dando voz aos protagonistas do gênero poético que é, a um só tempo, letra e voz.

E agora? O que virá? Sinceramente, não sei, mas espero que não cruzemos os braços, aceitando, passivamente, a tutela do estado, ou o afago de uma mão paternal. Lutemos por políticas públicas, transparências nos editais e a inclusão do cordel na educação, sem a caricatura e o falso pitoresco nos quais alguns desavisados o embalam para consumo.

Resta torcer para que, diante do horizonte turvo que se anuncia, o cordel não arrefeça e, como literatura de resistência, continue a sua missão de levar a poesia para além dos convescotes literários

Que ele seja sempre a “literatura do coração” preconizada pelo saudoso vate Manuel Caboclo, a poesia que, há várias gerações, embala os serões das noites sertanejas e ameniza a saudade dos que partem para o reino do Vai-Não-Torna, acalentando o sonho de muitos brasileiros. Sigamos esperançosos, mas, também, vigilantes”.

Portal Aprendiz: Como aproximar esse gênero literário, ao mesmo tempo tão popular e sofisticado, de crianças e jovens? Qual o papel da escola nesta empreitada?

MH: O papel da escola tem sido fundamental. Hoje, um sem-número de poetas, de vários estados, levam o cordel às escolas. Lógico que há o risco de, por conta das facilidades de hoje, no tocante aos meios de impressão, muita coisa de má qualidade ser “vendida” como cordel. De qualquer forma, creio que o saldo é positivo.

Portal Aprendiz: Como levar o cordel para o espaço público, isto é, fazê-lo habitar as cidades como todo seu potencial educativo?

MH: Isso já acontece em São Paulo, Rio, Salvador, Fortaleza, Recife e muitas outras cidades. Ocorre é que muitas iniciativas ficam invisibilizadas. Em Natal, por exemplo, há a Estação do Cordel, que promove ciclos de debates, palestras, recitais, shows, em Fortaleza, além de um espaço privilegiado na Bienal local, o cordel conta, há três anos, com uma feira de abrangência nacional. Em São Paulo, na Bienal do Livro, por duas edições tivemos o Espaço do Cordel e do Repente. Este ano, realizamos o Encontro com o Cordel no SESC 24 de Maio, com artistas de várias searas e com uma feira que contou com dezenas de expositores. Resta torcer para que, diante do horizonte turvo que se anuncia, o cordel não arrefeça e, como literatura de resistência, continue a sua missão de levar a poesia para além dos convescotes literários. Quem viver lerá.

pessoas se reúnem em estação do cordel
Estação do Cordel, em Natal (RN) / Foto: facebook
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