publicado dia 3 de dezembro de 2021
Como organizações da sociedade civil se organizaram durante a pandemia?
Reportagem: gabryellagarcia
publicado dia 3 de dezembro de 2021
Reportagem: gabryellagarcia
A pandemia do Coronavírus, que abalou o mundo todo, paralisou grande parte das atividades, ao menos por algum período, e vem alterando rotinas atingiu ainda mais fortemente as populações vulneráveis. Nesse contexto, organizações da sociedade civil que atuam especialmente com crianças e adolescentes no contra turno escolar apontam dois graves problemas: a insegurança alimentar e a falta de estrutura que permita acesso à internet.
Felipe Pitaro, gerente da Fundação Gol de Letra no Rio de Janeiro, apontou que a pandemia acabou ampliando a pobreza. “Fizemos um mapeamento das demandas locais em relação às necessidades das famílias e a insegurança alimentar foi um ponto muito sensível”. Conta que fizeram uma campanha de arrecadação e distribuição de cestas básicas: foram para mais de quatro mil famílias no Rio e três mil em São Paulo. Houve também parcerias com organizações no Ceará e Maranhão com o mesmo objetivo.
Outro problema recorrente foi a falta de estrutura e equipamentos para o desenvolvimento não apenas de atividades escolares, mas também para a comunicação com organizações da sociedade civil, conta Maria Marlene da Silva, coordenadora do Centro de Educação Popular (Cedep), de Florianópolis.
“São famílias muito vulneráveis e a condição é um problema. A falta de estrutura e equipamento prejudicou até mesmo a comunicação. São muitas famílias sem internet em casa, ou então com apenas um celular para cinco crianças que precisam realizar as atividades escolares. Então, imagine as atividades do contra turno!”.
A coordenadora revela, no entanto, que a preocupação foi maior com as questões relativas à rotina escolar. Por isso, a organização iniciou um processo de escuta, fazendo o cadastro social de toda a comunidade, não apenas dos matriculados. “Durante a pandemia ficamos apenas 15 dias fechados como instituição. Depois, 50% dos funcionários estavam presentes e acolhendo essas famílias para escuta e preenchimento do cadastro”. Foram mais de mil famílias cadastradas; e então, passaram a buscar recursos para elas, numa outra frente de acolhimento.
À medida que a pandemia se agravava e forçava o fechamento de diversos estabelecimentos e organizações, novos métodos e rotinas também precisaram ser criados. Ana Angélica Motta, que é diretora da Estação Conhecimento de Serra, afirmou que a primeira atitude foi uma conversa com as famílias.
“Depois pensamos em como trabalhar com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, principalmente a questão da alimentação. Entramos em contato com nossos parceiros para a captação de recursos para a criação de uma rede colaborativa e fazer com que todos entendessem que, no primeiro momento, o essencial era a segurança alimentar”.
Em seguida, depois de conseguir entregar alguns kits para as famílias, foi pensada em uma nova metodologia para produzir conteúdo online para as crianças e adolescentes. “Fizemos uma busca ativa de todas as famílias, algumas não tinham telefone, então tivemos que ir atrás, era uma questão emergencial. Aí tivemos que providenciar chip, internet e doação de celular para algumas famílias. Para famílias sem acesso à internet, nós imprimíamos um caderno de atividades para as crianças, que era entregue junto ao kit alimentar”.
No Cedep, Maria Marlene conta que o grande desafio na adaptação foi criar novas metodologias que pudessem contribuir para o atendimento às crianças e adolescentes. “Todos educadores usaram muito a criatividade”, afirma.
Com as adaptações, passaram a ser feitas lives, vídeo aula e também atividades impressas através da “Revista do Saber”, em uma tentativa de tornar as atividades mais atrativas e contemplar todas as áreas. No total, cerca de 300 crianças foram atendidas; de forma online, também foram ofertadas aulas de judô, capoeira, dança, música e apoio pedagógico. A coordenadora do Cedep conta que aos menos 80% foram impactadas pela nova metodologia.
“Vinham toda semana buscar atividades e mantivemos o atendimento através da ‘Revista do Saber’, de atividades online e das lives. Isso levou um tempo de dedicação e preparação, mas, infelizmente, não conseguimos atender 20% das crianças”.
Já a Fundação Gol de Letra, adotou uma estratégia de uso massivo das redes sociais como Instagram e Facebook, além de disparos em grupos com as famílias no Whastapp para divulgar e adaptar suas atividades. De forma paralela, também foi feito um mapeamento com as demandas locais em relação às necessidades das famílias.
“Pensamos em um modelo para organizar um vínculo permanente com os participantes. Os professores produziam materiais e vídeos com orientações e exercícios de diversos conteúdos: cultura, literatura, esporte. Nós lançávamos nas redes sociais para divulgar e o conteúdo ficava disponível nas plataformas”, conta Felipe Pitaro.
Entre os desafios da tecnologia e insegurança alimentar, Pitaro também relatou que foi possível perceber que os conflitos no ambiente familiar aumentaram. “Vimos famílias em relações conturbadas por toda a situação da pandemia, então o nível de conflito e tensão aumentou. E com isso, também vimos aumentar a carga de atividades domésticas para meninas. Vimos um aumento muito grande de ansiedade, medo e depressão, e a necessidade de voltar a se reunir como grupo social gerou muita angústia. Todo educador vai precisar ter muito cuidado para lidar com essa instabilidade gerada e gerar acolhimento”.
Não diretamente relacionado às crianças atendidas pelo Cedep, mas Maria Marlene também relatou que teve conhecimento de casos de violência doméstica durante o período de isolamento. “Soubemos de alguns casos de violência. A própria forma da família não poder conter a criança em casa, aí falta preparo da família de ter a criança em casa o dia todo e para conter a situação de violência”. Ela conta também que organizaram lives que pudessem ajudar na orientação sobre como exercer a paciência.
O avanço da vacinação no Brasil possibilitou a retomada das atividades, em um primeiro momento em um formato híbrido, e posteriormente 100% presencial em alguns casos. Ana Angélica (Estação Conhecimento de Serra) relata que, no momento de retomada das atividades, houve um cuidado muito grande de preparo das famílias para essa volta. “Preparamos no ambiente online ainda e no primeiro momento de retomada gradual; a maioria das crianças vem aqui uma vez por semana, dentro do protocolo de segurança e atendendo 20% do público diário. Preparamos e apresentamos todos os protocolos e também refizemos nossos combinados e acordos de convivência”.
Também houve um desafio em vencer o medo nesse início para a criação de um ambiente seguro para as crianças. Ela destaca o comprometimento das próprios crianças em seguir os protocolos e a colaboração das famílias. “Não sabíamos como seria a resposta, mas foi muito positiva. Não coloco como momento pós-pandemia, mas sim de convívio com a pandemia. É necessário um comprometimento individual com o coletivo e o grande desafio é conviver com a pandemia e conscientizar que estamos em um momento que o individual tem que estar conectado com o coletivo o tempo inteiro”.
Na Fundação Gol de Letra, Pitaro destaca que o contato com as famílias é permanente e pontua como um desafio encontrado no momento de retorno o que chama de ‘desencontro de informações com as políticas públicas’. “Houveram muitas decisões (do poder público) sem fundamento, então houve um receio e medo generalizado por conta da pandemia. Temos o papel de tranquilizar as pessoas sobre as atividades, retorno e adaptações. Desenvolvemos uma nova metodologia e estamos vencendo passo a passo a insegurança”.
O diretor da Fundação Gol de Letra também chamou a atenção para outro desafio encontrado no momento de retomada, que foi a defasagem escolar. “Uma questão que notamos e ainda vai explodir é a defasagem escolar. Foram quase dois anos e muitos alunos perderam o ritmo ou não conseguiram acessar as plataformas online, então teremos um impacto educacional”.
Maria Marlene ressalta a importância da articulação com outras redes para garantir não só os direitos das crianças e adolescentes, mas também de suas famílias. Nesse sentido, houve encontros com o CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) para a definição de estratégias de apoio e acolhimento, como visitas domiciliares, das famílias mais vulneráveis.
No Rio de Janeiro, a Fundação Gol de Letra também organizou campanhas de segurança alimentar com Secretária Municipal de Saúde e, junto ao CRAS, realizou um mapeamento e cadastro único das famílias para identificar as necessidades dentro do território. Também foi feita articulação com as escolas.
“Articulamos em rede dentro do território e esse movimento foi fundamental para entender a demanda, os atores locais e a própria distribuição (de alimentos). Foi um esforço conjunto e, sem ele, muitas famílias entrariam em colapso. Também apoiamos escolas na distribuição de materiais pedagógicos”, detalha Felipe Pitaro.
Em Serra, no Espírito Santo, a Estação Conhecimento também se organizou enviando ofícios solicitando a autorização para alterar a forma como a alimentação era disponibilizada. “Queríamos transformar as linhas de alimentação que tínhamos no projeto em kits alimentares. Criamos alguns critérios de distribuição e, em casos que a gente não conseguia atender, fazíamos o encaminhamento via CRAS. Articulamos isso em rede, então fazíamos várias reuniões para discutir os problemas e criar soluções”, conta Ana Angélica.
Em um momento de retomada, que ainda gera inseguranças em relação à pandemia, em que alguns não se sentem seguros e outros sequer podem retomar suas atividades devido à comorbidades, também faz-se necessário pensar em estratégias de busca ativa para combater a evasão. Sobre esse aspecto, Pitaro destaca que não considera uma evasão permanente. “A situação ainda é grave e a gente também teve muitas famílias que tiveram que se mudar do território, então observamos que houve dentro, dessa linha de pensamento, uma evasão, mas não consideramos evasão permanente. Houve uma diminuição da frequência, mas entendemos que o momento sugere uma readaptação”.
A Fundação Gol de Letra adotou uma estratégia de busca em seu banco de dados, onde constam os cadastros e também em grupos de Whatsapp e visitas domiciliares. “Também mantemos um contato estreito com o CRAS com as famílias de maior vulnerabilidade para entender os motivos e monitorar as situações de retorno e afastamento. Sempre conversamos com as famílias para apresentar soluções e possibilidades e fazemos uma busca ativa por rematrícula”.
Em Florianópolis, o Cedep adotou a mesma estratégia de busca ativa em grupos de Whatsapp e também com visitas domiciliares. “A gente conseguiu sim fazer essa busca e, as que não conseguimos retorno, são pessoas que acabaram se mudando para outra cidade ou estado durante a pandemia”, explica Maria Marlene.
Já a Estação Conhecimento, adotou uma estratégia de contato individual com cada família, em conjunto com o CRAS, e hoje calcula que houve uma evasão de apenas 7% em relação ao início da pandemia. “Estamos na busca ativa, mas há pessoas que não voltaram porque foram para casa de outros familiares e ainda não conseguiram retomar a vida cotidiana. Mas a busca continua porque lidamos com pessoas em vulnerabilidade e as vezes é um público que flutua e se muda muito. Por isso contamos com a ajuda do CRAS para localizar essas famílias”, finaliza Ana Angélica.