publicado dia 21 de setembro de 2018
Constituição de 88 e direito à cidade: uma trajetória feita de participação popular
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 21 de setembro de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
Discutir direito à moradia e direito à cidade no Brasil é refletir sobre como a concentração de renda ganha corpo em um território econômica e socialmente desigual: cerca de 11,4 milhões de brasileiros vivem em condições precárias de habitação, segundo o Censo 2010 do IBGE.
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“Temos uma sociedade absolutamente desigual, e quando se fala em direito à cidade, vemos um aprofundamento de uma exclusão socioterritorial histórica”, declara Danielle Klintowitz, arquiteta e coordenadora do Instituto Pólis, organização que luta pela reforma urbana e direito à cidade.
Para a especialista, embora não se possa negar a elevação de renda nas últimas décadas, esta não foi capaz de fazer frente à desigualdade territorial. “As pessoas têm carro, geladeira, mas ainda moram na frente do esgoto a céu aberto. Elas vão para a universidade, mas demoram duas horas para voltar para suas casas nas periferias”, aponta.
A luta por uma reforma urbana começa com a percepção, por parte de movimentos sociais e da organização civil, de que o Brasil, em meados dos anos 1950, enfrentava um forte processo de urbanização. Se convenciona então o marco inicial das discussões legais, o Seminário de Habitação e Reforma Urbana, organizado em 1963 – ano anterior ao início regime ditatorial – por organizações como o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e outras articulações sociais.
É a partir da década de 1970, no entanto, com a estruturação de grandes movimentos sociais como o Movimento Nacional de Reforma Urbana – hoje Fórum Nacional de Reforma Urbana – que se intensificam as discussões que culminariam na inserção da política urbana dentro da Constituição de 1988.
“A Constituição de 88 inova se pensada em termos de conteúdo e redação, não só pela ampla participação popular, mas por ser a primeira que destina um capítulo para a reforma urbana e para a cidade. Isso não aconteceu por vontade dos legisladores, mas por causa de emendas populares do Movimento Nacional pela Reforma Urbana, que pensava: o Brasil se urbanizou e não pode mais ter um pressuposto rural para a Constituição”, explica Bianca Tavolari, pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia.
Essa reportagem integra o especial 30 anos da Constituição Cidadã – série de matérias que analisa os trinta anos da Constituição Federal de 1988 e a relaciona com a manutenção da democracia brasileira, especialmente, nas áreas de educação, território e participação social.
A construção dos artigos 182 e 183 da Constituição é metafórica de como a luta por moradia se deu no Brasil. Os dois artigos são sínteses de propostas disputadas ferozmente entre movimentos sociais ligados à moradia e setores conservadores formados por senadores, deputados e mercado imobiliário.
O artigo 182 é o primeiro a admitir uma diretriz fundamental para se pensar moradia enquanto direito humano: a função social da propriedade: “Com isso, a Constituição quer dizer que a cidade tem um propósito não somente econômico e que a propriedade não é ilimitada”, explica Danielle.
No artigo 183, por sua vez, outra expressão de interesse social se destaca para um país com grande déficit habitacional: “O usucapião, uma das grandes demandas dos movimentos sociais, foi fundamental. Se um cidadão ocupa a propriedade por um tempo, faz uso desse terreno e paga suas contas, e ninguém veio reclamar o direito da propriedade, ele tem o direito de se tornar o dono. Esse é o caso de muitas favelas, cortiços e ocupações no Brasil.”
Mas ao esmiuçar os dois artigos, é possível ver que sua redação foi feita de tal modo que cada conquista tem como apêndice uma condição que dificulta sua efetivação. Bianca retoma o artigo 182 como exemplo: “Quando o artigo diz ‘conforme diretrizes gerais fixadas em lei’, está na verdade dizendo, tudo bem, eu deixo você (movimento social) fincar esse direito, formular uma política pública, mas vai precisar ser regulada por lei. Ela não tem aplicação imediata, você vai ter que criá-la, esperá-la ser aprovada ou não, e depois se virar para implementá-la.”
O próprio usucapião, apesar de progressista, só pode acontecer se a propriedade for privada, sendo que a maioria das habitações precárias são propriedades públicas.
A burocratização desses artigos ricocheteia consequências que por muito atrasaram a construção de políticas públicas urbanas, garantindo um amplo plano de disputas de setores conservadores para postergar a criação de leis específicas para cada município. Por isso, dada a Constituição, os movimentos de luta por moradia concentraram seus esforços nas políticas que de fato poderiam efetivá-las: o Estatuto da Cidade e os Planos Diretores de cada município.
Considerado por ambas as especialistas um desdobramento indispensável dos artigos 182 e 183 da Constituição, como também um alargador da compreensão da função social da cidade, o Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, usa legalmente pela primeira vez a expressão direito à cidade.
“O Estatuto da Cidade diz que deve existir uma política de ordenação urbana do território que respeite o desenvolvimento e o bem-estar do cidadão. Para isso, escreve os princípios garantidos constitucionalmente: deve haver uma igualdade entre o ônus e bônus da urbanização, ou seja, alguém não pode sempre perder ou ganhar. É nele que se dá o direito à cidade sustentável, à moradia, ao lazer e cultura”, relata Bianca.
Para Danielle, é também nele que se percebe como o termo direito à cidade intensifica o que se tinha antes por reforma urbana, costurando-a a outras demandas sociais. “Direito à cidade é se apropriar dos espaços e acolher os diferentes usos deles pelas diferentes pessoas, entendendo-os como não estanques. Não vamos achar isso na Constituição, e sim no Estatuto, como evolução do pensamento e reflexão.”
Com o Estatuto criado – e considerado uma referência em política habitacional pelo mundo – foi possível começar o desenho dos planos diretores. Previstos pela Constituição como documento obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes, o plano diretor “funciona como uma constituição de cada cidade, e é nele que está o critério para dizer se a função social da propriedade está prevista ou não. Ou seja, o artigo 183 da Constituição só vale se cada cidade fizer um plano diretor”, adiciona Bianca.
A criação de um plano diretor esbarra, no entanto, no fato do documento ser um território de disputas entre bem-estar social e urbanização desenfreada, a exemplo do que aconteceu na Constituição. Em São Paulo, como Bianca lembra, foram 15 anos para a promulgação do seu Plano Diretor.
É também nele que se realiza, de fato, a participação social para a construção da gestão democrática da cidade, como explica Danielle. “O plano diretor é a lei máxima urbana, que só pode ser votado por um quórum qualificado de vereadores e, obrigatoriamente, feito participativamente. Acontece de primeiro uma leitura da cidade, onde a população é convidada a discutir a cidade real e – a partir dela – a cidade almejada. Esses desejos sociais são então traduzidos por técnicos, para transformar os processos participativos em políticas públicas.”
Tão importante é também sua função de supervisão. Em São Paulo, cujo plano diretor prevê a diminuição de distâncias entre trabalho e moradia, evitando assim migrações pendulares exaustivas, ele ajuda a pressionar a prefeitura em relação à malha de transporte ou a centralização exagerada de serviços.
“O plano diretor tem sido o maior instrumento dos movimentos sociais que lutam contra os vazios das cidades e pela construção de uma política habitacional”, diz Danielle.
A apropriação dos dispositivos legais por lutas que dilatam o direito à cidade para além da habitação é de grande força nas capitais brasileiras. Em São Paulo, movimentos lutam para defender espaços verdes dentro da malha urbana, como o Parque Augusta. Em Recife, o Movimento Ocupe Estelita se apropriou da zona portuária da cidade contra a especulação imobiliária; e em todas as cidades brasileiras, a juventude tem com pauta a diminuição das tarifas de transporte para se apropriar do espaço público.
Uma luta que encontra uma série de obstáculos, em especial, diante do avanço de pautas conservadoras: “Desde que se defende o direito à cidade ou a reforma urbana, existe uma resposta conservadora, porque essas lutas tocam diretamente em privilégios e interesses. Um deles é o da propriedade privada, muito calcada na construção de um país socioterritorialmente desigual. Quando usamos a expressão função social da cidade, estamos dizendo que o direito à propriedade é relativo ao direito da sociedade. Eu só vou poder usar minha propriedade com uma função coletiva”, explica Danielle.
Essa função coletiva significa, em linhas gerais, sua ocupação por diversos grupos, o que nem sempre agrada aqueles ainda atados ao que o psicólogo Christian Dunker chamou a lógica do condomínio, um sintoma da contemporaneidade onde o indivíduo tem dificuldade em lidar com o diferente e se fecha em espaços que só aumentam os abismos sociais e a segregação espacial.
“A desigualdade territorial tem reflexo na apropriação de espaços públicos, que acabam sempre ocupados por pessoas iguais. Quando se começa a discutir a cidade para além do discurso sobre propriedade, e sua apropriação por diferentes pessoas, culturas e comunidades, vemos um ataque frontal do conservadorismo”, explica a arquiteta.
Ainda assim, é no ato de ocupação, não somente enquanto ato físico, mas em todos os sentidos simbólicos outorgados por instrumentos como a Constituição ou o Estatuto da Cidade, que está a resposta contra este pensamento segregacionista. “É por meio desses documentos que as pessoas se apropriam e projetam suas aspirações democráticas para pensar a cidade que desejam”, finaliza Bianca.