Como criar um calendário unificado no território
Publicado dia 6 de julho de 2018
Publicado dia 6 de julho de 2018
O mês de agosto, interlúdio entre inverno e primavera, é importante para a comunidade de Heliópolis, na zona sul de São Paulo. A comunidade entra em combustão coletiva para celebrar o que se convencionou o Mês dos Direitos Humanos. Escolas, comércio, moradores e movimentos sociais se preparam para uma intensa programação reflexiva e prática, que geralmente culmina em eventos no CEU Profª Arlete Persoli, mais conhecido como CEU Heliópolis.
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A prática de um calendário unificado, que conjugue datas mobilizadoras tanto para a escola quanto para outros atores do território, se faz na construção de vínculos entre história da comunidade e moradores. Ele ata temporalidades distintas, mas que precisam caminhar juntas: a memória de um bairro que se construiu por conquistas de movimentos sociais, e sua preservação enquanto bairro educador por meio de uma nova geração que lota suas praças, salas de aulas e ruas.
Um dos espaços que personifica a união entre comunidade, escola e território é a EMEF Campos Salles. Palco central de processos transformadores do território e referência em educação integral, a EMEF carrega a luta de Braz Nogueira, ex-diretor que conseguiu, em parceria com outros importantes atores do bairro, fazer com que a escola espraiasse educação e cultura para o bairro.
“A partir do fortalecimento da escola aberta à comunidade e a participação efetiva dessa comunidade nos problemas e nas soluções dessa mesma escola, foi desenvolvido um projeto de política pública que nasceu como o centro de convivência educativa e cultural de Heliópolis”, explica Marília de Santis, gestora do CEU Heliópolis.
Esse centro de convivência constituiu-se em seis complexos educativos: Três CEI (Centro de Educação Infantil), uma EMEI (Escola Municipal de Ensino Infantil), uma EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) e uma ETEC (Escola Técnica Estadual). O CEU Heliópolis foi construído com a participação ativa dos moradores.
O próprio CEU, hoje polo cultural da região, nasceu da forte mobilização do território. Embora tenha se consolidado em 2015, ele é fruto de mais de 20 anos de luta comunitária en consonância com a UNAS (União de Núcleos, Associações e Associações da Sociedade).
Atendendo mais de 14 mil pessoas cadastradas com esporte, lazer e cultura, o CEU Heliópolis se diferencia por seu esforço em promover um calendário anual em uníssono com a memória da comunidade e seus desejos para o futuro.
Para criar um calendário unificado com o território, Marília garante, é imperativo que os planejamentos sejam democráticos e com os mais diversos participantes. “Democracia é a única possibilidade de salvaguardar um projeto como esse. E a comunidade precisa conhecer esse projeto para defendê-lo. Então nosso planejamento é sempre feito de maneira coletiva”, afirma a diretora.
Cada território é capaz de criar um calendário unificado, resgatando sua historicidade e compondo-a com demandas que façam sentido no presente. Em parceria com a plataforma Cidades Educadoras, Marília de Santis explica caminhos para essa possível amarração de calendário.
Todos os espaços públicos municipais regulados pela Secretaria de Educação recebem, ao final do ano, um calendário anual para o ano seguinte. As escolas funcionam em 200 dias letivos, com autonomia para compor reuniões pedagógicas e criar o próprio calendário dentro do especificado pela Prefeitura.
Já os CEUS (Centro Educacional Unificado), justamente por seu caráter de ponto de cultura aberto a comunidade, estão abertos todos os dias do ano. Para Marília, a estrutura de funcionamento do equipamento e sua portas perenemente abertas podem ser um bom ponto de partida para se pensar em um calendário que faça sentido com o território, menos preso a determinadas datas letivas.
Inaugurados em 2003, os CEUS foram idealizados enquanto endereços públicos, um ponto de encontro, assim como a rua. Tinham como desafio levar à cabo a ideia de construção coletiva do lugar. “Desde o projeto, a escolha de terreno, a construção, a escolha da gestão – tudo é visceralmente ligado à noção de apropriação social do espaço, de pertencimento e mobilização social”, afirmou Alexandre Delijaicov, em entrevista para o Portal Aprendiz. Hoje são 45 unidades de CEU em São Paulo, Guarulhos e Osasco.
Um outro calendário fundamental, e que varia de potência de território em território, é o da associação de moradores. Essas instituições, em geral, têm como papel lutar pelo interesse de moradores, fazendo pressão junto ao poder público para que o bairro tenha acessos à direitos primordiais como saúde, infraestrutura urbana, saúde e educação. A maioria delas tem calendário próprio, com reuniões ou grupos de formação, e contidos nele, toda uma história do bairro que também pode se transmigrar para eventos mais abrangentes. No caso de Heliópolis, a UNAS é a entidade com bastante relevância história política e social da região.
Para comungar esses diferentes atores e começar uma possível costura de calendário, Marília se utiliza do espaço do CEU como concentrador de diferentes agentes, na forma de um conselho gestor. “Temos representantes das escolas, dos professores, dos trabalhadores do CEU e lideranças comunitárias. São cerca de 1200 eleitores por votação do conselho. Quem é eleito se sente representado de fato”.
Nas primeiras tentativas de montagem de um calendário unificado, o conselho percebeu que a noção de calendário ainda estava ligada com datas comemorativas que permeiam determinados períodos do ano. Novembro era o mês em que se discutia a questão racial; abril, a questão indígena; e junho, festas juninas e cultura popular. O conselho percebeu a oportunidade de buscar no próprio território as inspirações necessárias para construir um calendário mais condizente com o que é demandado dentro dele.
“Uma das nobrezas do território é como os movimentos sociais estão organizados aqui. Temos o movimento negro, o das mulheres, o dos sem teto, o LGBT. O que se principiou então foi um esforço para que os movimentos pautassem nosso calendário temático”, relata Marília.
Esse esforço tem sido mais agudo nos últimos anos, quando o recrudescimento de pautas conservadoras ressaltou a importância dos equipamentos educativos como mantenedores e defensores da democracia.
Um dos exemplos é o supracitado Mês dos Direitos Humanos, que acontece anualmente em agosto. Para costurar o calendário, são buscadas referências da temática fora do bairro, mas principalmente em seu bojo. Os movimentos sociais do território se mobilizam para construir práticas e oficinas que extrapolem lugares-comuns do tema. Marília exemplifica: movimentos negros locais se articulam para trazer a perspectiva afro-brasileira num leque variado de aprendizados e saberes; o movimento de mulheres pauta-se a partir de problemáticas locais.
Todo ano, em junho, serpenteia pelas ruas de Heliópolis o cortejo Caminhada pela Paz. Criado em 1999 em protesto pela morte de uma estudante da EMEF Campos Salles, o evento hoje se consolida como exemplo de como a articulação de um território pode promover reflexão sobre democracia e educação enquanto ferramentas contra a violência.
Para que eventos como a Caminhada da Paz aconteçam, e eles possam ocorrer em qualquer território, é necessário um planejamento prévio, com responsabilidades divididas e funções atribuídas por meio de diligências democráticas. Esses processos não são involuntários e nem naturais, como aponta Marília, e sim frutos de constantes encontros, formações, avaliações pré, durante e pós a feitura dos eventos, para entender o que funcionou e o que não.
Esse trabalho rizomático, como determina a gestora, funciona principalmente porque os atores da comunidade são consultados, seja durante as reuniões de conselho, seja durante a busca por parceiros, seja em caminhadas pelo território. Mas ela também garante que não há uma fórmula pronta, e que se há quatro anos o calendário está em funcionamento, é porque é resultado de tentativas assertivas e erros esperados da construção de um calendário que é, em suma, muito humano.
Não é simples a manutenção dessa comunidade ativa. O próprio cotidiano pode engolir os instantes de comunhão. Fazer a comunidade perceber quão vitais são esses processos, ainda mais em tempos de aviltamento de direitos humanos, é tarefa da união de duas pontas aparentemente opostas mas que, quando juntas, encarnam uma gigantesca potência: a memória da história da comunidade e as crianças como guardiões e mantenedoras dessa memória.
O trabalho da memória se realiza no resgate ao que já passou, mas principalmente, com o trabalho contínuo de manutenção das lideranças que ainda atuam, e que têm em si o arcabouço sobre conquistas e desafios passados. Em Heliópolis, isso se materializa no próprio Braz Nogueira e em lideranças locais como Antonia Cleide Alves, presidente da UNAS e João Miranda, presidente de honra.
“É preciso valorizar quando existem lideranças históricas que estão vivas e que podem falar sobre a história do lugar, dar depoimentos”, declara Marília.
O outro trabalho está na formação de jovens lideranças: como mobilizar as crianças e famílias das crianças para uma luta que é histórica. “Uma das nossas maiores angústias é que todos saibam a história desse lugar. Que todos saibam que as conquistas não caíram do céu, que há uma organização, uma luta política para o florescimento das políticas públicas que nos atendem. Então é formação, formação e mais formação. É o tempo inteiro a história estar presente, a do Brasil, a dos movimentos sociais, a do CEU, a de Heliópolis”.