publicado dia 4 de julho de 2018
Psicanalista Christian Dunker propõe relação entre escola e território contra “lógica de condomínio”
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 4 de julho de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
Alphaville é um bairro construído na década de 1970 no extremo oeste da Grande São Paulo. Seu modelo de organização foi precursor de outros residenciais de luxo na cidade e no Brasil. Apartados do espaço público e da relação com a cidade que os circundam, esses condomínios encerram entre muros e catracas um ideal de segurança e tranquilidade, onde leis paramentam e protegem os que vivem dentro deles, excluindo os que vivem fora.
O condomínio é a analogia que o psicanalista Christian Dunker usa para tratar da patológica relação entre o público e privado que se dá no Brasil contemporâneo. Ele discute as consequências desta patologia nos afetos e sociedades do país no livro Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros, publicado em 2015 pela editora Boitempo.
Alphaville é também o título do filme de 1965 do francês Jean-Luc Godard. Nele, um computador autoritário regula uma cidade onde impera a homogeneidade de pensamento e ações. Nela, diferenças e sentimentos são duramente reprimidos sob uma névoa de suposta paz e sociólogos, cientistas e outros pensadores são considerados párias.
O psicanalista, professor titular da Universidade de São Paulo (USP), localiza o nascimento da lógica do condomínio junto à popularização de condomínios como Alphaville, na década de 1970. Não tardou para essa lógica logo se transmutar nas relações humanas. “Uma lógica de estar no lugar, habitar o território, pressupor coisas dos outros e de nós mesmos e ter afetos que fazem mediação dos nossos encontros e circulação pela cidade. Essa forma de vida se extraiu, se desdobrou. O condomínio é só um caso particular de uma lógica de funcionamento encontrada também nas prisões, shopping center, nas favelas”, explica Christian.
A lógica do condomínio se espraia nas grades que impedem a circulação livre em praças, nas cancelas que fecham ruas e as tornam particulares, nas escolas escondidas por trás de muros, com pouca ou nenhuma ponte com a comunidade que a cerca ou cidade para onde deveria irradiar.
Ela também está manifesta na dificuldade de reconhecer o valor da diferença e da diversidade, o que fornece condições para políticas públicas como o polêmico projeto de lei nº 7180/2014, conhecido como Escola sem Partido. Especialistas em Educação garantem que o projeto vai contra o papel da escola, por censurar e culpabilizar os docentes e acuar a pluralidade.
Em entrevista ao Portal Aprendiz, Christian Dunker explica o que é essa lógica de condomínio e também como a ocupação de espaços públicos e o diálogo entre escola, comunidade e cidade podem fazer com que os muros já postos se tornem mais porosos, permitindo brechas de transformação.
Portal Aprendiz: Christian, no livro “Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros”, você identifica alguns traços particulares da lógica de condomínio, e que podem ser metaforizados para outros aspectos da sociedade contemporânea brasileira. Você pode explicá-los?
Christian Dunker: A lógica do condomínio tem características estruturais: a primeira delas é o muro. O muro como uma realidade objetiva, como um instrumento político. Donald Trump fala no muro, há também o muro de Gaza, o muro de Berlim. É o muro como estratégia para lidar com tensões, conflitos e diferenças em tempos reais e de fronteira. O muro é uma estratégia de invisibilização do outro, destituição do outro, de “desistencialização” do outro. Ele cria uma realidade onde outro tipo de realidade não existe. Outro efeito do muro é que ele vai dando margem para nossas fantasias inconscientes. Quando você impessoaliza e invisibiliza o outro, você começa a ser habitado por ele, que é uma figura suposta em maldade. O outro se torna mais violento, agressivo, inconversável. Alguém que justifica o muro: “Eu preciso ter um muro, porque se eu não tiver segurança, o outro me ataca, por isso me defendo dele”.
O segundo traço da vida na lógica do condomínio é que as relações de linguagem, desejo e trabalho passam a ser mediadas pela figura simbólica de um síndico. Síndico é um mediador, alguém que devia representar a lei e fazer o diálogo entre o público e o privado, o Estado e a sociedade civil. Mas o que começa a acontecer a partir da lógica do condomínio é que ele se autonomiza e vira uma forma de poder. Começa a instrumentalizar as leis, hiperinflacioná-las, criando mais e mais leis contraditórias entre si e que dão espaço para o que se pode chamar de um negócio das leis. Isso cria uma espécie de avenida aberta para a corrupção dentro das leis.
Uma comunidade depende da outra. Quando você imagina uma comunidade sem a outra, você está imaginando o condomínio
O terceiro traço é o traço do sofrimento. São sofrimentos baseados em dois afetos fundamentais: o medo e a inveja. São sofrimentos que têm uma estrutura narrativa bastante simples, ligada ao que já é hipótese, à do objeto intrusivo. Quando se pergunta para a pessoa “por que você sofre?”, ela geralmente responde “porque há um objeto a mais na minha vida”. Porque tem droga, porque tem bebida, porque tem gente que não é como a gente. Logo a solução é excluir esse objeto. Nesse sentimento generalizado de insegurança, se ergue muros, se precisa de mais câmeras, catracas, mais vigilância, mais polícia, mais leis, e mais aplicação da lei.
O quarto e último traço são as tentativas de transformar o condomínio. De estabelecer furos, brechas. E isso tem a ver com bicicletas, com reocupação do espaço público, com escolas mais conectadas com as comunidades onde estão. Com a rua, que ela não seja um enclave no bairro, com um guarda na porta e ninguém sabendo o que está acontecendo. Que a rua tenha momentos de porosidade, festas, passeios, visitas, uma circulação de pessoas, uma troca com as escolas e pessoas de outras comunidades.
Uma comunidade depende da outra. Quando você imagina uma comunidade sem a outra, você está imaginando o condomínio.
Portal Aprendiz: Pensando o momento atual do Brasil, que está enfrentando uma crise de confiança em instâncias públicas e instabilidade política, é possível mensurar algum efeito mais nocivo dessa lógica de condomínio?
CD: De fato, o efeito mais nocivo e mais condensado de alguém que cresceu e nasceu na forma de vida do condomínio é que essa pessoa se vê desabilitada de encontro com o diferente. E o diferente é excessivo, ele é de outro planeta. Ele não tem pontos de comensurabilidade, de mediação, eu diante dele não consigo fazer nada de útil, interessante e produtivo. Isso é péssimo porque a diferença é um dos valores mais importantes, é uma das condições mais importantes para o desejo humano. A diferença é que torna o nosso laço com o outro interessante.
Portal Aprendiz: Esse repúdio à diferença pode ser prejudicial particularmente se pensarmos em contextos educacionais, que precisam da diversidade para florescer?
CD: Sim, principalmente em casos como no bullying ou de violência institucional dentro das escolas. Eles estão profundamente ligados à implantação da cultura de condomínio na escola. São escolas excessivamente institucionalizadas, individualizadas, voltadas para o desempenho e performance. Ainda seguindo a lógica do condomínio, são escolas estratificadas, assépticas, onde se tem muito controle e uma série de seleção por cortes, corte financeiro, de classe. A escola está cheia de síndicos.
Veja, as escolas que têm mais bullying são as mais muradas. As que têm menos são muitas vezes as que têm menos recursos ou uma forma de vida propriamente mais comunitária. E a escola é, por excelência, o lugar de valorização da experiência da diferença.
Não se apostila comunidade, ela tem que estar ligada com a história e a cultura do local
Portal Aprendiz: O Portal Aprendiz trabalha com o conceito de cidade educadora, isto é, que todo território é educador. Mas para isso acontecer, deve haver uma integração entre o sujeito, a comunidade e a sociedade. Isso parece ressoar com as brechas que você propõe, as frestas nesses muros que você cita.
CD: O caminho é por aí, encontrar as boas experiências que se fazem naquela comunidade, naquela outra. Não se apostila comunidade, ela tem que estar ligada com a história e a cultura do local. É assim na Finlândia, é assim na Reggio Emilia (modelo de educação italiano), e dá certo. Nós no Brasil preferimos sonhar com tecnologias salvadoras do que com que dá mais trabalho, que é inventar a solução para sair do condomínio.
E o primeiro passo é sair para a rua. Falar com o pipoqueiro, com o funcionário. As escolas dizem “precisamos de mais diversidade, como levamos nossas crianças para diversidade?”, e a diversidade está ali na escola, mas está invisível. Não se olha para a faxineira, o porteiro. A escola não é aprendente. Ela não aprende. E ela deveria ter um processo coletivo para todos, do assessor até os pais e mães. Escola é lugar de assistir filme junto, discutir política junto, fazer teatro junto, fazer horta comunitária, o que não está na lei. Onde estão as exposições, as apresentações realmente populares? A escola tem que ser irradiadora de processos culturais.
Recuperando um debate que eu tive com o educador argentino Jorge Larrosa, como você se defende dessa condominização? Com muros que sejam desmontáveis. Com muros capazes de suportar aquela brincadeira de criança, que todas as crianças adoram, que é andar no meio fio. Andar sem pisar de um lado ou do outro, andar na linha. Uma metáfora linda para se entrar num certo universo mas também de poder sair dele, vacilar e cair fora. Uma prática lúdica importante e que é também uma estratégia para a gente reverter um pouco do excesso dessa lógica.