publicado dia 23 de janeiro de 2018
Cidade e Literatura: 6 autores e autoras que elegeram a urbe como protagonista
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 23 de janeiro de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
O escritor mineiro Pedro Nava (1903-1994) flanava. Percorria ociosa e atenciosamente as ruas de Juiz de Fora e Belo Horizonte e, quando escrevia crônicas sobre as cidades, retirava-as do lugar de paisagem e colocava-as como protagonistas. Inventava verbos para falar de sua relação saudosa com as vielas do passado: “Ruávamos o dia inteiro”, escreveu em uma crônica de 1978. “Só assim vos repalmilho, ruas de ontem. Porque pensar-vos não vale. O necessário é ter dessas iluminações que vencem a dimensão do tempo e põe relampagalmente os caminhos já idos dentro do agora”.
Ao versarem sobre as cidades, escritoras e escritores tornam a literatura um acesso potente para compreendê-las. Quem explica isso é a historiadora Ana Claudia Veiga de Castro, docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP): “A cidade é um artefato complexo, para muito além da materialidade de seus edifícios ou da forma das suas ruas. Ela é feita das pessoas que vivem ali, das relações que se estabelecem, além de também ser a imagem e representação de como a pensamos”.
As grandes cidades literárias só foram possíveis à medida que os centros urbanos se constituíram, resultado das revoluções industriais, do êxodo do campo e dos abismos sociais formadores das diferentes camadas das urbes. No século XIX, o surgimento do gênero romance permitiu que escritores como Charles Dickens ou Jorge Luis Borges trouxessem as cidades de Londres e Buenos Aires como personagens de célebres histórias. “A literatura plasma o mundo social”, continua Ana Claudia. “E o romance é intrinsecamente ligado ao mundo moderno. Não é seu reflexo, e sim uma expressão dele.”
Mais do que encapsular ficcionalmente um território, as narrativas que se debruçam sobre a cidade também geram uma fonte de estudos por vezes mais ampla que a produção acadêmica, segundo a historiadora: “Em geral, os estudos sociais fragmentam a cidade separando suas diversas esferas de existência: a urbanização, a economia, a demografia. Já a literatura condensa tudo isso, recuperando e apresentando o mundo em sua totalidade, complexidade e contradições”.
A Plataforma Cidades Educadoras listou seis escritoras e escritores que plasmam o mundo social e usam a cidade como protagonista e potência para o destino dos personagens que as habitam. Confira:
Conceição Evaristo (1946)
Obras: Becos da Memória (2006); Poncía Vicêncio (2003); Histórias de Leves Enganos e Parecenças (2016)
Trecho: Ele ia de vez em quando à cidade e voltava com livros. Trazia notícias sobre o que acontecia por lá”, ele era uma espécie de mentor para os trabalhadores, “lendo para os outros, estudando com eles um jornal que explicava tim tim por tim tim, o que era sindicato, greve, liga camponesa, reforma agrária”. – Becos da Memória.
Conceição Evaristo reconhece cidades possíveis para além de grandes centros urbanos. Ela explica como o apagamento de comunidades periféricas implica não só na derrubada de casas ou deslocamento de pessoas, mas na destruição das memórias ali construídas. A comunidade desintegrada no romance Becos de Memória é contada por uma coletividade saudosa que vê seus afetos se transformarem abruptamente – são protagonistas negras e negros como “folhas espalhadas pelo vento”, nas palavras da escritora mineira. Já em Poncía Vicêncio, é relatado o conflito de personagens que abandonam a ruralidade e enfrentam a cidade, dando voz aos protagonistas sistematicamente apagados de qualquer discussão urbana.
Ítalo Calvino (1923-1985)
Obras: As Cidades Invisíveis (1972); Se um Viajante numa Noite de Inverno (1979); Sob o Sol-Jaguar (1986)
Trecho: Em Cloé, grande cidade, as pessoas que passam pelas ruas não se conhecem. Ao verem-se imaginam mil coisas umas das outras, os encontros que poderiam verificar-se entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as ferroadas. Mas ninguém dirige uma saudação a ninguém, os olhares cruzam-se por um segundo e depois afastam-se, procurando novos olhares, não param. – Cidades Invisíveis.
As 55 cidades descritas pelo deslumbrado jovem Marco Polo ao imperador melancólico Kublai Khan no livro As Cidades Invisíveis não existem. Isso não as torna menos parecidas com espaços urbanos reais. O escritor italiano não faz economia ao desmembrar o fantástico de cidades onde pessoas não se falam, outras penduradas em abismos por fios de aranha,algumas habitadas por mortos. Sua narrativa transformou o modo como urbanistas e arquitetos pensam a cidade, enxergando-a como um cristal multifacetado de dimensões históricas e sociais. Se Cloé, ou Otávia ou Melânia assustam e deslumbram, é por guardarem ecos tão fortes do mundo concreto.
Jane Jacobs (1916-2006)
Obras: Morte e Vidas nas Grandes Cidades (1961); A Economia das Cidades (1969); Cidade e a Riqueza das Nações (1984)
Trecho: “As cidades tem condições de oferecer algo a todos apenas porque, e apenas quando, são criadas para todos”. – Morte e Vida nas Grandes Cidades.
A norte-americana Jane Jacobs nunca teve formação enquanto arquiteta. Ainda assim, o seu olhar atento sobre as cidades e sobre como elas só são democráticas quando ocupadas por comunidades ativas revolucionou a lida com o espaço urbano. Tendo iniciado sua carreira como repórter de bairros operários em Nova York, na década de 1950, Jacobs empreendeu hercúleas batalhas contra urbanistas como Robert Moses – responsável pelo planejamento da Grande Maçã por trinta anos – desafiando o planejamento urbano ordenado, pouco humanizado e que rasgava parques e elevava ruas apenas para passagem de carros. Suas obras argumentam que os moradores e os vínculos históricos, culturais e de aprendizado com suas ruas e vielas são, na verdade, a verdadeira cidade, e é por ela que se deve lutar.
Julio Ramón Ribeyro (1929-1994)
Obras: Los Gallinazos sin Plumas (1955); La Caza Sutil (1975); La Tentación del Fracaso (1987);
Trecho: Às seis da manhã a cidade se levanta na ponta dos pés e começa a dar seus primeiros passos. Uma fina neve dissolve o perfil dos objetos e cria como uma atmosfera encantada. As pessoas que percorrem a cidade essa hora parecem ser feitas de outra substância, pertencente a uma ordem de vida fantasmagórica – Los gallinazos sin plumas.
Há cidades mais conhecidas na literatura latino-americana: a Buenos Aires de Jorges Luis Borges e Julio Cortázar, a Rio de Janeiro do cronista João do Rio. É menos exaltada Lima (Peru) que, após o golpe militar em 1950, enfrentou um êxodo rural sem precedentes, inchando e alargando sua capital de ares rarefeitos. O contista e escritor Júlio Ramos Ribeyro fazia da modernização e suas consequências os motes de seus livros. No romance Los gallinazos sin plumas (Os Urubus sem pluma), Ribeyro alcança o auge do realismo urbano, com duas crianças protagonistas sujeitas a uma cidade cinza, cruel e complexamente humana em suas desigualdades.
Elena Poniatowska (1932)
Obras: Tinisima (1992); Las Soldaderas (1999); Massacre no México (1975)
Trecho: No México, a taquería é um negócio que ninguém perde; todos, pedreiros, jornaleiros, catadores, lixeiros, violinistas, caminheiros, monjas e jornalistas, todos entramos nas taquerías, todos comemos tacos, todos os arrebentamos com as mãos, os comemos com pressa, chupamos os dedos porque estão sempre bons para serem chupados – crônica Luz y Luna.
Para a escritora Elena Poniatwoska, o México é uma cidade trêmula, que a recebeu com terremotos e não a soltou mais. Em seus romances e contos, a malha urbana é contada por aqueles que a percorrem e a fazem viva, os que trocam com ela. Em Luz y Luna, são os vendedores ambulantes, os carteiros e os padeiros os protagonistas e guardiões do pulso de urbanidade. Por ter formação de jornalista, Elena sempre buscou o contato com quem faz essa cidade ambulante, e sua prosa revela falas de quem nem sempre pode falar sobre a cidade que ocupa.
Olavo Bilac (1895-1918)
Obras: Crítica e Fantasia (1904); Antologia Poética (diversas publicações); Tarde (1919)
Trecho: “Foi uma reivindicação, uma parede, um protesto coletivo. Irritados, feridos na sua vaidade de arroios presunçosos pelo soberano e ferino desdém com que os geógrafos os tratam – todos os ribeiros cariocas, por tão largo tempo adormecidos numa resignação ignóbil, transformaram o seu inútil e abafado resmungo num alto clamor de ira, e bradaram forte o seu direito à rebelião e à independência” – Crônicas em jornal impresso.
A crônica brasileira firmou-se, mais do que um entretenimento literário nas barras do jornal, como um documento fecundo de sua época, equipando leitores futuros com relatos íntimos da cidade do passado. Ainda que seja muito conhecido por seus poemas parnasianos, o escritor Olavo Bilac fez uma transição para o jornalismo ambulatório, olhando agudamente para as cidades como Rio de Janeiro e as mineiras Ouro Preto e Belo Horizonte. Militante pelo respeito a história das comunidades que construíram as cidades, ele também lutava por condições melhores para a população. Na crônica acima, Bilac metaforizou as revoluções populares das cidades com as cheias de rios que ocupam os espaços públicos.
*Imagem de destaque gentilmente cedida por Karina Puente. A ilustradora peruana começou a documentar as 55 cidades de Ítalo Calvino. A do destaque é Zebeida.
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