publicado dia 8 de agosto de 2017
Ruas Compartilhadas propõem resgate da função pública das vias
Reportagem: Natália Passafaro
publicado dia 8 de agosto de 2017
Reportagem: Natália Passafaro
Por Nana Soares
E se automóveis, bicicletas e pessoas compartilhassem o mesmo espaço, sem diferenciação, nas ruas? E se estes espaços fossem mais do que caminhos, mas também destino e local de convivência? Essa é a proposta das Ruas Compartilhadas, um conceito que nasce há 50 anos na Europa e começa a chegar ao Brasil.
Para estimular esse movimento, a ONG SampaPé lançou a versão em português do Manual de Ruas Compartilhadas, produzido originalmente pelo coletivo mexicano dérive LAB. O Manual recupera a origem do conceito de Ruas Compartilhadas e apresenta os primeiros exemplos de implementação no mundo, além de trazer reflexões teóricas sobre o tema.
“Uma Rua Compartilhada protege o significado mais puro e poderoso da rua: todos somos donos do espaço em qualquer modo e de qualquer maneira; todos podemos usar a rua”, diz o Manual, que defende que o modelo exige uma “mudança voluntária no comportamento de todos os usuários da rua, transformando o comportamento de circulação em um comportamento social”.
O guia apresentado pelo SampaPé enfatiza que a principal característica das Ruas Compartilhadas é a compreensão da rua como um espaço público e não como mero lugar de passagem. “Uma rua é compartilhada quando não existem prioridades específicas e nem explícitas a nenhum tipo de usuário – mas favorecem os modos ativos”, define o Manual.
Contato visual, negociação pessoal do espaço (ao invés de regras impostas por placas) e vida pública constituem o tripé de uma Rua Compartilhada, modelo que prevê ainda a presença significativa de pessoas caminhando e em bicicleta. A proposta recupera o encontro e o sentido público das ruas que se perdeu com a hegemonia da cultura do automóvel.
Todos somos donos do espaço em qualquer modo e de qualquer maneira
O desenho necessário para que uma Rua Compartilhada se concretize envolve intervenções urbanísticas nas superfícies, no mobiliário e na (não) sinalização das vias. A respeito da superfície, o primordial é o nivelamento da via, de forma que outros materiais, cores e texturas se diversifiquem e indiquem as linhas de deslocamento, mas que não haja desnível. Se bem implementada, essa intervenção garante a acessibilidade a todos os habitantes e, de acordo com o documento, “provoca a sensação de que os veículos motorizados estão invadindo o espaço público das pessoas e não o contrário.”
“Na construção de uma rua compartilhada é essencial que haja um pavimento em um único nível, mas que não seja de asfalto, porque é um material que favorece a velocidade, algo que esse modelo tenta reduzir. A ideia aqui é ter espaços para ficar e sentar, o que muda a lógica de estar na rua”, afirma Letícia Sabino, diretora do SampaPé.
As Ruas Compartilhadas também devem investir em iluminação, implementação de áreas verdes e lugares de descanso. São ferramentas que ajudam a delimitar espaços, diminuir a velocidade dos automóveis, além de proporcionar conforto às pessoas a pé e de bicicleta.
Já a sinalização perde totalmente lugar em uma Rua Compartilhada, onde os usos são negociados e não impostos por regras. Isso significa que, em alternativa às placas, elas apresentam diferentes texturas e cores nos pavimentos, além de árvores e mobiliário urbano que contribuem para reduzir a velocidade dos veículos e estimular a permanência dos usuários.
Nas Ruas Compartilhadas, a acessibilidade para pessoas com deficiência visual deve ser solucionada a partir de delimitações de espaços ou com a implantação de pisos táteis, já que menos marcadores podem, na verdade, confundir e não ajudar a circulação dessa população.
Para Letícia Sabino, diretora do SampaPé, o conceito de Ruas Compartilhadas ainda não existe no Código de Trânsito brasileiro, o que dificulta sua implementação em território nacional. “É ainda uma ideia muito tímida no Brasil, e aí reside a contribuição do Manual.” Criadas em cidades europeias, várias vias brasileiras já carregam espontaneamente elementos de Ruas Compartilhadas, como é o caso da rua Alberto Borges Soveral, que dá acesso à estrada do M’Boi Mirim, no Jardim Ângela.
“Várias vias de acesso têm essas características, porque são regiões em que as calçadas são super sinuosas e estreitas, as pessoas já andam na rua e compartilham esse espaço com os carros”, relata Letícia, enfatizando que ainda seriam necessárias outras intervenções para que o espaço se tornasse, de fato, uma Rua Compartilhada. “Seria muito melhor essa configuração em uma estrutura que desse segurança para quem não está motorizado”, acrescenta.
Rio de Janeiro, Fortaleza e Belo Horizonte também possuem Ruas Compartilhadas: a Rua dos Inválidos, Rua Otoni Façanha de Sá e a esquina entre a Rua Pernambuco e a Fernandes Tourinho, respectivamente. Elas passaram por revitalizações urbanas e agora possuem menos vagas para carros, priorizam a circulação de pedestres e têm pinturas no chão com sinalizações e locais de descanso.
“É importante dizer também frisar que, quando falamos de espaço público em cidades pequenas, uma reclamação comum é a falta de parques e praças. Mas a rua também é um espaço público, basta modificá-la para que ela cumpra essa função. Isso pode acontecer em qualquer lugar”, propõe Letícia.
Em São Paulo, os moradores da Amaro Cavalheiro sugeriram um outro modelo de rua à prefeitura. Desde a reforma no Largo da Batata, a rua, que era predominantemente residencial, passou a abrigar um fluxo intenso de veículos que utilizavam a via como desvio do engarrafamento. Incomodados, eles levaram essa demanda à Prefeitura que, após estudos, viu na Rua Compartilhada a melhor solução para o local. A implementação, no entanto, ainda teve início.
A rua também é um espaço público, basta modificá-la para que ela cumpra essa função
O SampaPé também enxergou a possibilidade de instalação do modelo em quatro ruas da região central da cidade e propôs as alterações à Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). Elas já apresentam características de Ruas Compartilhadas, mas podem ser incrementadas com outras intervenções.
O conceito de ruas compartilhadas nasce no campo da Engenharia de Trânsito para combater uma cultura de velocidade e eficiência instituída pela ascensão dos veículos motorizados. A Holanda foi a pioneira nessa iniciativa, onde o urbanista Joost Vàhl criou, na década de 60, um novo vocabulário técnico para o desenho das ruas.
Em seu modelo, eliminou-se de forma padronizada a sinalização viária, os desníveis da superfície, dispositivos de controle e as barreiras. O objetivo era que o trânsito de veículos se integrasse ao espaço social, e não o contrário. A ideia teve boa aceitação e inspirou outros países.
Em 1976, o governo do país oficializou a implementação das woonerf – as ruas para viver – em qualquer povoado ou cidade que a solicitasse. Na época, Inglaterra, França, Suíça, Áustria e o Japão implementaram algumas das estratégias das woonerf. Estima-se que, em 1990, essa estratégia tenha sido totalmente implementada em cerca de 3.500 ruas residenciais na Alemanha e nos Países Baixos.
As woonerf surgem a partir de um grupo de vizinhos da cidade de De?t, na Holanda, que, frustrados e preocupados com as altas velocidades nas suas ruas residenciais, desenvolveram um modelo de rua sem sinalização viária nem semáforos. O objetivo da comunidade era expressar que aquela não era mais uma rua com a superfície lisa para que apenas automóveis pudessem circular de maneira fluida. A estratégia incluiu a implementação de mobiliário urbano, áreas verdes, regulamentação de estacionamento e áreas de recreação.
As woonerf inspiraram o engenheiro holandês Hans Monderman, que seguiu com a estratégia de remover toda sinalização, elementos de controle de trânsito e desníveis entre as diferentes superfícies da rua, conceituando os Espaços Compartilhados (Shared Spaces), que, após 20 anos de implementação na Holanda, chegaram nos Estados Unidos e foram formalizados pela União Europeia.
Então foi a vez do arquiteto britânico Ben Hamilton-Baillie sofisticar ainda mais a ideia, criando o chamado Espaço Compartilhado Desenvolvido. Agora a ideia também é aplicada em países em desenvolvimento, como o México, Argentina e África do Sul. E a esperança do SampaPé, ao traduzir o manual, é que a ideia também seja compartilhada pelo Brasil.