publicado dia 19 de junho de 2017
No século 21, cidades têm como desafio ressignificar a alimentação
Reportagem: Nana Soares
publicado dia 19 de junho de 2017
Reportagem: Nana Soares
O chef brasileiro Alex Atala costuma dizer que a comida é a maior rede social do mundo, porque é capaz de conectar todas as pessoas do planeta. Todos comemos, mas o que nós fazemos de alimento varia imensamente de cultura para cultura e de território para território. Nossa relação com a comida é também uma questão identitária, uma forma de nos reconhecermos no mundo. E essa relação tem se alterado significativamente ao longo dos anos.
Se, por um lado, a urbanização, a industrialização e a inserção de novas tecnologias no campo expandiram a produção e facilitaram o acesso a diferentes tipos de alimentos, por outro, também nos desconectaram da comida, convertendo-a em um produto como outro qualquer. Desconhecemos a origem do alimento que chega ao nosso prato, seu valor nutricional e sua forma de produção.
Elemento universal e também do cotidiano das pessoas, a comida é fonte não apenas de nutriente, mas também de conhecimento. Por isso, surgiu em Chicago (EUA) o FOODSEUM, o primeiro museu de comida do mundo. A ideia é reconectar as pessoas com a comida e as histórias por trás dela. Partindo da ideia de que alimento é amizade, família e diversão, o Museu propõe experiências sensoriais de toque, cheiro e paladar com a comida. O primeiro a receber uma exposição foi o cachorro-quente. Quer símbolo maior dos Estados Unidos?
A Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, reconhece no artigo 25 a alimentação adequada como um direito humano. No entanto, isso ainda parece ser uma realidade distante. Mesmo sem superar o problema da fome, já temos que lidar também com a obesidade. Segundo o Ministério da Saúde, o sobrepeso atinge 1 em cada 2 brasileiros adultos e 1 em cada 3 crianças. Por outro lado, as mudanças climáticas já afetam a produção de alimentos de tal modo que garantir comida à mesa de todos se tornou um dos grandes desafios do século 21. Comida saudável então, ainda mais difícil.
A boa notícia é que não faltam projetos que buscam romper com essa lógica, criando novas relações com os alimentos e com seu potencial sociocultural e educativo. Escolas, museus, tetos de edifícios, casas e praças. Não importa o espaço, as cidades têm demonstrado empenho na urgente tarefa de reconectar as pessoas com aquilo que as faz humanas: o ato de cozinhar.
Educação Alimentar
Na EMEI Dona Leopoldina, localizada no Alto da Lapa, zona oeste de São Paulo, o projeto Viveiros está desde 2012 resgatando o contato das crianças com os alimentos e a natureza. Após uma revitalização do espaço verde da escola, os alunos passaram a cultivar coletivamente uma horta – que fornece os alimentos preparados pelas merendeiras – e visitam regularmente a feira livre da região. O resultado são crianças que, além de terem uma alimentação mais saudável, conseguem compreender melhor o ciclo da vida e se mostram mais propensos a ter uma alimentação rica e variada.
“A relação é diferente de só ter a comida no prato. O aluno quer experimentar o alface que regou, cuidou e viu crescer e ficar bonito. E, por conta disso, as crianças até experimentam mais as comidas diferentes”, afirma a coordenadora pedagógica da escola, Beatriz Garcia Costa.
Em uma roda de conversa com os alunos, uma educadora da EMEI perguntou: “De onde vem o feijão?”. As primeiras respostas foram “do saco do supermercado”, revelando que a dificuldade que as novas gerações têm em vincular o alimento ao seu estado natural. “Mas agora, com a horta, as crianças têm muito cuidado e carinho com as plantas, como se fossem parte delas”, explica Beatriz.
O que a horta não produz os alunos vão buscar na feira acompanhados da equipe da escola e de familiares interessados. Como as turmas se revezam, as visitas ocorrem mais ou menos a cada dois meses. Nesse caso, todo o processo é educativo: atravessar a rua na faixa de pedestres, observar as casas e as pessoas, conversar com os feirantes e até aprender a negociar preços.
“Os feirantes também já ‘adotaram’ as crianças e se colocam na posição de educadores. Um deles, por exemplo, sempre pica quatro ou cinco maços de couve para mostrar aos alunos e tenta garantir que todos aprendam”, relata a educadora. Para encerrar o processo, os restos de comida ainda são levados para o minhocário e composteira, responsáveis por nutrir a horta.
A coordenadora garante que a participação dos alunos no ciclo da alimentação faz com que, mesmo as crianças que participam menos das atividades e que são mais seletivas para comer, quebrem barreiras e experimentem novos alimentos. Além disso, outros saberes tradicionalmente não valorizados, como o das merendeiras, são celebrados pela escola no projeto “Saberes e Sabores”.
No Rio de Janeiro, o Degusta Alemão, projeto realizado entre 2010 e 2012, reuniu escolas, organizações e a comunidade do Complexo do Alemão em uma feira que valorizava a cultura regional por meio da gastronomia. Nesta feira, escolas apresentavam as receitas desenvolvidas com os estudantes ao longo do ano letivo, de forma lúdica e integradas ao planejamento pedagógico da escola.
Retomando a Grécia Antiga, onde as palavras “cozinheiro” e “sacerdote” eram as mesmas – mageiros, cuja raiz é magia – as merendeiras da escola são chamadas de “fadas”, por transformarem o alimento e darem sabor a ele. Como defende Beatriz, a mudança deve começar com a visão que se tem sobre quem faz e prepara a comida.
Uma pitada de identidade
Já em São Paulo, o projeto “Saberes do Território à Mesa” utiliza a gastronomia como estratégia de reconhecimento e valorização das culturas migrantes que chegam às escolas paulistanas, dando visibilidade às múltiplas identidades de estudantes de quatro escolas do bairro do Bom Retiro, centro da capital.
A mudança deve começar com a visão que se tem sobre quem faz e prepara a comida
Criado a partir da articulação de diferentes agentes que atuam no bairro – o Programa Saúde na Escola (PSE), Programa Ambiente Verdes e Saudáveis (PAVs), Projeto O Mundo Cabe em SP, Cidade Escola Aprendiz e as escolas Emei João Theodoro, CEI Dom Gastão, CEI Pequenos Brilhantes e CEI Lar Criança Feliz -, o projeto entrevistou a comunidade sobre seus hábitos alimentares e coletou impressões sobre o papel da culinária em suas vidas.
A resolução 26 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, de 2013, estabelece que as escolas devem fornecer alimentação saudável e adequada aos estudantes, respeitando a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis. Além disso, a educação alimentar e nutricional deve perpassar o currículo escolar. Isso inclui não apenas fornecer alimentos nutritivos e saudáveis, mas também respeitar as necessidades alimentares de cada criança, e apresentar novos alimentos e respeitar a cultura local.
A assistente social Ana Carolina Guanabara, da CEI Dom Gastão, uma das escolas participantes, ressalta que a proposta aproximou mães e pais da escola. “Eles se sentem realmente parte do processo, até pelo cuidado de produzir um material na língua deles, que é um diferencial muito grande.” Na CEI Dom Gastão, 30% dos alunos são bolivianos, e há também migrantes paraguaios, chineses, coreanos e uma família síria.
Até o final do ano, o projeto vai render um livro de receitas e um mini-documentário, que pretende sensibilizar a comunidade para o imenso potencial de intercâmbio cultural nessas unidades de ensino e na cidade. A ideia é que esse canal de diálogo com os familiares, aberto por meio da comida, também promova boas práticas alimentares e eleve a auto-estima das crianças, que terão a possibilidade de ver suas expressões culturais e modos de vida servindo de inspiração para toda a escola.
Em Barcelona, iniciativa semelhante realizada em parceria entre a prefeitura e a ONG SOS Racisme, envolveu mais de 300 pessoas em jantares realizados em casa. A proposta do projeto Família ao Lado (Familia del costad, em catalão) era estreitar laços entre vizinhos, fortalecer o tecido social, lidar com o racismo, derrubar estereótipos e construir uma cidade mais diversa e tolerante.
Em Salvador, o Bairro-escola Rio Vermelho criou o Merenda Com o Chef, um projeto que leva profissionais da cozinha para dentro das escolas com o objetivo de melhorar as refeições servidas aos estudantes da rede pública e, como consequência, a forma como eles enxergam a comida. As oficinas gastronômicas envolviam toda a comunidade escolar e incentivavam o uso de ingredientes locais. O chefe Ramon Simões, do Restaurante Armazém do Reino e um dos participantes do projeto, acredita que a iniciativa ajudava os estudantes a “entenderem a comida não apenas como alimento”, mas também os apoiava no aprendizado de física, química e biologia, ao refletirem sobre o seu preparo.
Durante dois anos, famílias vizinhas e de origens culturais e étnicas diferentes se reuniam para se conhecer e realizar juntas uma refeição. Como não tinham contato até o jantar, voluntários mediavam a preparação do encontro e trabalhavam para que não houvesse imprevistos.
Criado para fazer frente aos atos de intolerância e xenofobia em um município que há cerca de quinze anos recebe um elevado fluxo de migrantes, o projeto fomentava que Barcelona deixasse de ser reconhecida apenas como uma cidade multicultural – onde muitas culturas coexistem – e passasse a ser vista como uma cidade intercultural, na qual prevalece o diálogo e a troca entre as culturas existentes.
No meio da cidade tinha uma horta
Saber de onde vem a comida parece básico, mas nas grandes cidades, onde existem os chamados desertos alimentares – regiões com difícil acesso a alimentos frescos e nutritivos, especialmente frutas, legumes e vegetais, ela ainda parece brotar das prateleiras dos supermercados. Isso tem motivado iniciativas de ocupação do território urbano para plantio e cultivo de alimentos, seja em hortas comunitárias ou feiras orgânicas locais. A premissa da agricultura urbana, movimento que no Brasil já encontra força em cidades como São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Florianópolis, é usar terrenos ociosos e torná-los produtivos novamente, resgatando seu potencial ambiental, social e cultural.
A plataforma Cidades Comestíveis, inaugurada em 2015, mapeia várias hortas comunitárias de São Paulo e região – hoje são cerca de 50 -, além de unir pessoas interessadas em colaborar com a agricultura urbana, seja começando uma horta ou cedendo ferramentas, materiais ou terrenos para o plantio. O fundador André Biazoti, gestor ambiental e micro agricultor urbano, observa que, embora haja um aumento na procura pelo plantio no espaço público urbano, em locais como São Paulo, o diálogo com o poder público ainda se apresenta como uma grande barreira.
“As hortas comunitárias não precisam, a rigor, de autorização, mas é importante ter o diálogo com a prefeitura para esse tipo de ação ser legitimada e entendida como benéfica para a cidade”, acredita. “O principal desafio é construir políticas públicas que permaneçam ao longo de gestões e que criem rotina para lidar com esse tipo de atuação.” No município de São Paulo, já há o Programa de Agricultura Urbana e Periurbana, criado para incentivar a produção agroecológica da cidade através da implantação de hortas, pomares e criação de pequenos animais.
Como explica Biazoti, as hortas cumprem principalmente três funções básicas: ser um espaço onde as pessoas podem exercer seu direito à alimentação adequada; ser um laboratório educador; e promover o direito e a ocupação da cidade. Elas são um espaço de experiência e descoberta para pessoas que não estão habituadas a ter contato próximo e saudável com a natureza, além de estimular o relacionamento com a comunidade e mostrar que os espaços públicos devem ser usados por todos. Também trazem o que o gestor ambiental chama de “empoderamento”, ao permitir que o cidadão produza o próprio alimento, e instigam os cidadãos a buscarem mais qualidade de vida.
“A horta comunitária é um dos braços da agricultura urbana e tem o caráter de consumo comunitário, mas acaba incentivando movimentos como feiras orgânicas e pequenas comercializações para os bairros. É uma proposta interessante para onde o alimento não chega”, argumenta Biazoti, que participa ativamente do cotidiano das hortas do Centro Cultural São Paulo e da Horta das Flores.
Desafio universal
Alimentação integrada ao território e às pessoas que nele vivem não são um desafio apenas nas metrópoles. Mesmo em cidades menores, onde o urbano e o rural estão mais integrados, há muito ainda a ser explorado. É o que atestam as educadoras Gabriela Arakaki, Estela Criscuolo e Leila Vendrametto, do Organicidade, um coletivo que realiza atividades de educação ambiental em escolas públicas, com foco em consumo sustentável e criação e manutenção de jardins, hortas, minhocários e composteiras.
O que elas percebem é que, embora estudantes que vivem nessas regiões ou que são filhos de pais migrantes e trabalhadores rurais tenham mais familiaridade com a questão ambiental, há saberes ancestrais que foram deixados de lado e que, após um trabalho de incentivo, podem voltar a fazer parte do repertório cotidiano dessas crianças e jovens.
O Guia Alimentar da População Brasileira, documento elaborado pelo Ministério da Saúde, dá caminhos para a implementação da alimentação adequada e saudável em todos os ambientes, um direito humano básico. Entre as recomendações do Guia estão não apenas a adequação de características nutricionais, como utilizar óleos, gorduras, sal e açúcar em baixas quantidades e limitar o consumo de alimentos processados e ultraprocessados, mas também atenção a aspectos sociais da comida, como alimentar-se sempre que possível em companhia de outras pessoas e exercitar e partilhar habilidades culinárias. Ou seja, aproveitar todo o potencial da alimentação é muito mais do que comer frutas, legumes e verduras.
“É difícil generalizar, mas quanto mais tempo trabalhamos em uma escola, com educadores e estudantes, mais conseguimos valorizar conhecimentos normalmente esquecidos e sem os quais nossa alimentação não é possível”, avalia Gabriela. Ela se refere aos conhecimentos produzidos por pequenos agricultores, merendeiras, cozinheiras da comunidade, entre outros. “A gente percebe, por exemplo, que nas escolas localizadas nas periferias, em que os pais tendem a trabalhar mais em áreas como jardinagem e agricultura, há mais conhecimento das propriedades medicinais das plantas”, complementa Estela Criscuolo.
Outro caso simbólico: na Virada da Educação, o coletivo trabalhou em uma escola na Praça Roosevelt, centro de São Paulo. A atividade tinha a duração de um dia, mas apenas cinco jovens de cerca de 200 manifestaram real intenção de realizar um trabalho manual, como cortar um bambu e mudar coisas de lugar. Para o coletivo, a participação ativa dos alunos é fundamental para o sucesso das experiências em educação ambiental.
“Nosso maior trabalho é organizar informações dentro de uma cabeça que já vê o mundo, mas não compreende tanto, especialmente em relação aos estudantes menores. Aprender pela observação eleva a autoestima da criança e permite que ela elabore mais questões sobre o mundo que a cerca”, declaram as educadoras, que também esperam ampliar os espaços educadores com o trabalho do Organicidade.
Agir local, pensar global
O trabalho socioambiental com as crianças, realizado desde cedo, tem se mostrado um caminho fértil para retomar a ideia preconizada pelo jornalista e professor da Universidade de Berkeley, Michael Pollan, de que cozinhar é uma atividade que nos define como humanos. Especialista em comida, Polan é autor dos best-sellers “O dilema do onívoro”, “Cozinhar” e “Em defesa da comida”, obras que retomam a história da civilização para compreender a alienação atual sobre os alimentos que chegam à mesa.
Na opinião de Estela Criscuolo, do coletivo Organicidade, refletir sobre a origem do alimento constitui-se um potente disparador para se pensar o meio ambiente. “Nós esquecemos que somos a natureza. Ela não precisa da gente, mas nós precisamos dela. Estamos falando de sobrevivência da espécie humana. Precisamos levar essas ações para a escola para que todos aprendam a respeitar o ambiente e, a partir disso, possam cuidar dele.”
Por isso, as ações escolares de educação ambiental e de ressignificação da alimentação são um passo importante para a transformação de como a sociedade enxerga a comida. “[Os estudantes] levam para casa a expertise de querer plantar. A transformação dessa relação tem surtido mais efeito pelas crianças do que pelos adultos”, revela Gabriela, corresponsável pelas ações do Organicidade.
Mas assim como as intervenções escolares são essenciais, os adultos também podem fazer sua parte, mesmo quando vivem em uma cidade edificada por concreto. “Às vezes, quando se olha para o macro, é difícil pensar em agricultura no meio da cidade”, afirma André Biazoti, do projeto Cidades Comestíveis. “Mas vá ao mutirão de uma horta comunitária: quando a gente vê as pessoas trabalhando juntas, entende que existe uma microatuação e que tem um papel muito importante a cumprir no interior dessa cidade.”