publicado dia 28 de agosto de 2019
A redução de danos como estratégia para as políticas sobre drogas
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 28 de agosto de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
O presidente Jair Bolsonaro anunciou, em julho desse ano, a retirada da sociedade civil do Conselho Nacional de Política sobre Drogas. Entre outros, perderam assento a OAB (Ordem de Advogados do Brasil), a CFM (Conselho Federal de Medicina) e a CFP (Conselho Federal de Psicologia).
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Para a socióloga e secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), Vera Malaguti, o esvaziamento do Conselho é a continuação da prática estatal de olhar a questão de drogas apenas por uma perspectiva de segurança, e não de saúde. Além de demonstrar um desdém pelas pesquisas científicas na área de drogadição.
“É importante ter um conselho plural e qualificado, com pesquisadores, pessoas que trabalhem com diversas áreas, mesmo as de força policial, já que a questão de drogas é olhada de uma perspectiva de criminologia. É este tipo de conselho que pode alimentar as políticas públicas”, afirma a socióloga, que é também autora do livro Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro.
Para corroborar a visão de que o governo tem pouca preocupação com as pesquisas científicas da área, Vera recorda o episódio de censura do estudo da Fiocruz sobre o tema que foi engavetado pela Secretaria Nacional de Política de Drogas, sujeito ao Ministério da Justiça e recentemente liberado.
“Você só pode construir uma política sobre as drogas tendo uma pesquisa com referência, e não baseando-se em interesses dos Estados Unidos em venda de armas e guerra, interesses morais e religiosos. Uma política criminosa e sanitária com relação ao uso que só pode ser solucionado com estudos.”
Ainda que lamente a extinção da participação social do Conselho, a criminologista também não poupa críticas à atuação quase que inerte das políticas sobre drogas no Brasil:
“A política com relação às drogas não só não se inovou como retrocedeu, mantendo uma guerra falida às drogas. Na área de saúde pública se encontram avanços, como a questão da redução de danos. Já na parte criminal, a Lei de 2006 [Lei das Drogas – 11.343/2006, que institui medidas de repressão ao uso pessoal ou tráfico de substâncias ilícitas] produziu um aumento de 40% no encarceramento e toda uma escalada de violência.”
Vera ainda adiciona: “A pergunta que a gente tem que se fazer é porque somos tão adictos do fracasso na guerra às drogas. Imagina uma vacina que não funciona e as pessoas morrem e morrem. Vamos continuar a usar a mesma vacina? Como a gente pode apoiar uma política que não funciona?”
Cracolândia: um território que sintetiza a ausência de políticas públicas
Embora movediço entre várias ruas em São Paulo, é no centro da capital – na região da Cracolândia – que o fluxo geralmente se concentra e se dispersa. O nome foi popularmente dado a um fluxo de pessoas que consome, ou não, determinadas substâncias ilícitas.
Um dos pontos da pesquisa desenvolvida e censurada da Fiocruz é a desmistificação da epidemia do crack: seu uso é muito menor do que se supôs, mas ele é bandeira para políticas de repressão, como nas operações instituídas por João Dória em 2017, que resultaram em violência, internação compulsória e dispersão dos usuários.
É nesse local que atua desde dezembro de 2016 o coletivo A Craco Resiste. Formado democraticamente por pessoas de fora e de dentro da Cracolândia, o grupo atua em processos de redução de danos por meio de cultura, arte e vigílias de proteção contra abusos de força policial.
Um dos integrantes em entrevista coletiva e anônima relata: “A Craco Resiste atua contra a violência policial, pela redução de danos e pelos direitos humanos. Não foi só o nome que escolhemos juntos com quem mora aqui, mas também o que vamos fazer juntos. Trazemos shows, levamos ao cinema, fazemos capoeira, futebol, churrasco. Tudo isso é redução de danos. Quando acabam as atividades, a galera fala ‘Quando a gente está nas atividades, nem lembra que tem drogas’.”
As iniciativas da Craco Resiste são de contrapelo às tomadas pelo poder público, mas embasadas em pesquisas científicas que apontam a redução de danos como um método eficaz e humanista.
“A gente já viu em programas de redução de danos anteriores, como De Braços Abertos, que a pessoa que usava 30 pedras por dia começa a usar cinco”, relata um dos integrantes, se referindo ao programa instituído em São Paulo pelo então prefeito Fernando Haddad.
“Isso já fazia a pessoa melhorar suas relações, trabalhar, e ter um lugar para viver. A discussão entre redução de danos e abstinência não deve ser polarizada. A redução de danos pode ser um caminho para abstinência, mas vamos trabalhar com as pessoas, pois cada ser humano é complexo, cada caso é um caso.”
Ainda em julho deste ano, o Ministério da Saúde anunciou o fim da Política Nacional de Redução de Danos, determinando a abstinência como única política pública possível.
A redução de danos também olha para o indivíduo em sua complexidade, desafiando políticas homogêneas. Os integrantes da Craco Resiste reforçam a ideia de que é preciso enxergar a Cracolândia não somente como um território de mazelas, e sim de indivíduos com histórias e potencialidades diversas.
“Aqui tem morador de rua, universitária, desembargador, arquiteto, artista plástico, uma mistura de culturas. Tem um mesclado cultural que se junta para driblar a solidão. Ninguém fuma crack porque é safado. Não tem uma política pública para apoiar o cara que não consegue trabalhar, não tem moradia, não tem vínculo social”, relata outro integrante.
Quando perguntado ao grupo sobre o desmonte do Conselho da Política Nacional de Drogas, ele foi unânime; ainda que seja mais um dos retrocessos em participação social, a decisão pouco afeta o fluxo:
“A política dificilmente se efetiva, e acaba formando uma película para ações localizadas. A Cracolândia é só uma expressão disso. No fundo, a única política que se efetiva aqui é a presença do aparato repressivo da polícia, como a própria Guarda Civil Metropolitana (GCM).”
A mudança na Política Nacional de Drogas trouxe outra preocupação: a regulamentação das comunidades terapêuticas, unidades de internação privadas geralmente ligadas à entidades religiosas. Atualmente, 1.800 unidades aguardam sanção presidencial.
“A expressão de entrar um Ministro da Saúde [Luiz Henrique Mandetta] que é a personificação do lobby das comunidades terapêuticas diz bastante e é determinante na ação da polícia aqui na Cracolândia”, relata um dos integrantes. “O fluxo nas últimas semanas tinha medo de que houvesse uma ação da GCM e que eles fossem internados compulsoriamente. Por mais que a política não se efetive, ela legitima a atuação e todo mundo sente medo.”
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Para outra membro do coletivo, que acompanhou de perto a situação de uma jovem que foi internada em uma dessas comunidades, a política de internação compulsória é ineficaz:
“Não tem nada de novo na política de internação, isso é de 1.600. A pessoa fica internada um mês e volta pra Cracolândia. Não acontece nada, um mês dopada de manhã, acorda, toma café, fica topada. Quando sai vem para cá, porque para onde ela vai? Tem política pública que a acolha? Por isso defendemos a redução de danos.”