publicado dia 13 de março de 2018
Por meio dos azulejos, ateliê de cerâmica mobiliza comunidade e transforma espaço público
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 13 de março de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
Se a escadaria da rua Mocidade Alegre, que interliga vielas altas e baixas da comunidade Vila Santa Inês, no extremo leste de São Paulo, pudesse reter memórias, estas seriam de alegria.
Lembraria de uma comunidade mobilizada, dos moradores cimentando seus degraus e fixando, com a batida das mãos, azulejos pintados com casas, passarinhos ou raio de sol. Lembraria dos cafés comunitários, dos sambas que embalaram a colorida inauguração e de como a arte aliada à participação social pode aprofundar relações entre comunidade e o espaço público.
A escadaria azulejada Mocidade Alegre é um dos trabalhos alteradores de cor e forma da malha urbana realizado pelo Ateliê Azu. Inaugurado em 2008, o estúdio de cerâmica nasceu da vontade do artista Élcio Torres de compartilhar seus conhecimentos da técnica artesanal com os vizinhos para que “usassem o azulejo como um meio de repensar o espaço público e aumentar suas possibilidades de renda”.
As primeiras oficinas alvoroçaram a comunidade, que nunca havia visto de perto e nem achava possível produzir artesanalmente a cerâmica.
Leandro Araújo foi um entre aqueles se encantaram com a manufatura, encontrando nas horas atravessadas da noite e nos erros e acertos da cerâmica cura para um conturbado período pessoal. “A técnica é fascinante por si só, porque a cerâmica exige o fogo, a queima, a modelagem em água, e não há certeza quanto à forma que o produto final irá tomar, se ele vai explodir ou ficar do jeito que foi modelado”. Sua capacidade de aprender e o gosto pelo ofício logo o tornaram oficineiro e sócio de Élcio.
+Leia mais
– Comunidades promovem participação social e fortalecem democracia no território
– Cobogós e azulejos: designer mapeia afetivamente as ruas de Olinda
– Niggaz: o grafiteiro que virou praça na praça que foi escola
Hoje, os dois se dividem entre as muitas frentes do ateliê: produção comercial, que investiga técnicas viáveis para a manutenção financeira no ramo de cerâmicas utilitárias; as oficinas gratuitas, oferecidas aos sábados para a população local; e por fim, a militância de fazer o azulejo uma ferramenta de transformação social e enlace com a comunidade.
“Azulejo é o meio, o fim são as pessoas”
Foi apostando nesta última abordagem que, em 2010, o Ateliê se inscreveu no Programa VAI – Valorização de Iniciativas Culturais, programa da cidade de São Paulo de incentivo artístico a projetos periféricos, por meio do qual transformou a escadaria Mocidade Alegre.
Com o incentivo garantido e os azulejos em produção, Leandro lembra que faltava ainda resolver como fariam para colocá-los nas escadas. Qual foi sua surpresa ao perceber-se, no dia da colocação, cercado por umas dezenas de moradores, que muito curiosos, vieram ajudá-lo. “De repente, de três ou quatro artesãos colando azulejo, haviam se juntado 30 pessoas, outras faziam vaquinha para comprar lanche, moradores traziam café, tudo de um jeito espontâneo. Foi muito bonito!”, relembra o artesão.
Desde então, outras lugares foram coloridos em iniciativas parecidas: a Praça Dona Neuza foi revitalizada com os azulejos e grafites, homenageando a líder comunitária responsável por muitas das conquistas políticas do bairro; outras escadarias e muros também foram transformados, além de intervenções ocorridas fora do bairro.
Para Leandro, estes espaços transformados sobrevivem à áspera paisagem e continuam intactos porque os moradores, por terem participado efetivamente de sua construção, se sentem pertencentes: “A ideia é sempre fazer junto com os moradores, para que eles sejam os principais causadores da mudança. Quando você faz, você zela. Não quer destruir. No máximo, você quer fazer mais, para deixar outros lugares cada vez mais bacanas!”.
Apesar dos ganhos trazidos pela troca, o artesão não romantiza os dez anos de relação entre Ateliê Azu e a comunidade: “Fazer junto é uma história que parece só bonita, mas na verdade é difícil”, confessa. O ateliê passa por dificuldades financeiras e faz projetos de transformação urbana somente quando recebe aporte de editais ou quando sobra material de trabalhos prévios, enquanto faz malabarismos para atender demandas comerciais e oficinas abertas ao público.
O quintal das crianças é a rua
Desde que abriu as portas, o ateliê conta também com um público especial: a meninada, que assim como Leandro cresceu tendo a rua como quintal.
Em um território onde a escola nem sempre é convidativa e os equipamentos de lazer e cultura são escassos, Leandro e Élcio se viram às voltas com a realidade para tornar o ateliê um ponto de acolhimento para as crianças.
“Percebemos que elas precisam ter um aparelho de expressão próximo, não burocrático, onde o mais importante seja a experiência. Dentro das oficinas, damos o material e a possibilidade de fazer cerâmica, que é na verdade uma possibilidade de criação”, explica Leandro.
A aproximação com os processos pedagógicos fez com que crescesse no ateliê o desejo de aproximar-se dos espaços formais de educação. “Eu acredito muito na escola pública”, conta Élcio. “Depois de muito quebrar a cabeça, entendi que nosso papel deve ser o de fortalecê-la”.
Os primeiros passos já estão sendo dados. Uma das escolas do bairro convidou o ateliê parar criar juntamente aos alunos e à comunidade um grande painel em seu muro contendo a linguagem de libras, como também para idealizar uma oficina de cerâmica dentro da escola.
Em comum, todas as ações do Ateliê Azu possuem o objetivo de fazer da rua outro lugar, onde a criança se sinta representada na ludicidade e o adulto pertencente à sua comunidade. Onde as memórias de outras ruas possam as mesmas da Mocidade Alegre e abertas a todos. “Temos que fazer da rua um quintal melhor para todo mundo ocupar”, conclui Leandro.