publicado dia 16 de setembro de 2020
Pandemia revela urgência na adoção de uma renda básica universal
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 16 de setembro de 2020
Reportagem: Cecília Garcia
Em abril deste ano, após intensa negociação entre os poderes, o governo federal pagou a primeira parcela do auxílio emergencial no valor de R$600 reais para desempregados, trabalhadores informais e famílias afetadas pela pandemia de Covid-19, que já causou mais de 130 mil mortes e intensificou as diversas desigualdades brasileiras.
Embora não isento de críticas – como a dificuldade burocrática para sua obtenção e também a diminuição de seu valor – o auxílio demonstrou a premência de acesso a uma renda que garanta os direitos básicos aos cidadãos em tempos de crise e fora deles.
“Com o auxílio emergencial implementado para aliviar a pobreza, a sociedade percebeu que é possível transferir renda e diminuir a desigualdade. Começam a surgir vozes praticamente consensuais sobre modificação e ampliação dos nossos programas de transferência de renda”, explica Naercio Aquino Menezes Filho, economista, professor e pesquisador do Centro de Gestão e Políticas Públicas (CGPP) do Insper.
Enquanto a ONU (Organizações das Nações Unidas) recomenda que os países considerem a implementação da renda básica, no Brasil, mais de 200 parlamentares de diferentes espectros políticos formaram a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica, ampliando o debate sobre este mecanismo de forma inédita.
“Nunca antes na história desse país e acho que do mundo todo se discutiu tanto a renda básica universal quanto se discute agora”, complementa Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica. “Uma melhor compreensão da sociedade sobre o tema pode impactar diretamente em novas políticas públicas, ou na reforma de políticas como o próprio Bolsa Família, que o governo tenta fazer avançar na direção de uma Renda Brasil*, mas que esperamos que seja na verdade na direção de uma renda básica.”
O programa Renda Brasil foi um proposta do Ministério da Economia para ampliar o Bolsa Família, estendendo-o para trabalhadores informais. No dia 15 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) descartou a implementação do programa, afirmando a manutenção do Bolsa Família até 2022.
Mas o que é a renda básica universal? Histórico e aproximações
Há mais de 500 anos, o humanista e escritor inglês Thomas More foi o primeiro a pensar sobre renda básica universal. Em seu livro Utopia, o estadista acreditava no caráter preventivo da renda: se todas as pessoas tivessem direito a uma quantia periódica de dinheiro, a pobreza e suas consequências se extinguiriam.
Desde então, a ideia permeia debates econômicos, filosóficos e políticos. É dos anos 1980 a consolidação da definição que perdura até hoje. “A renda básica universal é uma forma de proteção social, de direito e participação na riqueza; ela é universal e incondicional porque não há previsão nela de que seus beneficiários adotem qualquer tipo de comportamento em relação ao mercado ou provem que estão inscritos em determinados critérios; ela é periódica e também individual, entendendo que cada sujeito carrega suas necessidades e particularidades”, esmiúça Leandro.
No Brasil, existem políticas públicas próximas à ideia deste benefício. A mais conhecida é o Bolsa Família, programa assistencial criado em 2004 que prevê transferência de renda para famílias em extrema pobreza, mediante a permanência de crianças na escola.
“O Bolsa Família tem características que atendem em parte o conceito da renda básica, como o de ser periódico. Ele começou com 3 milhões de famílias e hoje atende 14,2 milhões, ou seja, está crescendo na direção da universalidade. Mas ainda não existe uma renda básica universal, no Brasil ou no mundo, que atenda a todos os requisitos de sua definição”, esclarece Leandro.
Também em 2004, o então senador Eduardo Suplicy desenhou na lei 10.835/04 a Renda Básica de Cidadania. Nela, estão previstos deslocamentos orçamentários para assegurar um pagamento de igual valor para todos os cidadãos do Brasil. Apesar de aprovada, ela não saiu do papel.
Leandro afirma que o país ainda não “bateu o martelo” com relação ao tema. Isso se dá tanto por receio da alocação de recursos para esse programa de transferência, mas também por um estigma da pobreza que ainda cerca projetos sociais.
“Por muito tempo se acusou que o Bolsa Família ia gerar vagabundos, que pessoas teriam mais filhos para receber o benefício. Tudo isso faz parte de um conjunto de preconceitos que precisam ser superados. É preciso entender a renda como um direito que assegura outros.”
Ante a pandemia, renda básica universal garantiria direitos de crianças e adolescentes
Diante dos agravamentos sociais e econômicos desencadeados pela pandemia, a renda básica universal seria fundamental para crianças e adolescentes, fatia da população vulnerável e que tem sido assombrada por violações como fome, falta de acesso à escola e trabalho infantil.
“A primeira infância é um período de rápido desenvolvimento cerebral, no qual a criança desenvolve habilidades cognitivas e socioemocionais. Se houver privação de renda, como na pandemia, se mães e pais estiverem estressados porque não têm dinheiro para alimentação, se não houver itens básicos, isso gera atrasos neste desenvolvimento”, argumenta Aquino.
O advogado e coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do CONDEPE- SP (Conselho Estadual de Direitos Humanos) Ariel de Castro Alves exemplifica: “O benefício ajudaria na compra de material escolar, na garantia de acesso à internet. Em tempos de pandemia, em que a questão da merenda está incerta, ela permitiria que estudantes tivessem o acesso à alimentação garantido.”
O benefício também teria caráter preventivo em relação ao trabalho infantil. “Crianças se veem pressionadas em suas casas pela falta de condições, muitas vezes pela fome, ao trabalho infantil. Então a renda básica teria o papel de prevenir violações como exploração sexual ou envolvimento com tráfico de drogas, que figuram entre as piores formas de trabalho infantil existentes”, continua Ariel.
Além de assegurar condições basilares de sobrevivência, a renda é, segundo Leandro, uma garantia de respeito à formação integral dos jovens vulneráveis, que poderiam, assim como jovens de classes médias e alta, ter amplitude de opções sobre os rumos de suas vidas e carreiras.
“A renda básica ajuda a ter tempo. Tempo de cuidado, de estudo, de descanso e lazer, de prática esportiva e de dedicação profissional. Muitas vezes, o jovem deixa de estudar porque é obrigado a trabalhar, e aceita trabalhos com as piores condições de mercado, o que gera desde trabalho infantil até uma precarização da mão de obra. A renda básica permitiria que as pessoas não fossem obrigadas a ingressar cedo no mercado de trabalho e que tivessem escolha.”