publicado dia 22 de agosto de 2017
Orgulho e resistência: o percurso LGBTQIA+ pelo direito à cidade
Reportagem: Nana Soares
publicado dia 22 de agosto de 2017
Reportagem: Nana Soares
Na noite do dia 19 de agosto de 1983, dezenas de lésbicas reuniram-se no Ferro’s Bar, em São Paulo, e protestaram contra a discriminação que haviam sofrido ali quase um mês antes, quando os donos do estabelecimento proibiram a circulação do periódico ChanaComChana e chamaram a polícia para reprimir quem reclamasse do fato. A resposta das mulheres ficou conhecida como “Stonewall brasileiro” – em referência ao protesto no bar homônimo dos EUA – e inspirou a criação do dia da visibilidade lésbica no Brasil.As agressões à população LGBTQIA+ no Brasil não se resumiram a esse episódio.
Pelo contrário: a luta de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais está desde o início relacionada ao direito à cidade, ou seja, à possibilidade de circular pelo espaço público e participar de sua construção cotidiana sem ter de esconder sua identidade.
No Brasil, a expressão máxima desse movimento é a Parada do Orgulho LGBTQIA+ de São Paulo, que chega a levar 3 milhões de pessoas para a Avenida Paulista a cada domingo do feriado de Corpus Christi, sendo a maior Parada do tipo no mundo.
Embora o levante no Ferro’s Bar, em São Paulo, tenha tido relevância para o movimento de mulheres lésbicas, elas definiram o dia 29 de agosto como o Dia da Visibilidade Lésbica por ser a data de realização do primeiro Seminário Nacional de Lésbicas e Bissexuais (Senale).
Tradição há 20 anos em São Paulo, as paradas LGBTQIA+ tiveram sua origem nos Estados Unidos e rememoram o aniversário de um ano da Rebelião de Stonewall, marco internacional dos direitos LGBT. Em 28 de junho de 1969, a polícia invadiu o bar Stonewall Inn, em Nova Iorque, contra a presença da população LGBTQIA+ no local. A repressão não passou em branco e os homossexuais, com apoio dos moradores da região, entraram em um confronto com a polícia que se estendeu por vários dias. É por conta desses eventos que junho é conhecido como o mês do orgulho LGBTQIA+.
“Stonewall foi um momento de virada. Um dos motivos é o momento político vivido na época, com protestos contra a Guerra do Vietnã, pelos direitos civis e das mulheres. Era um momento muito frutífero para ser ativista”, avalia o historiador Jim Downs, professor do Connecticut College, nos Estados Unidos, que acredita que os protestos trouxeram à luz a opressão sofrida pelas pessoas LGBTQIA+.
“Stonewall é lembrado pela História como um movimento de homens homossexuais, mas não foi. Também havia lésbicas e muitas drag queens e transgêneros, até então os mais atuantes no movimento LGBTQIA+”, acrescenta Downs. Ele atribui ao crescimento da epidemia de AIDS, que afetava majoritariamente homens gays, essa espécie de distorção da memória.
Apesar de icônico, Stonewall não foi o primeiro protesto do então “movimento gay”, mas foi o primeiro a abraçar a diversidade do grupo. Como relata o professor do Connecticut College, as marchas anteriores pediam aos participantes que se vestissem com certo decoro para dar a impressão de respeitabilidade à sociedade da época. “Eles queriam ganhar o respeito das pessoas e ser vistos como pessoas dignas de confiança, não como monstros.”
Nesse contexto, a Parada organizada pelo ativista Craig Rodwell, a primeira no modelo que conhecemos hoje, representou uma ruptura. Rodwell era um defensor da ideia de que os LGBTQIA+, acostumados a viver escondidos e a portas fechadas, conquistassem o espaço público – o ativista chegou a abrir uma livraria com o intuito de criar um espaço de sociabilidade para essa parcela da população para além dos bares. “Mas o que ele queria era um espaço aberto, em que fosse possível publicizar a cultura gay, que era muito rica”, explica Downs.
Em seu livro Stand by me: The forgotten History of Gay Liberation [“Fique ao meu lado: a História esquecida da liberação gay”, em tradução livre], o historiador defende que a década de 70 é erroneamente lembrada como uma década de intensa liberação sexual. Na visão de Downs, essa reescrita da história nasce da necessidade de explicar o rápido crescimento da epidemia de AIDS da década seguinte.
Brasil: ditadura e repressão
No Brasil, o florescimento do movimento LGBTQIA+ foi interrompido por um adversário de peso: a ditadura militar. Em suas décadas de vigência, houve altos e baixos para a população LGBTQIA+, mas em geral a repressão política dos anos de chumbo trouxe também uma fiscalização moral e dos costumes, com a homossexualidade sendo vista como uma ameaça subversiva ao governo autoritário, uma afronta à “família” e à “moral” da época.
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” foi pioneira na investigação de crimes contra minorias durante a ditadura militar brasileira. Em seu relatório, incluiu um capítulo inteiro sobre a relação entre ditadura e homossexualidade, enfatizando que “durante todo o período da ditadura, as políticas de controle social e de repressão política adotaram, em muitos casos, um viés conservador em termos morais”, com rondas policiais abordando e prendendo homossexuais e travestis sob a acusação de vadiagem, além da censura a publicações especializadas (como o Jornal “Lampião da Esquina”) e a espaços artísticos abertos às sexualidades dissidentes, como o teatro e a música.
Por outro lado, a ditadura foi, em um certo sentido, catalisadora para a cidadania LGBTQIA+. Ao menos em sua primeira fase. Em artigo sobre o período, os historiadores James Green e Renan Quinalha descreveram que “a repressão teve de conviver com seu contraponto, que foi a liberdade e a resistência que se materializaram em espaços de sociabilidades homossexuais, ainda que guetificados”. Em outras palavras: enquanto havia tentativas de padronizar a sociedade sob um padrão conservador, uma revolução sexual estava em curso, com uma nova autonomia das mulheres, classes médias e novos espaços de sociabilidade LGBT.
A situação mudou com o AI-5, publicado em dezembro de 1968, quando a repressão se intensificou. No ano de 1969, sete diplomatas foram expurgados do Itamaraty por sua identidade LGBTQIA+, e as rondas e prisões arbitrárias continuaram. O período mais repressivo da ditadura também foi também o de mais difícil articulação de movimentos sociais.
Durante a redemocratização, eles começam a renascer, com a publicação de periódicos, manifestações artísticas e reorganização de grupos políticos. Dois eventos se destacaram como resposta à repressão sofrida pelos LGBT: a passeata contra o delegado Richetti (1980) e o protesto no Ferro’s Bar (1983), ambos em São Paulo, local “privilegiado” para a repressão e também para a resistência a ela.
Os delegados Guido Fonseca e, em especial, José Wilson Richetti ampliaram as rondas na região central de São Paulo, onde havia um grande número de LGBTQIA+s. As rondas de Richetti perseguiam os grupos mais vulneráveis e estigmatizados, como prostitutas, travestis e gays. Segundo consta na declaração de Richetti à imprensa, obtida pela Comissão da Verdade, entre 300 e 500 pessoas eram levadas por dia para as delegacias.
Em 1980, a chamada “Operação Sapatão” deteve as lésbicas frequentadoras de vários estabelecimentos da cidade (como os bares Ferro’s, Bixiguinha e Cachação) apenas por serem lésbicas. Richetti chegou a declarar em um jornal:
“Precisamos tirar das ruas os pederastas, os maconheiros, as prostitutas. (…) Em 70, não havia travestis e as prostitutas não roubavam como fazem hoje. Perdemos a cidade para eles. Qual é a família que se atreve a sair no centro da cidade à noite? No Largo do Arouche, os travestis param os carros e sentam no capô. É possível uma coisa dessas?”
Foi a partir desse cenário que o movimento LGBT brasileiro, unificado ao movimento de mulheres e negros, organizou e realizou uma caminhada contra as prisões arbitrárias e as “operações de limpeza” de LGBTQIA+ na cidade. A manifestação se deu no dia 14 de junho de 1980 nas escadarias do Teatro Municipal, o que muitos consideram a primeira mobilização pública do movimento LGBT no Brasil. Na ocasião, Richetti e o Secretário de Segurança Pública, Octavio Gonzaga Junior, foram convidados a prestar esclarecimentos aos deputados na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).
Anos depois, a ativista Marisa Fernandes declarou à Comissão da Verdade: “Lá vamos nós, contagiadas pelo medo, cada gesto muito medido. Nós distribuímos panfletos, chegamos antes para poder convidar a população ali e deixar claro para todos que aquela passeata era contra a polícia e a favor das vítimas, contra o abuso dos policiais que ofendiam os nossos sentimentos mais íntimos, nossos corpos e nos feriam moralmente.”
Ferro’s bar e a (in)visibilidade lésbica
A repressão direcionada às lésbicas também acontecia durante a ditadura, embora, como aponta o relatório da Comissão da Verdade, existam menos registros. Não à toa, a visibilidade sempre foi a maior demanda desse grupo, historicamente apagado dentro do movimento LGBT – a própria sigla LGBT é fruto da demanda das lésbicas: antes, a abreviação usada era “GLBT”, mas as lésbicas reivindicaram que o “L” viesse primeiro para que, ao menos simbolicamente, elas se tornassem mais visíveis. Recentemente, a sigla ganhou mais letras, que simbolizam também as populações queer, intersexual, assexual e demais orientações sexuais e identidades de gênero.
O caso mais icônico de repressão e resistência das mulheres lésbicas foi o Ferro’s Bar, que abre esta reportagem, conhecido como “pequeno Stonewall brasileiro”. O bar era intensamente frequentado pelo público lésbico à noite, quando grupos militantes também atuavam, discutiam e vendiam o boletim ChanacomChana.
Na noite do dia 23 de julho de 1983, o proprietário e os seguranças do bar tentaram expulsar as mulheres que vendiam o folhetim. Elas conseguiram permanecer, mas nas semanas seguintes passaram a encontrar cada vez mais dificuldades para frequentar aquele espaço, sustentado majoritariamente por elas. Por isso, unidas a outros movimentos sociais, à imprensa e a políticos apoiadores da causa, as lésbicas marcaram uma ação no bar para o dia 19 de agosto.
Em entrevista ao Homomento, Míriam Martinho, que participou do ato organizado pelo grupo GALF (Grupo Ação Lésbico-Feminista), revelou que após o levante “houve um acréscimo de tribos lésbicas ao público do bar, porque as feministas homossexuais passaram a frequentar o ‘pedaço’ com maior frequência”.
“A Parada não era nosso jeito de lutar e era necessário dar uma resposta mais política à pauta”
Mais de trinta anos depois, as mulheres lésbicas e bissexuais ainda buscam visibilidade e reivindicam seu direito à cidade. Desde 2002, elas realizam a Caminhada das Mulheres Lésbicas e Bissexuais, às vésperas da Parada de São Paulo. A proposta é que suas identidades e pautas específicas deixem de ser apagadas ou diluídas no movimento e passem a ser reconhecidas pela sociedade.
“A caminhada surgiu como uma necessidade de contrapor o recorte masculino que a Parada tem. Até hoje ela é chamada de Parada Gay”, explica a tradutora Maíra Silva, corresponsável pela organização da Caminhada nos anos de 2002, 2015 e 2016. “[A caminhada] nasce com mulheres mais ligadas a movimentos sociais, enquanto o movimento LGBTQIA+ é mais liberal. Houve uma percepção que a Parada não era nosso jeito de lutar e que era necessário dar uma resposta mais política à pauta”, detalha ela, explicando o tom da ação.
Dentre as pautas específicas das mulheres LGBTQIA+ encontram-se o atendimento escasso em saúde e a violência, que Maíra enfatiza ser diferente daquela sofrida pelos homens gays. Há, por exemplo, a prática dos estupros “corretivos”, um crime que atinge principalmente mulheres lésbicas e bissexuais.
“Em qualquer contexto, onde a homossexualidade é criminalizada ou não, as demandas das mulheres são diferentes das dos homens. Sofremos uma violência que está relacionada também ao gênero e não só à orientação sexual”, sublinha a tradutora.
Brasil: país de extremos
Quase quatro décadas após a passeata realizada contra Richetti, os brasileiros LGBTQIA+ ainda não têm seus direitos garantidos. Ao contrário, o Brasil segue sendo o líder em assassinatos dessa população em todo o mundo: 38% dos assassinatos de LGBTQIA+ perpetrados no mundo, entre janeiro de 2008 e junho de 2016, ocorreram em território nacional, segundo dados da ONG Transrespect.
Por aqui, a expectativa de vida de travestis e transexuais é de apenas 35 anos – em contraposição a média de 75 anos calculada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para os brasileiro. O Grupo Gay da Bahia (GGB), que há anos realiza o levantamento de mortes LGBTQIA+* baseado em casos noticiados pela imprensa e por famílias, reportou o recorde de 346 pessoas mortas em 2016 só por integrarem a sigla.
No Brasil, a primeira adoção feita por um casal homoafetivo ocorreu em 2005, em São Paulo, motivando outros casos pelo país.
O casamento homoafetivo e a adoção de crianças por casais homossexuais também não estão garantidos em lei, embora resoluções assegurem que esses direitos não podem ser negados. As pessoas trans ainda precisam ser diagnosticadas com disforia de gênero e enfrentar longos e burocráticos processos judiciais para garantir a alteração de seu nome civil (saiba mais sobre as demandas da população LGBTQIA+).
“O Brasil ainda está avançado em relação a direitos LGBT no mundo, porque aqui as práticas não são criminalizadas e, embora não haja lei, é possível casar e adotar. Estamos avançados nas pautas gerais, mas temos muita dificuldade com as pautas específicas, por isso a urgência de continuar ser articulando”, defende Maíra Silva.
A Parada do Orgulho LGBTQIA+ de São Paulo começou em 1997 com um grupo de 500 a 2 mil pessoas. Em 2009, em sua 13ª edição, 13 pessoas ficaram feridas em uma bomba lançada contra a população que celebrava seu orgulho. Hoje, o evento registra uma média de três milhões de pessoas por edição e pode se tornar patrimônio imaterial da cidade pelo Projeto de Lei 0399/2017 dos vereadores Sâmia Bomfim e Eduardo Suplicy. É o retrato de um país de extremos e de uma população que não abre mão do direito de ocupar as ruas com suas identidades.