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publicado dia 22 de outubro de 2014

No ônibus, Raquel Rolnik discute como o transporte público moldou São Paulo

Reportagem:

A última vez que a reportagem do Portal Aprendiz esteve no Terminal Parque Dom Pedro II foi em 11 de junho de 2013. Cobríamos o Terceiro Grande Ato Contra o Aumento da Tarifa, organizado pelo Movimento Passe Livre (MPL). Próximo ao Terminal, bombas explodiam e pessoas se afastavam tossindo. Transeuntes e manifestantes, apartados e assustados, corriam ressentidos da violência. Um pneu de ônibus pegava fogo. A Polícia Militar bloqueava a entrada do Terminal e lançava bombas, mais bombas, causando um bocado de desespero. Bandeiras tremulavam e a rua era só estouro, gritos e estrondos. As bombas de efeito moral deixavam um zumbido persistente. Tudo ali, na velha várzea do Tietê, asfaltada, terminalizada. O portal da Zona Leste no Centro.

Desde 2006, o local recebe os já conhecidos catracaços – quando o Movimento Passe Livre (MPL) abre as catracas dos ônibus para deixar os passageiros entrarem. Uma ação direta contra o transporte caro, precário e mercantilizado. Uma área da cidade que se  converte em zona de guerra quando a tarifa do transporte público é alterada. De 1,70 pra 2,00. De 2,00 para 2,30. De 2,30 para 2,70. De 2,70 para 3,00. De 3,00 para 3,20 e de volta para 3,00.

Este foi também o palco escolhido pela Trupe Sinhá Zózima, que desde 2007 realiza espetáculos teatrais dentro de um ônibus, para sua mais recente residência “Os minutos que se vão com o tempo: da imobilidade urbana ao direito à poesia, à cidade e à vida”, contemplado pela 24ª Edição da Lei de Fomento. Como parte da pesquisa, o grupo realiza, desde fevereiro, uma série de debates e intervenções culturais batizadas de “Toda terça tem trabalho tem teatro”.

“Esse terminal é emblemático na medida em que ele organiza a história da nossa cidade. É uma expressão perfeita da lógica da desordem, da concentração de renda e poder”.

Após encenarem o “Cordel do amor sem fim”, “Valsa n° 6”, “O poeta e o cavaleiro” e a “Mostra de teatro no ônibus”, a Trupe segue para um novo desafio: levar o teatro para dentro da 4313-10 Terminal Parque Dom Pedro II – Terminal Tiradentes, a mais longa linha que parte dali. Anderson Maurício, diretor da Sinhá Zózima, se diz curioso para saber como as pessoas vão reagir.

“Em 2009, durante o projeto ‘Arte Expressa’, uma mostra de 12 grupos de teatro em ônibus da cidade, minha esposa realizou uma pesquisa com os passageiros e descobriu que 75% nunca tinham ido a um teatro e 20% havia ido mas há mais de vinte anos. Isso nos impactou profundamente.”

Apresentação do "Cordel do Amor Sem Fim", da Trupe Sinhá Zózima
Apresentação do “Cordel do Amor Sem Fim”, da Trupe Sinhá Zózima

O estudo atual e o futuro espetáculo se baseiam na vida e história oral dos passageiros da linha e buscam criar espaços de convivência dentro do transporte público, onde, segundo Anderson Maurício, “as pessoas passam quase um terço de suas vidas, automatizadas, apertadas”. A escolha do Terminal não deixa dúvidas: “é onde tem mais trabalhador”.

Na noite de segunda-feira (20/10), como parte das atividades da Trupe, a arquiteta e professora de da Universidade de São Paulo (USP), ex-relatora especial da ONU para o Direito à Moradia, Raquel Rolnik, foi chamada para falar sobre Urbanismo, Transporte e Moradia.

Altos e baixos: uma radiografia da desigualdade

Sentada na cadeirinha do cobrador no antigo ônibus e iluminada pelas lâmpadas estendidas na “cordinha” usada pelos passageiros para dar sinal para o motorista, Rolnik admite ser a primeira vez que dá aula dentro de um coletivo e ressalta a importância do local escolhido.

“Esse terminal é emblemático na medida em que ele organiza a história da nossa cidade. É uma expressão perfeita da lógica da desordem, da concentração de renda e poder”, reflete ela, ao narrar a história daquele espaço, relacionando-o com a São Paulo de hoje. “Dizem que São Paulo é um caos, sem planejamento, sem lógica. Não é, e eu vou mostrar porquê.”

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Da cadeira do cobrador, a urbanista Raquel Rolnik traçou um panorama da formação da cidade de São Paulo.

O Terminal Parque Dom Pedro II repousa sobre a maior várzea plana do Rio Tietê que, no passado, espalhava suas águas sobre os terrenos baixos de São Paulo. Situado ao lado da colina central da cidade (Pátio do Colégio/Sé), o Terminal aponta para a zona leste, definida pela urbanista como “a cidade do povo”. Do outro lado, o Anhangabaú irradia para as zonas sul e oeste, onde o desenvolvimento da “cidade rica” aconteceu.

Essa divisão entre baixo e alto revela os contornos da formação paulistana. “Os ricos ficavam nos bairros altos, salubres. Os pobres se espalhavam por onde dava, nas várzeas, cheias de bicho, calor, mosquito e doença. Tem a Lapa e o Alto da Lapa, a Moóca e o Alto da Moóca, Pinheiros e o Alto de Pinheiros – que, inclusive, fica numa baixada. O importante era que o nome transmitisse o prestígio”, analisa.

Nos bairros ricos, a companhia Light garantia o bonde elétrico, enquanto o restante da cidade se desenvolvia ao redor das estações de trem, onde se erguiam as primeiras indústrias, as primeiras habitações populares, vilas operárias arrendadas e cortiços. Foi assim na Lapa, Brás, Belém, Barra Funda.

Na rabeira dos bondes, surgiam os primeiros ônibus: caminhões modificados que levavam os passageiros que não cabiam nos veículos elétricos – espécie de lotações rudimentares. O caos do transporte em São Paulo tem história e pedigree.

Enquanto isso, no espaço do Terminal, ficava o Parque do Carmo. Uma linda área verde com uma ilhota no meio, batizada de Ilha dos Amores. Na passagem dos anos 30 para os 40, entrou na baila das reformas urbanísticas promovidas por Prestes Maia, então prefeito do município.

Vista geral do Terminal Parque Dom Pedro II
Vista geral do Terminal Parque Dom Pedro II

“A questão da moradia, ou seja, como fazer casas sem pagar bons salários, foi resolvida em São Paulo pelo modelo de expansão rodoviária. Os sistemas de avenidas radiais e perimetrais – do qual o Rodoanel é a mais nova expressão, assim como antes foram as marginais – pautaram a expansão da cidade. Se nos bairros ricos era preciso ter hospital, escola, praça, para os trabalhadores bastava chegar pista, asfalto e ônibus. Bastava garantir que eles fossem e voltassem do serviço.”

Essa urbanização informal, avalia Rolnik, é fruto de uma longa luta por direitos e “autoprodução de cidade” realizada por operários que chegavam aos milhões de todo o país e que, em larga medida, trabalhavam na indústria automobilística que florescia com o novo modelo.

“A especulação imobiliária captura o esforço coletivo de se produzir cidade”.

“Foram anéis e mais anéis de desenvolvimento. A antiga periferia – Tatuapé, Vila Matilde – foi se estabelecendo através das conquistas populares e, conforme melhoravam de vida, iam expulsando os mais pobres cada vez para mais longe, até chegar nessa imensa mancha metropolitana que temos hoje. Mas sempre com o ônibus como eixo de expansão.” Coincide com essa lógica, acrescenta ela, o aparecimento da estrutura “terminalista” da cidade: em cada asa do centro, um terminal aponta para uma zona da metrópole, como se fossem imensos portais de transporte.

São Paulo crescia e as vias expressas guiavam a “dilaceração e fragmentação dos bairros centrais”, hoje divididos pelas avenidas, como a Vinte e três de maio, a Nove de julho, entre outras. O Metrô, que inaugura suas primeiras estações na década de 70, foi criado para atender a classe média da época, na opinião da professora, “de forma insípida”.

Mas havia outra forma possível de desenvolvimento?

Para Rolnik, não há dúvidas. Ela acredita que a opção por um modelo que “organiza para desorganizar” foi deliberada e consciente. A falta de um pacto sócio-territorial distributivo, associado à consolidação precária de direitos e à perpetuação da desigualdade, talharam a malha urbana e consolidaram um modelo que já encontra perpetuação em programas como o Minha Casa, Minha Vida, “que produz casas e não cidades”.

Se nos bairros ricos era preciso ter hospital, escola, praça, para os trabalhadores bastava chegar pista, asfalto e ônibus.

“A intenção é boa e o povo precisa de casas, mas são guetos afastados, onde a terra é barata. [O programa] Não toca na estrutura geral das coisas e o preço inicial, se é barato, acaba encarecido por uma vida inteira pagando passagem de ônibus e trem”, pondera.

Essa ordem, baseada em vias expressas para quem tem automóvel e no transporte público para o povo, entrou em colapso. “A mesma avenida que trava o Mercedes-Benz, trava a Brasília, o Fusca e o ônibus”, afirma, sugerindo que o colapso sempre foi o signo regente do urbanismo paulistano ou a “velha ordem que ainda não ruiu”.

Mas dentro da velha ordem, forja-se a nova. A partir dessa reflexão, Raquel falou sobre o significado das manifestações de junho de 2013 e a possibilidade de implantação da tarifa zero – proposta de política pública do MPL que elimina a cobrança no transporte público.

“Não é por acaso que o transporte público foi a fagulha que incendiou a pradaria. Mas também transcende isso. A catraca simboliza a exclusão, a mercantilização da vida, da saúde, da educação. É a mesma catraca que está na porta da universidade, do hospital particular, do que deveriam ser direitos básicos. Neste sentido, significou o questionamento do direito à cidade, um direito bloqueado por catracas.”

Para a urbanista, a tarifa zero desvelaria esse modelo que concentra riqueza em um território pequeno e a ladeia de miséria, e que, através da especulação imobiliária, “captura a terra urbana e cria preços que sequestram o esforço coletivo de se produzir cidade”.

A noção de “esforço coletivo de se produzir cidade” parece balizar essa nova ordem. Ou seja, o aumento da consciência coletiva a respeito do espaço urbano, entendido agora como território de todos, expressa uma mudança. Revela um desejo de espaço público. E as ocupações artísticas, por moradia e até o fato de as pessoas preferirem mesa de bar na calçada expressam essa ruptura. “É como se as pessoas dissessem: quero ficar na rua, quero ficar na praça”, sintetiza Rolnik.

A catraca simboliza a exclusão, a mercantilização da vida, da saúde, da educação.

A construção de corredores de ônibus e ciclofaixas também indicam novas prioridades para a cidade. Rolnik relembra os tempos do governo de Erundina, quando atuou como Diretora de Planejamento, e da reação negativa à proposta de construção de corredores exclusivos de ônibus. “Não teve apoio, nem do PT, e poderia ter levado a um impeachment”.

Um novo colapso?

Embora as novas formas de pensar a cidade estejam ganhando força, São Paulo se vê diante de um novo precipício: a crise da água.

Sistema Cantareira funciona com 3% da capacidade.
Sistema Cantareira funciona com 3% da capacidade.

No ano 2000, em Cochabamba, na Bolívia, a empresa americana Bechtel, em parceria com o governo local, ameaçava privatizar a gestão da água. A noção – profundamente andina – de que os recursos naturais são de todos, mobilizou a ocupação da praça central da cidade por mais de quatro meses. Barricadas, levantadas por adolescentes, jovens e velhos, questionavam a mudança. O episódio, hoje conhecido como “A Guerra da Água”, levou a cidade a declarar Estado de Sítio. Após intensa repressão e resistência, o governo recuou. Até hoje, a água permanece intocada.

O momento foi considerado um ponto de virada na organização dos movimentos sociais bolivianos e na ascensão do primeiro indígena à presidência do país. E não deixa de dizer algo sobre o que vivemos: aponta, a partir da escassez, para o que pode ser diferente.

“Já vimos revoluções urbanas acontecerem nos lugares mais improváveis, que acarretaram em mudanças profundas nas cidades. Sinto que São Paulo está numa hora propícia. Está longe, mas é um momento especial”, conclui Raquel.

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