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publicado dia 30 de agosto de 2018

O território é educativo quando está aberto à imprevisibilidade, defendem arquitetos e educadora

Reportagem:

Bibliotecas comunitárias brotadas a partir da demanda de territórios, ocupando espaços tão díspares como cemitérios ou postos de saúde. Uma arquitetura que mingua separações óbvias entre construções e a cidade onde estão. Escolas que não se contentam em ser ensimesmadas,  criando porosidade entre suas práticas e o que é praticado no entorno.

Esses e outras experiências provindas de demandas do território foram bússolas para o encontro entre a educadora social Bel Santos Mayer e os arquitetos Paulo Mendes da Rocha e Bia Goulart, que abriu a 4ª edição do Seminário Internacional de Educação Integral (SIEI). Com o tema “A Escola e Vida lá Fora”, o evento aconteceu nos dias 28 e 29 de agosto entre as janelas permeáveis do SESC 24 de maio, arquitetado pelo próprio Paulo.

convidados paulo mendes rocha, bel santos mayer e beatriz goulart sentados no siei
Da esquerda para direita, Paulo Mendes da Rocha, Bel Santos Mayer e Beatriz Goulart / Crédito: Pilar Lacerda

“Em um cenário brasileiro marcado pela desigualdade, a ocupação de espaços e a visibilidade das relações, saberes e fazeres e das histórias tecidas a partir dos territórios são fundamentais para garantia de direitos e equidade na educação”, afirmou Bel, mediadora do diálogo.

Esse território, que pode ser tanto o chão da escola, um prédio que se ergue no centro da cidade, ou uma biblioteca comunitária, não é nunca estático ou monolítico. É justamente a vida que acontece neste território e o ocupa que Paulo Mendes da Rocha evocou para dizer o porquê da arquitetura ser importante na discussão da educação: “O objetivo da arquitetura é de amparar a imprevisibilidade da vida.”

A biblioteca comunitária como território do imprevisível

Bibliotecas comunitárias são territórios educativos per se: espaços nascidos da ausência de políticas públicas, elas brotam de demandas do território, muitas vezes nas mais adversas condições. Foi assim com a biblioteca Caminhos da Leitura, em Parelheiros, da qual Bel foi uma das idealizadoras. “Ocupar os espaços que a gente tem na periferia é trazer outros espaços para nosso território, e também mudar o olhar que temos sobre ele.”

Crianças na entrada da biblioteca comunitária Caminhos da Leitura / Crédito: Facebook
Crianças na entrada da biblioteca comunitária Caminhos da Leitura / Crédito: Facebook

Como a maioria das bibliotecas comunitárias, a Caminhos da Leitura tem uma trajetória de itinerância. De 2008 até hoje, a biblioteca passou por um posto de saúde, onde livros eram consumidos ao lado de remédios, como também por um cemitério, onde pouco se imagina que pode haver vida literária.

As bibliotecas comunitárias se constituem como espaço de resistência da palavra e cultura local. Leia mais na matéria Biblioteca Comunitária é ponte entre literatura e território do Portal Aprendiz.

Os 27 jovens da região que a reivindicaram e ajudaram a construí-la queriam, sobretudo, um espaço de “sacristia”, como denomina Bel: lugar não necessariamente de leitura, mas de silêncio, aberto para a imprevisibilidade de uso.  “Uma ocupação do território, uma ressignificação que se dá no sentido de povoá-lo com palavras, porque elas nascem em lugares onde muitas vezes as palavras não existem, onde as reflexões e conversas sobre elas não são dadas como direito e possibilidade para além dos muros da escola e, às vezes, nem nela.”

A arquitetura de uma educação imprevisível

“Amparar a imprevisibilidade da vida e não nos acostumar. Isso cabe sim de ser discutido na escola, porque a escola nos ensina a nos acostumar e que o imprevisível é perigoso. É por isso que, em na minha trajetória, eu busco na cidade pistas e inspirações para melhorar a escola”, sentenciou Bia Goulart.

Em quase 20 anos de trabalho com as concepções de bairro-escola e cidade educadora, Bia admitiu que embora às vezes se depare com uma escola de fato estanque, também é nas escolas abertas à comunidade que enxerga uma possibilidade de transformação. “A escola está aí, ainda insisto nela. Ela pode ganhar novos significados, pode ser o espaço da diferença, dos diferentes olhares. A escola é um espaço público.”

Bia busca inspirações para a escola em lugares com maior janela para a inconcretude e o oblíquo. O próprio SESC 24 de Maio é para a arquiteta um exemplo de território educativo, onde mais importante que o espaço, é o entre-lugar, isto é, os vãos mistos que constituem novas experiências físicas e subjetivas para quem neles se aventura.

No SESC 24 de maio, o prédio e a rua não são separados. É possível caminhar distraidamente e já estar dentro da estrutura / Crédito: ArchDaily
No SESC 24 de maio, o prédio e a rua não são separados. É possível caminhar distraidamente e já estar dentro da estrutura / Crédito: ArchDaily

“Você está andando pelo centro de São Paulo e de repente está dentro do SESC, a calçada se abre. Essa é a magia da arquitetura, trabalhar a transição, o entre-lugar, as passagens, os muros que finalmente podem ser pulados. Na arquitetura, o imprevisível é possível”, relacionou a arquiteta.

O exercício de imaginação do imprevisível também fez com que Paulo Mendes da Rocha lembrasse que ainda é tarefa da educação a descolonização do pensamento eurocêntrico, avesso à dúvida. Na biblioteca comunitária, na escola onde se abre fendas e faísca conhecimento, está a educação genuinamente brasileira.

Confira o glossário sobre território educativo na plataforma Cidades Educadoras.

“Inventar modos de educar contra a educação totalitária, coercitiva, que obriga o outro a cumprir isso ou aquilo. Incentivar a curiosidade, mostrar que o desejo convoca técnicas políticas e ciências revolucionárias. Podemos não saber exatamente o que fazer. Mas olhando para trás, sabemos o que não podemos fazer de jeito nenhum.”

O direito à paisagem

No chão das práticas, ações disruptivas, que se apoiam na imprevisibilidade do ser. Bia trouxe à discussão uma interessante experiência de creche construída nos três últimos andares de um prédio no centro de São Paulo.

Norteada pela ideia de que aquele espaço deveria proporcionar encontro com a riqueza urbana, Bia propôs uma série do que ela chama de dispositivos territorializantes, ou seja, brechas que intermediam o espaço e o que está fora dele: janelas de vidro onde se pode rabiscar com cera, espaços de silêncio, com janelas para a Praça da Sé e as testas de outros prédios. “O horizonte está muito curto. Temos que lutar pelo direito de ver, possuir a paisagem”, afirmou a arquiteta.

Bel complementou que a biblioteca comunitária, por seu caráter elástico e de ocupação de espaços já existentes, também reafirma o direito de olhar para fora:

“A biblioteca comunitária está sempre no meio do caminho de alguém. Quando Beatriz e Paulo falam e defendem essas janelas e entre-espaços, a biblioteca comunitária também é janela, que serve para olhar para fora, mas ao mesmo tempo, uma janela espelho, que quando você olha através, se vê.”

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