publicado dia 16 de fevereiro de 2016
“O sonho de Lu Shzu” conta jornada de criança trabalhadora na China
Reportagem: Clipping
publicado dia 16 de fevereiro de 2016
Reportagem: Clipping
Por Carolina Pezzoni, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
“Com o tempo, fica difícil explicar como nasce uma história”, afirmou o escritor espanhol Ricardo Gómez, autor de livros para crianças e jovens. A narrativa da obra se faz e refaz, “somando impressões e desejos”, distraindo-se do primeiro fio de pensamento – esmerou-se em descrever ao Promenino sobre o seu livro publicado mais recentemente no Brasil, pela editora Mov Palavras, cuja temática é o trabalho infantil: O sonho de Lu Shzu.
Ainda mais difícil é explicar às crianças do mundo a permanência da situação que vive a sua protagonista: uma dagonmei, que significa menina trabalhadora, condição comum para as meninas e meninos criados na cidade de Shenzen e na região do delta do Rio Pérola, uma das mais desenvolvidas no sul da China. Lu Shzu desperta todos os dias antes de nascer o sol e toma o seu caminho para a fábrica de brinquedos, onde seus dedos mínimos de criança são úteis para encaixar milhares de olhos sem brilho em rostos de bonecas que jamais podem ser suas.
Trata-se de uma narrativa forjada a partir de uma distorção fundamental: a crueza desta realidade – como observa o autor, não muito diferente do trabalho infantil em outros lugares do mundo – ante o consumo desenfreado nos países ocidentais. “Existe um enorme cinismo social em relação ao trabalho infantil, sobre o qual preferimos fechar os olhos. Se fizéssemos uma lista de todos os produtos que utilizamos e que provêm da exploração, seja infantil ou adulta, ficaríamos impressionados”, argumenta Gómez.
Esta não é a primeira vez que a literatura articula a respeito. No século 19, os romancistas Charles Dickens e Charles Kingsley já lembravam as contradições geradas pela Revolução Industrial, que empregara milhares de crianças em fábricas e minas na Europa. A eles, o criador de Lu Shzu acrescenta os nomes de contemporâneos e conterrâneos espanhóis, como Vicente Muñoz Puelles, Miguel Griot e Jordi Sierra i Fabra, que também refletem sobre temas complexos junto ao público infantil e juvenil.
O que acontece, na opinião de Ricardo, é que este tipo de literatura não encontra ressonância. “Não interessa que tenha um peso social, porque evidencia a ambiguidade do poder e dos meios de comunicação”, afirma. “Todo mundo sabe que no mundo há milhares de fazendas, fábricas, minas e lixões onde trabalham crianças. A solução é complexa, porque não se trata apenas de proibir o trabalho infantil, mas de introduzir novas regras de produção e salários justos, algo que o capitalismo certamente não irá facilitar.”
Apesar do contexto sombrio que a rodeia, na ficção, assim como muitas vezes acontece na realidade, a personagem de Lu Shzu não questiona além do que faz e, a sua maneira, está feliz com sua vida ao lado da família. (Diferente de outras dagonmei, ela não é obrigada a dormir na fábrica.) Desta forma, o livro prescinde de fazer um juízo moral e de ser indulgente diante da infância para descortinar uma realidade complexa, à altura dos pequenos leitores.
Em sintonia com a narrativa, a ilustração expressa a sensação – apesar de oferecer sinais de outros sentimentos mais vacilantes, como a raiva ou a tristeza – de que a menina está satisfeita com o que faz. Como compreende a autora de seus traços, Tesa González, “o entorno é sombrio, mas ela é uma menina que o naturaliza. Sua personagem veste roupas coloridas e carrega um lenço vermelho (intencional, como marca de identificação para as outras meninas que trabalham), e seu pequeno mundo vira de pernas para o ar quando reconhece, vê e toca o que não pode possuir, ainda que esteja ao alcance de suas mãos”.
O conflito surge quando a menina passa a querer o que está fora do seu alcance. Somente aí, vulnerável diante do desejo, Lu Shzu se vê exposta e o castigo recai sobre ela. Aparecem, a partir deste momento, outros temas que permeiam a história, para além do trabalho infantil: o perigo do desejo e dos sonhos criados pela publicidade; a dignidade dos antepassados, representada na figura de sua avó, e o conforto das tradições, e como se pode transmiti-los às gerações futuras.
É um livro que, como definiu a editora da Mov Palavras, Dani Gutfreund, traz desafios de diferentes ordens e nos coloca diante de questões importantes em relação à nossa sociedade e formação moral. “Assuntos delicados e complexos são aqueles que mais nos movimentam”, afirma. “O sonho de Lu Shzu deixa ao leitor a tarefa de pensar sobre uma situação que, como muitas, não tem certo e errado.”
Embora habite uma realidade crua, o destino da boneca de membros despedaçados que Lu Shzu segue meticulosamente recompondo e construindo ao longo de sua jornada de criança explorada é também uma alegoria da esperança para o leitor que – como convida o autor – se dispuser a abrir o leque do seu olhar. Afinal, como quer a nossa protagonista, “a vida, como as histórias, dá muitas voltas”.
Leitura mediada
Na opinião da ilustradora Tesa González, os temas difíceis são os que oferecem mais espaço ao debate, ao questionamento do bom e do mau, à solução de conflitos. “Se não há conflitos em um conto, seria menos conto”. A partir da sua participação de encontros em escolas com crianças pequenas, ela afirma que O sonho de Lu Shzu é um relato que as impressiona e que ouvem com muitíssima atenção. “Quando começamos a debater sobre o que ouviram, leram e viram, elas ficam perplexas ao saber, ainda que por meio de um conto, que existem crianças que trabalham na atualidade.”
“Se pensarmos um pouco nos contos tradicionais, não acredito que tenham temas fáceis. Crescemos com eles e seguem atuais. Quando lemos, nos identificamos com os personagens (…) e não me parece que tenham nos traumatizado”, defende Tesa. A seu ver, temos de falar mais com as crianças sobre o que leem, resolver suas dúvidas, aprender a gerenciar as emoções que surgem a partir da leitura.
Para o autor Ricardo Gómez, o desconcerto dos mediadores é compreensível – em termos. “Vivemos em sociedades imersas em doutrina, publicidade, moda, medo, egoísmo, banalidade e estupidez, na qual existem também pessoas que praticam a amizade, a generosidade, o amor, a solidariedade e o heroísmo”, constata. “Com os meios de comunicação atuais e sem ler um só livro, as crianças e os jovens são conscientes de que existem situações ‘difíceis’. Como disse Tesa, nós, seres humanos, aprendemos com os contos clássicos a reconhecer o mal, a sermos prevenidos, como se manifesta a inveja… A literatura é precisamente o que nos permite organizar o ruído do mundo e nos fortalecer para viver nele.”