publicado dia 8 de março de 2019
As muitas famílias brasileiras
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 8 de março de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
O quintal azul e vermelho da casa da jornalista Jéssica Moreira em Perus, zona noroeste paulistana, é partilhado por três casas: nelas vivem sua mãe Luzia, sua avó quase centenária Laurentina e a prima Caroline, herdeiras da história de uma família extensa oriunda de Atibaia, interior de São Paulo.
Jéssica lembra de uma infância farta em primos, tios e avós. “Peguei características de cada um, referências de todas essas pessoas. Não é à toa que trabalho com direitos humanos: aprendi a viver com a diferença e a diversidade”, conta.
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Brasil afora tantas outras famílias se parecem ou divergem completamente do modelo familiar de Jéssica. Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2015, o arranjo composto por pai, mãe e filhos deixou de ser maioria: 57,7% dos lares são habitados por outros formatos, como famílias multigeracionais ocupando a mesma casa, mães solo, casais homoafetivos e uniões sem filhos.
“Família é uma instituição sensível e dinâmica às mudanças sociais. Ou seja, não existe um único modelo de família. Há uma diversidade de arranjos e um intercruzamento de instituições sociais”, explica Belinda Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Mudanças no campo dos valores, cultura, religião, gênero e até econômicas provocam transformações dentro do bojo familiar. Em especial, Belinda aponta “que ao longo do século XX, a questão da mudança do papel da mulher na sociedade” mudou o núcleo das famílias brasileiras.
Exemplos desse fenômeno não faltam. Mãe sola de Júlia Beatriz e Ian Ramos, a historiadora e socióloga Silviane Ramos Lopes lembra de sempre ter estado rodeada pela força de seus ancestrais quilombolas e das muitas mulheres que ajudaram a criá-la, como sua mãe e avó de criação.
“Foi a força intrauterina, com a benção dos meus ancestrais, que me deu força e autoestima como mulher, feminista e quilombola”. Silviane nasceu no quilombo urbano Vila Bela da Santíssima Trindade, em Cuiabá (MT).
Dois documentos da legislação brasileira foram importantes no reconhecimento dos múltiplos arranjos familiares: a Constituição de 1988, primeira a afirmar de maneira pétrea o caráter mutável da família, e o Código Civil de 2002, que também reconheceu os diversos arranjos familiares e a união estável como forma de família.
“A concepção de família é uma área de conflitos na sociedade e, hoje, a gente vê isso nitidamente, com uma defesa da família de modelo heteronormativo, enquanto outros grupos sociais reivindicam o reconhecimento jurídico de outras formas de configuração, como as uniões homoafetivas. O campo jurídico ao mesmo tempo que expressa esse campo de batalhas é impulsionador de mudanças sociais por meio da criação de novas leis”, declara Belinda.
Com apenas 6 anos de idade, Murillo Alves aponta no corpo as partes que são mais parecidas com a sua “mãe 1”, a designer Pâmella Alves: “As orelhas e as sobrancelhas!”. Já na “mãe 2”, a designer de moda Andrea Beulke, mostra a barriga, o joelho e a cor dos cabelos.
Quando Deia, como ele carinhosamente chama, conheceu Pâmella, não somente se apaixonou por ela, como também por Murillo, que na época tinha um ano de idade. Juntas há 5 anos, a família hoje divide um apartamento em São Paulo com a irmã de Andrea, Letícia, e o vira-lata Bowie.
Já o técnico pedagogo Eduardo de Carvalho Alencar e o estudante de serviço social Rodrigo de Carvalho Alencar estão juntos há sete anos. Em dezembro de 2018, em uma cerimônia para familiares e amigos, oficializaram a união estável, que começou com um encontro tímido no bairro de Parelheiros, extremo sul de São Paulo.
“Foi a nossa luta de sempre que nos fez querer casar e oficializar perante a justiça o que já era oficial na nossa família. Uma das grandes conquistas foi poder entrar no nosso casamento, eu com meu pai e minha mãe, e ser recebido no altar com todos os nosso amigos e parentes”, relata Rodrigo.
Apesar dos avanços, políticas como o Estatuto da Família, projeto de lei que declarava como família núcleos composto apenas por pai e mãe – que está atualmente parado no Senado – ou a declaração do vice-presidente Hamilton Mourão, que afirmou que famílias sem pai ou avô eram “fábricas de desajustados”, mostram que ainda há um longo caminho a ser percorrido na concepção de múltiplas famílias.
“O conceito de família tradicional brasileira é muito danoso”, afirma Belinda. “O modelo normativo pode ser muito violento porque desqualifica outros arranjos – como se fossem por princípio inferiores frente a um modelo superior – e dá margem para discriminação e formas de relação sociais muito violentas, que podem chegar até a violência física. Mais da metade das famílias brasileiras são feitas de outros arranjos, famílias extensas, monoparentais, homoafetivas, e cada uma precisa ser considerada na sua especificidade”.