publicado dia 1 de setembro de 2021
Marco temporal pode tirar direito ao território de povos indígenas
Reportagem: gabryellagarcia
publicado dia 1 de setembro de 2021
Reportagem: gabryellagarcia
Foi retomado na tarde desta quarta-feira (01/09), no Superior Tribunal Federal (STF), o julgamento acerca do marco temporal. Ele chegou a ser iniciado na última quinta-feira (26/08), mas foi suspenso. De acordo com a tese, povos originários indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por eles até a data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1.988.
Para o mestre em Direito Agroambiental e doutorando em Direito Socioambiental, Tiago Resende Botelho, o marco temporal “é uma ficção jurídica mal inventada que visa beneficiar o agronegócio em detrimento aos povos indígenas”. Ele afirma que a tese vai de desencontro ao que diz a Constituição Federal, uma vez que nela é adotada a tese do indigenato e diz que os povos indígenas têm direito à língua, costumes, organizações e terras. “Cabe à União demarcar as terras indígenas e não colocar um prazo, eles simplesmente têm o direito de ter o território reconhecido”, afirma o especialista.
Ele também destaca que, se povos indígenas não ocupavam determinados territórios em 5 de outubro de 1.988, foi justamente por conta da atuação do Estado em períodos como a colonização e ditadura. “Eles não ocupavam por causa da adoção de uma tese integracionista que tinha o objetivo de extinguir os povos indígenas. Eles foram expulsos de seus territórios, foram dizimados de forma muito violenta”.
Além de inconstitucional por ferir o artigo 231 da Constituição Federal, que coloca como função da União a demarcação de terras indígenas, Botelho também classificou o marco temporal como “inconvencional”, por violentar tratados internacionais – dos quais o Brasil é signatário – que reconhecem os direitos de povos indígenas.
“Ela violenta a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre direitos dos povos indígenas. Não pode se falar em povos indígenas sem falar em demarcação de territórios. O marco temporal violenta a Constituição Federal e declarações universais de direitos humanos, documentos em que o Brasil se compromete a demarcar terras indígenas. É uma aversão à Constituição e aos direitos humanos”.
A Constituição Federal de 88 estabelecia um prazo de até cinco anos para que todas terras indígenas fossem demarcadas no Brasil, ou seja, até 1.993. No entanto, isso não aconteceu. Botelho afirma que atualmente a maior parte das terras demarcadas hoje – 90%, segundo ele – estão na região da Amazônia Legal e reafirma: “o marco temporal irá impactar todos os territórios para além da Amazônia Legal que não foram demarcados por incompetência do Estado brasileiro e que agora tenta pavimentar toda a violência histórica que povos indígenas sempre sofreram”.
A tese do marco temporal teve seu início com a demarcação da terra indígena Raposo Serra do Sol, em Roraima, que foi concluída em 2005, através de um decreto presidencial. Em 2009, através do julgamento da petição 3.388, a tese foi confirmada pelo STF. Na decisão do Supremo, ficou estipulado que os indígenas das etnias Macuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona possuíam o direito sobre suas terras.
Em 2.017, no governo de Michel Temer, o marco temporal passou a ganhar contornos práticos, uma vez que a Advocacia-Geral da União (AGU) apropriou-se da decisão do STF para emitir o parecer 001/2017 e impor, de forma obrigatória, que as terras indígenas fossem demarcadas a partir do desenho que se tinha em 1.988. Botelho destaca, entretanto, que o marco temporal não é objeto de nenhuma das 19 condicionantes do caso Raposa Serra do Sol.
Paralelamente ao julgamento do marco temporal no STF, também tramita desde 2007 no Congresso o Projeto de Lei (PL) 490, de autoria de Homero Pereira (PR-MT). A proposta do PL é de alterar o Estatuto do Índio (Lei n° 6.001), promulgado em 1.973. Desde então o projeto recebeu 13 novos pontos e foi arquivado e desarquivado três vezes.
O texto em questão propõe alterações nas regras de demarcações de terras indígenas. Atualmente, de acordo com a CF, as demarcações devem ser feitas pela União, em conjunto com uma equipe técnica multidisciplinar e com a Funai. A CF também deixa claro que não há necessidade de comprovar data de posse da terra, uma vez que povos indígenas são considerados originários no Brasil.
Caso o PL 490 seja aprovado, pedidos de demarcação de terras que não estivessem ocupadas por povos indígenas em 5 de outubro de 1.988 serão negados e a aprovação (ou não) dos pedidos caberá ao Congresso. O texto também proíbe a ampliação das reservas indígenas já existentes, além de abrir espaço para exploração hídrica, energética, expansão da malha viária, mineração e garimpo nesses territórios caso haja interesse do Governo.
Botelho também destacou que em caso de negativa do Supremo em relação ao marca temporal, o impacto na PL 490 será muito grande. “A decisão impacta diretamente porque se o STF votar contrário ao marco temporal a PL 490, já nasce inconstitucional. Porém, se votar a favor, o PL ganha força e povos indígenas terão muitos outros direitos retirados. Vai ser liberada a grilagem e a mineração. O lobby do PL é a exploração de terras indígenas”, finaliza o advogado.