publicado dia 8 de setembro de 2020
Mandatos coletivos criam experiência político pedagógica para a democracia brasileira
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 8 de setembro de 2020
Reportagem: Cecília Garcia
Os mandatos coletivos ganham cada vez mais espaço nas disputas eleitorais estaduais e municipais. Segundo levantamento da RAPS (Rede de Ação Política para Sustentabilidade), nas eleições de 2016 e 2018, 98 mandatos coletivos concorreram a cargos, com 22 eleitos. A expectativa é que para 2020 este número cresça.
“São campanhas e mandatos que se pretendem mais plurais e diversos em suas pautas”, relata a cientista política Tathiana Chicarino. “Eles inserem pautas não tradicionais ou que pelo menos não eram até 2013. Na Bancada Ativista, por exemplo, há questões de gênero, indígenas e de maternidade que vão aparecer todas em um mesmo mandato.”
Os mandatos coletivos operam geralmente de duas formas: mandatos eleitos individualmente se unem para trabalhar coletivamente no gabinete, como é o caso da Gabinetona em Minas Gerais; ou ainda, uma chapa coletiva se forma durante a corrida eleitoral e se mantém assim depois de eleita.
Este foi o caso da mandata Juntas (PSOL-PE), eleita em 2018 e composta por cinco codeputadas de diferentes regiões de Pernambuco. “Nós optamos pelo mandato coletivo porque quando uma mulher se coloca dentro de um espaço repleto de machismo estrutural como é a política, ela tende a se sentir sozinha. Quando juntas, conseguimos nos articular para ocupar um espaço de poder e decisão, nos fortalecendo e enfrentando os desafios juntas”, relata Joelma Carla da Silva, uma das codeputadas.
Embora não previstos na lei eleitoral, os mandatos coletivos também não estão vetados por ela. Está parada no Senado uma PEC de autoria da deputada Renata Abreu (Pode/SP) para regulamentar o mandato coletivo dentro da Constituição.
Mesmo depois de dois anos eleitas, a rotina das codeputadas da Juntas ainda causa estranhamento nos parlamentares de mandatos convencionais. “Cinco pessoas conseguem fazer o que uma nunca conseguiria. Enquanto uma codeputada está em audiência, outra está em sessão, uma fica no gabinete atendendo a população e outras duas viajam pelo Estado, conversando com agricultores e quilombolas”, detalha Joelma.
A mandata coletiva estabeleceu essa rotina pulverizada para dar conta das diferentes agendas e estar em contato com a população. São conquistas da Juntas a presidência da comissão de Cidadania, Direitos Humanos e Participação Popular e a implementação de uma lei orçamentária para cultura e habitação, com participação popular.
Para que a mandata funcione, Joelma afirma que é basilar a capacidade de diálogo, tanto entre as codeputadas quanto com a sociedade civil. “Nos mantemos no diálogo. Ficamos horas e horas conversando até sair consenso. Nunca tivemos votação, e para muitos parlamentares homens isso é uma novidade. Quando uma de nós não concorda com o posicionamento da outra, a gente senta e só sai da cadeira até estarmos de acordo.”
A capacidade e a disposição para dialogar tem, na opinião de Tathiana, origem na fundação dos mandatos coletivos que, embora presentes no Brasil desde 1994, ganharam força em 2016. “Especialmente dentro do campo progressista, essas candidaturas nascem de movimentos sociais, de coletivos de ação política, no bojo dos grupos ativistas que nascem em resposta à instabilidade política daquele ano.”
Quando os mandatos coletivos chegam ao poder, seu desejo por renovação institucional e política muitas vezes colide com câmaras e assembleias voltadas para o protagonismo de indivíduos e partidos, ocupados majoritariamente por homens e pouco afeitos a processos participativos.
“Do ponto de vista político, temos uma história de autoritarismo no Brasil que aconteceu até ontem, com ecos que se refletem nas práticas de agora. Tratar e pensar política de forma coletiva não está no nosso imaginário”, reforça Tathiana. “Um dos desafios desses mandatos coletivos é justamente adentrar em um espaço que tem toda uma institucionalidade, mas também não perder essa filiação forte e intensa que se tem com os movimentos sociais e coletivos.”
Joelma e sua mandata sentiram isso desde o primeiro dia no Legislativo. Elas não podem subir juntas no púlpito durante votações ou sessões e enfrentam ainda desafios espaciais para acomodá-las. O próprio tempo do legislativo exigiu adaptação.
“É difícil querer dar voz e vez para a população em uma casa que tem muita rapidez. Chega um projeto de lei, queremos discutir melhor, mas às vezes ele é aprovado tão rapidamente que é difícil de articular. Nos organizamos em comissões para articular, nos antecipar e tentar parar ou dar continuidade a um projeto de lei”, relata a codeputada.
Para Tathiana, os movimentos de mandatos coletivos inauguram novos e desafiadores jeitos de fazer política, que devem ser explorados e incentivados nas próximas eleições. “Parafraseando a Bancada Ativista, o mandato coletivo é uma experiência político pedagógica. Estamos acostumados com um sistema em que a ordem vem de cima para baixo: o governador manda, o deputado pede e os assessores fazem. Mas os codeputados não fazem assim. Eles precisam debater, formular consenso, o que leva ao contraditório, a discussões com amparos técnicos, em um processo democrático intenso.”