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publicado dia 24 de julho de 2019

Lydia Hortélio e a cultura das infâncias brasileiras

Reportagem:

Há mais de sete décadas, Lydia Hortélio é uma “ativista sem fim pela cultura da infância”, como definiu a pesquisadora Renata Meirelles. Seja observando crianças no sertão da Bahia pulando amarelinha ou catalogando centenas de cantigas populares, a educadora criada em Serrinha (BA) dedicou uma vida a documentar a infância brasileira em seus brinquedos* e acalantos.

*No nordeste, Lydia diz que não se faz diferença entre o brinquedo – objeto que desperta o lúdico – e a brincadeira. É tudo brinquedo.

“O brincar é a essência do ser humano. Vamos afirmar isso e vamos ser muito felizes”, falou a educadora em apresentação ao público na última terça-feira, (23), no Itaú Cultural, em São Paulo. 

Em frente a audiência, Lydia defendeu uma revolução das crianças e sistematizou seus aprendizados do longo tempo de investigação sobre as infâncias brasileiras.

O Portal Aprendiz organizou alguns dos saberes de Lydia e de outros especialistas, como a pedagoga Maria Amélia Pinho Pereira, da Casa Redonda. Confira!

#Natureza como espaço do brincar 

“O lugar de brincar é natureza. Ela é o espaço de brincar por excelência. A casa da criança, território de sonho e encontro”, defendeu Lydia. 

Muitos brinquedos que a educadora documentou têm a natureza como espaço de criação e inventividade. É com os pés e mãos na terra, experimentando a altura das árvores ou fazendo de matéria orgânica um carrinho ou outro brinquedo que a criança toma consciência de si, dos seus eixos, e da relação que seu corpo estabelece com o mundo.

“Os meninos estão hoje assim, limitados a falanginha (disse Lydia se referindo aos dedos na tela do celular). E estamos descontentes, tristes, aborrecidos, estranhando até o mais querido. A energia que se espera dessas crianças não se conclui”. 

Ela amparou suas falas em uma série de fotografias próprias em que conecta brincadeiras populares aos elementos fogo, ar, água e terra. Uma delas, em que crianças se debruçam sobre pedrinhas para brincar, mostra os pequenos e pequenas aprendendo a desenvolver a esperteza das mãos. “Ali, as crianças estavam na sua inteireza”. 

Inspire-seBrincreto, a iniciativa que transformou um terreno vazio em Paraisópolis em um espaço de brincar

crianças brincando com pedrinhas
Crianças brincando com pedrinhas / Crédito: Lydia Hortélio

#Tudo é brinquedo 

Em meio a doçura de sua apresentação, Lydia fez uma defesa aguerrida: “Eu não gosto de falar. Tem esse apelido dos brinquedos pedagógicos. Não tem brinquedo pedagógico, não existe. Porque brinquedo não ensina nada. Você brinca para ser feliz. A alta pedagogia inventou os brinquedos pedagógicos, mas eles são tão caros que ninguém consegue acessá-los”. 

Na Ocupação Lydia Hortélio, uma gama diversa de brinquedos revelam a simplicidade e a engenhosidade da brincadeira da infância. São conchas que servem de chocalho, barcos de filhos de pescadores feitos de lascas das embarcações dos pais, ou as pedras, que nas mãos das crianças viram mil brincadeiras, como o jogo das cinco pedrinhas. 

Não há necessariamente neles um propósito, mas sempre uma membrana de engenharia e inventividade que só alguém que se entrega à brincadeira na sua completude pode compreender.

“Brinquedo é um organismo vivo. Expressão da inteireza. É a inteligência com o corpo. A sensibilidade e exercício da cidadania. A gente se queixa e acha que menino quer fazer tudo que gosta. Mas não, porque não tem brinquedo sem regra. O brincar tem as regras. A amarelinha tem as regras, a gente precisa das regras para passar além. Para mim essa é a definição da cidadania. Quem dera nós, meninos grandes, vivêssemos dessa forma, respeitando as regras e o outro”. 

brinquedos de lydia hortélio
Um dos brinquedos da coleção de Lydia Hortélio / Crédito: Itaú Cultural

#O brincar como exercício de cidadania 

A pedagoga Maria Amélia Pinho Pereira, a Péo, diretora da Casa Redonda e uma das convidadas para o debate, complementou as falas de Lydia sobre o brincar enquanto construção de relações: 

“A essência fundamental do brincar, que é o próprio nome etimologicamente já diz, é o vínculo. A linguagem da brincadeira é uma linguagem de vínculos. O nosso problema na humanidade, a dificuldade de relacionamento humano, de um ouvir o outro, de um contactar com o outro, é fruto de gerações que não brincaram, da década de 1980 para cá”. 

Para a educadora, que gere um jardim de infância em Carapicuíba (SP), onde o brincar é incentivado e o contato da natureza faz parte do cotidiano, é preciso pensar na escola como espaço obrigatório para o cultivo dessa alteridade: 

“A escola tem que se redefinir, não dá mais para fazer escola em que a criança não possa criar laços. O brincar é eminentemente uma relação com o outro. Se antes era importante por trazer alegria e liberdade, hoje a brincadeira é fundamental para o desenvolvimento das corretas relações humanas”. 

Ela ainda apontou a necessidade da escola verdadeiramente brasileira: “Esse mestiço que a gente é – com raízes afro-brasileiras, indígenas, ibéricas – essas três raízes nossas deveriam estar dentro do processo de educação como estão presentes nas manifestações culturais. O Brasil deveria entrar na escola, o que não aconteceu até hoje”. 

Leia também: Cultura das infâncias e como nós adultos quase a destruímos 

#Música tradicional da infância como invólucro de cultura

As cantigas de infância são parte importante da pesquisa de Lydia. Para ela, além de revelarem as primícias da cultura brasileira, também mostram as potências que a fala ou escrita não conseguem ativar. 

“A língua é a coluna vertebral da música do Brasil. É ela que dá os acertos e fraseados da música. É isso que faz a gente brasileiro. Tem muitas alegrias encobertas na experiência da música. E a música do Brasil é maravilhosa. A gente tem índios de quantas etnias diferentes e suas músicas e línguas. Tem os ibérios, tem os afro-brasileiros”. 

Durante sua vida de pesquisa, Lydia constatou que as riquezas das cantigas estão nos lugares mais ermos e mais afastados, na língua de um povo que muitas vezes é analfabeto, mas que sabe brincar com uma criança ou fazê-la ninar. 

Objetos e histórias que compõem o relicário de uma vida dedicada à observação da infância estão expostos na Ocupação Lydia Hortélio, que fica em cartaz do dia 20 de julho até 8 de setembro no Itaú Cultural, em São Paulo.

“A quantidade de formas literárias que existem na música dos que não sabem escrever! Eu já tirei mais de 600 cantigas em Serrinha (BA) e tenho certeza que não fiz uma pesquisa exaustiva. Quanto de música em nosso país, em cada um de nós!”

Ela ainda convocou os presentes a fazerem essa mesma pesquisa com seus entes, em suas cidades natais, “buscando as músicas de si mesmos”. Mas que não há fórmulas prontas: “Não façam o que eu fiz, só façam o que sentirem, então dará certo”. 

uma das mestras de lydia
Eliza Oliveira da Paixão, uma das mestras populares e guardiã das cantoras / Crédito: Lydia Hortélio
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