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publicado dia 30 de março de 2015

KidZânia: a cidade contra a infância

Reportagem:

A quem não é criança, o crachá é absolutamente necessário para entrar no imenso espaço da KidZânia, uma cidade infantil instalada no subsolo do Shopping Eldorado, localizado na zona oeste de São Paulo. Sem ele, a polícia do local – formada por crianças de 4 a 14 anos – é autorizada a retirar o invasor. Soa esquisito à primeira vista. Como pode haver uma cidade dentro de um estabelecimento comercial? E, nessa cidade, uma polícia infantil?

Em funcionamento desde dezembro de 2013 no Brasil, a KidZânia reproduz uma cidade fictícia para as crianças, dando a elas a possibilidade de assumir papeis de profissionais adultos. Ao todo, há 52 atividades disponíveis, desde brincar de ser médico ou jornalista da Folha de S. Paulo a tornar-se um bombeiro ou fotógrafo da Nikon.

KidZaniaDe domingo a domingo, a cidade recebe visitas em dois turnos: das 9h às 14h e das 15h às 20h. A entrada pode ser confundida com uma fila de check-in da TAM no aeroporto; o ingresso é de fato um bilhete de embarque. Após atravessar um detector de metais, a criança recebe um cheque no valor de 50 kidZos (moeda local), que deve ser trocado por cédulas de dinheiro no banco Bradesco.

Com os kidZos em mãos, ela tem cinco horas para gastá-los nas atividades pagas – como a fábrica de chocolate da Kopenhagen e de ketchup da Heinz – ou ainda aumentar seus ganhos exercendo profissões. Ao final da experiência, o dinheiro que restar fica guardado em uma poupança no mesmo banco e pode ser usado em futuras visitas. Para deixar o local, é necessário passar por um Centro de Imigração e Alfândega.

Redação do jornal da KidZânia.
Redação do jornal da KidZânia.

Edutenimento

Presente em 18 cidades de 15 países, a KidZânia surgiu em 1999, no México, e se orgulha de levar o conceito de “edutenimento” (educação + entretenimento) para diversas crianças do mundo. “Nosso foco não é a diversão, mas sim a educação que transmitimos de uma maneira muito natural e sutil para as crianças através da linguagem delas, que é o brincar. De uma forma que elas não percebem, conseguimos passar um pouco de conteúdo educacional relacionado a cada atividade”, afirma Pedro Faria, gerente de conteúdo da KidZânia.

KidZaniaEle acredita que o espaço, que recebe visitas de escolas de segunda a quinta-feira, pode fazer parte de um programa extracurricular. “É um teste vocacional natural, para a criança descobrir brincando o que ela gosta de fazer.” A visita com a escola, aliás, é uma maneira de tornar o preço do passeio menos salgado: é dado 50% de desconto na entrada das crianças (de R$120 por R$60 – os pais que quiserem acompanhar os filhos desembolsam R$50).

Para Lucio Medina Mattos, gerente de comunicação do empreendimento, aos poucos, as pessoas estão entendendo que é um investimento que vale a pena. “Se deixar o filho no fliperama e ficar comprando ficha, talvez gaste isso em duas horas. Aqui, a criança tem cinco horas e todo um agregado educacional. A gente sabe que não é barato para o Brasil, mas os pais conseguem fazer esse contraponto.”

KidZaniaMini shopping

“O que queremos é uma cidade real adaptada para as crianças”, aponta Faria, ao justificar a presença de mais de 20 empresas reais na cidade de mentira. No espaço de 8.500 m², tudo é permeado por marcas de grandes empresas brasileiras e estrangeiras, o que aumenta a sensação de se estar passeando por um mini shopping  a céu aberto – no teto, um desenho feito pelo grafiteiro Eduardo Kobra reproduz um final de tarde.

“As marcas nos ajudam com o know how e trazem realismo para a experiência”, argumenta. Os scripts das atividades são uma propriedade intelectual da KidZânia. “Não abrimos espaço para a marca dirigir o que o monitor vai falar para as crianças.”

Reprodução de céu e árvore.
Reprodução de céu e árvore.

Para a filial brasileira, foram investidos cerca de R$ 50 milhões. O contrato com o Shopping Eldorado tem duração prevista de 20 anos. Cerca de 58 mil pessoas já passaram por ali e a expectativa é receber cerca de 700 mil visitantes só no primeiro ano.

Cidade para o consumo

Embora não haja interferência das marcas no conteúdo, a hiper exposição a elas, pode deixar as crianças em uma situação vulnerável. Essa é a opinião de Ana Claudia Leite, coordenadora de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana, que visitou a KidZânia em fevereiro. “É inegável que o apelo ao consumo é muito forte. Essas marcas são apresentadas para as crianças de uma forma lúdica, em um espaço que se diz educativo”, observa. “Se o intuito é falar das profissões para os pequenos, por que não se mostra como trabalha um chapeiro, sem necessariamente associá-lo à marca Burger King?”

Como pedagoga, Ana Claudia chama a atenção para um modelo de cidade que prioriza serviços privatizados e assume a lógica do ‘eu sou alguém que executa uma tarefa, ganho por isso e depois consumo na cidade’.  De acordo com ela, é muito ruim que uma cidade voltada para crianças não tenha um espaço público, um espaço verde. “É uma cidade que tem muitos serviços e ambientes profissionais, mas nenhum espaço de lazer e convivência: não tem um parquinho, grama, natureza”, reclama.

Espaço também possui uma cela para eventuais prisões.
Espaço também possui uma cela para eventuais prisões.

Para ela, o modo de vida atual permite a proliferação de muros, câmeras – no KidZânia são exatas 332 – e shoppings para confinar as pessoas, que perdem o direito de ir e vir na cidade. “A tal cidade fictícia potencializa justamente o que temos de pior na sociedade. Esse modelo é muito questionável e reproduzi-lo não contribui para a formação das crianças numa perspectiva de educação integral, onde a cidade faz parte da formação.”

Ana Claudia credita o sucesso do empreendimento, que pode ter mais duas unidades lançadas no Brasil, à falta de opções dos paulistanos quanto aos espaços públicos. “Me entristece saber que, de repente, essa passa a ser uma das opções mais bem cotadas para os programas familiares, mesmo sendo um investimento caro, um espaço excludente por natureza. É um programa para poucos, e acaba por reforçar o ciclo da sociedade de consumo, pautado pelo que temos e não pelo que somos.”

Mas nem todos os visitantes da KidZânia pensam como Ana Claudia. Flávia, mãe de Camila – que, aos cinco anos, adora brincar de ser modelo –, avalia que a experiência foi interessante. “Estimula as crianças, ela amou.” Já Ana Lúcia, mãe de Mariana e professora de Ensino Fundamental, afirma que a proposta não é ruim, mas precisa ser melhorada. “Tem muita coisa interessante, como conceitos de cidadania. Ao mesmo tempo, vejo lojas oferecendo produtos a preços abusivos, como a Kopenhagen. É um fictício que se mistura com o real. Não dá pra dizer que é tudo horrível nem que é tudo bom”, pondera, enquanto a filha participa da oficina de rádio nas cabines da CBN.

KidZania

Algumas das marcas presentes na KidZânia

Risqué, Unicef, Ajinomoto, 1900 Pizzaria, Kopenhagen, Burger King, Sucos del Valle, CBN, Made in Brazil, Faber Castell, Yakult, The Globe Balada, Brandili, Folha de São Paulo, Bradesco, Bozzano, Porto Seguro, TAM, Rossi, Prosegur, Nikon.

O fato de as crianças se divertirem não é, segundo Ana Claudia, um indicador de qualidade do ambiente. Ao contrário, ela afirma que os impactos da proposta da KidZânia devem ser medidos no âmbito do invisível.  “Se tomarmos o parâmetro da criança estar se divertindo ou não, cabem muitas coisas: games, desenhos animados, brinquedos de shopping. Nesse lugar, por exemplo, o potencial da imaginação é perdido. E, no fim das contas, essa é a força maior do brincar: exercer a autonomia, a criatividade, a imaginação e a interação com os demais.”

Já a arquiteta e urbanista Irene Quintáns critica a lógica do “produzir para consumir”, que sustenta as atividades. A diretora da Red OCARA e vice-presidente da IPA Brasil, especialista no debate sobre crianças e cidades, se diz preocupada com a naturalização dessa experiência.  “A criança é muito sensível a tudo. Ela vai incorporar como normal que esse tipo de lazer ocorra em um espaço como o shopping, assim como esse espírito de ser um produtor na sociedade capitalista.”

KidZaniaEla dá como certo o sucesso da empreitada. “Existe muito público que, ou fica trancado em casa, ou pega um carro para ir ao shopping, lugar de lazer e consumo”, reflete. Para Irene, que é espanhola e mora há quatro anos no Brasil, as pessoas precisam perder o medo do espaço público. “Infelizmente, está proliferada a ideia de que sair de casa é perigoso, só tem violência e crime, e uma das razões para isso é que não sabemos utilizar o espaço público.”

A espanhola acredita que a KidZânia está formatada para uma sociedade que vê a relação da cidade com a criança através do consumo. “O trabalho de formiguinha é ir, pouco a pouco, oferecendo oportunidades para as pessoas saírem de casa e irem para o espaço público, seja um teatro na praça, shows gratuitos, filmes a céu aberto.”

Crianças fazem fila no banco.
Crianças fazem fila no banco.

Adultização da infância

KidZânia significa ‘a cidade das crianças legais’. “É a cidade onde elas idealizam e criam pensando no mundo chato dos adultos, e adquirem a independência de viver em um local onde trabalhar é divertido”, explica Faria. De fato, nas ruas da cidade fictícia, os meninos são chamados de senhores – que podem ir à barbearia para colocar barba e bigode – e as meninas se convertem em senhoritas – que podem desfilar na passarela como modelos de sucesso.

Menino com barba postiça e pizza produzida por ele.
Menino com barba postiça e pizza produzida por ele.

“É preciso mesmo reproduzir a vida tal como ela é? Ou preparar a criança significa possibilitar aprendizagens para que ela desenvolva suas habilidades de uma forma integral e plena?”, questiona Ana Claudia. “Na KidZânia, não tenho dúvidas de que elas são conduzidas a viver a vida de um adulto”, conclui.

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