publicado dia 25 de julho de 2024
Julho das Pretas mobiliza territórios e busca reparação para as mulheres negras
Reportagem: Nataly Simões
publicado dia 25 de julho de 2024
Reportagem: Nataly Simões
🗒️Resumo: Criado em 2013 na Bahia, o Julho das Pretas se expandiu e hoje conta com mobilizações em todo o Brasil. Em 2024, a agenda de incidência e luta contra as desigualdades de raça e gênero se traduz em 539 atividades desenvolvidas por 250 organizações. Conheça a história e a importância do movimento liderado por mulheres negras.
A data de 25 de julho marca o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1992. No Brasil, é celebrado também o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, instituído pela Lei 12.987/2014. As datas fazem parte do Julho das Pretas, agenda coletiva de incidência política e luta, liderada por diferentes organizações de mulheres negras de todo o país.
Quem foi Tereza de Benguela?
Símbolo de resistência contra a escravização no século 18, Tereza de Benguela foi rainha e liderança do quilombo Quariterê, onde hoje fica o estado do Mato Grosso. Em 2014, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.987, instituindo o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, a ser comemorado anualmente em 25 de julho.
O Julho das Pretas tem sua origem na Bahia e foi idealizado pelo Odara – Instituto da Mulher Negra em 2013. De lá para cá, o movimento ganhou força e expandiu-se para todo o país.
Neste ano, ao menos 539 atividades serão desenvolvidas por 250 organizações, grupos e escolas ao longo do mês de julho. Além da presença em todos os estados brasileiros, a 12ª edição do Julho das Pretas conta também com atividades no Uruguai e na Argentina.
Em 2024, o Julho das Pretas focaliza como tema central a reparação, além da luta pelo bem-viver.
“A partir deste mote, o Julho das Pretas inquieta, mobiliza e provoca mulheres e meninas negras a discutirem e articularem o projeto de Reparação Histórica pelos terríveis danos causados pelo colonialismo e escravização do povo preto – que perdurou por quase 400 anos e que ainda orientam o pensamento e o modus operandi racista e patriarcal da elite branca que governa este país. As mulheres negras já começaram a fazer os cálculos e agora queremos saber: quem vai pagar a conta?”, diz o texto de apresentação da mobilização deste ano.
“O Julho das Pretas potencializa e fortalece a ação política e de luta por transformação que as mulheres negras têm feito nos quatro cantos do país”, define Naiara Leite, coordenadora-executiva no Odara – Instituto da Mulher Negra. “Quando o criamos em 2013 foi para visibilizar nossa existência e dizer que não queremos a homenagem, queremos transformação e mudar nossa realidade de desigualdade”, lembra Naiara, que é mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).
“O Julho das Pretas é, sem sombra de dúvidas, uma das estratégias de incidência política mais importantes do país, que reflete autonomia, radicalidade, expressão e resistência”, aponta Naiara.
Descentralizado, o Julho das Pretas inclui ações como rodas de conversa, saraus, seminários e exposições artísticas, além de atos e marchas de mulheres negras, que acontecem anualmente em diferentes capitais. Atualmente, a agenda é liderada pelas Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), Rede de Mulheres Negras do Nordeste e Rede Fulanas – Negras da Amazônia Brasileira.
Julho das Pretas: das ruas à política institucional
A força do Julho das Pretas fez a agenda coletiva alcançar a política institucional a partir de projetos de lei protocolados por parlamentares negras em diferentes estados e municípios, que visam incluir a agenda oficialmente em seus calendários.
Nos últimos quatro anos, as assembleias legislativas de Minas Gerais, Rio Grande do Norte e as Câmaras Municipais de Curitiba e do Rio de Janeiro receberam propostas nesse sentido, mas nenhuma foi sancionada até o momento.
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Na militância das mulheres negras há 20 anos, Naiara Leite considera que o Julho das Pretas tem como desafio fazer com que as instituições públicas, os partidos e os parlamentares compreendam que a mobilização não se limita a um evento.
“É uma agenda de luta, faz parte das nossas estratégias de incidência para enfrentar as desigualdades, o racismo patriarcal, além de denunciar as violações que nos atravessam historicamente e cobrar políticas e ações estruturantes dos governos para que essa realidade mude a vida das mulheres e povo negro nesse país”, reforça.
Embora sejam maioria no Brasil, as mulheres negras convivem com uma realidade que reflete o impacto da escravização e do recrudescimento do racismo, além das desigualdades de gênero.
Em artigo publicado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), a doutora em economia Janaína Feijó aponta que as condições socioeconômicas das mulheres negras são piores que as dos demais grupos, o que as coloca em uma situação de maior vulnerabilidade.
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De acordo com a publicação, baseada em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), das 48,8 milhões de mulheres negras que estavam em idade para trabalhar em 2022, apenas 51,5% estavam inseridas no mercado de trabalho. Segundo a autora, esse panorama evidencia desafios intrinsecamente ligados à questões histórico-culturais, normas sociais e plano de fundo socioeconômico.
Já em 2023, segundo o projeto Mude com Elas, as jovens mulheres negras tiveram uma taxa de desemprego de 18,3%, enquanto entre os homens brancos o índice foi de 5,1%. A média do país terminou o ano em 7,4%.
São as mulheres negras também o grupo mais vulnerável às violências. A 18ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho de 2024 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), revelou que as negras correspondem a 66,9% das mulheres mortas de forma violenta, sendo 69,1% com idade entre 18 e 44 anos.
A análise leva em conta o tipo de morte violenta intencional (MVI), que inclui feminicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e morte decorrente de intervenção policial.
“Ainda somos o grupo que mais morre, afetado de diversas formas pelo projeto de genocídio do Estado brasileiro. A luta das mulheres negras nesse país tem defendido um projeto de nação onde a gente tenha direito à vida, onde ser mulher negra não seja uma ameaça”, destaca a coordenadora-executiva do Odara.
As desigualdades e violências que atravessam a vida das mulheres negras evidenciam a falta de políticas públicas e também se refletem no âmbito político, com baixa representação desse grupo nos espaços de decisão e poder.
Nas últimas eleições municipais, em 2020, as mulheres representaram 16% dos vereadores eleitos em todo o país, percentual muito aquém da proporção de mulheres no eleitorado, que chega a 52,5%, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Entre as mulheres negras, o número de vereadoras eleitas foi ainda menor, de 6,3%. Na chefia do Executivo dos municípios, a participação das mulheres negras é de 5%.
Além disso, o pleito de 2020 foi o primeiro em que valeu a reserva de pelo menos 30% dos fundos eleitorais e partidários para candidaturas de mulheres e negros. A poucos meses das eleições de 2024, o fundo está em risco devido a uma Proposta de Emenda na Constituição, conhecida como PEC da Anistia, que propõe perdão a partidos que descumprirem a medida.
O próprio Ministério da Igualdade Racial, responsável por elaborar políticas públicas específicas para combater a desigualdade racial, só foi criado em 2023.
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Para Naiara Leite, a ausência de mulheres negras nos espaços de tomada de decisão questiona o próprio sistema democrático do Brasil. “A nossa ausência é uma violência política de raça e gênero nesse país”, analisa. “Nossa presença nesses espaços altera a ordem e desmonta o imaginário de quem pode nos representar”, defende Naiara.
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