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publicado dia 2 de abril de 2019

Igreja evangélica, senso de comunidade e criação de vínculo

Reportagem:

É seis da tarde de domingo no Patriarca, bairro da zona leste de São Paulo. No púlpito da Nova Iban – Igreja Batista Apostólica das Nações, luzes de estrobo pintam de azul e rosa o rosto emocionado do pastor Elton Santos. Ele pede aos congregados que levantem seus braços e cantem. “Aqui é a casa do pai”, declara a sua voz abafada contra o microfone.

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A Nova Iban é uma das milhares de igrejas evangélicas que pululam nos bairros brasileiros. De acordo com pesquisa divulgada do IBGE  em 2010, a religião evangélica é praticada por 22,2% da população.

“A transformação do campo religioso brasileiro é a transformação cultural e social mais importante dos últimos 30 anos”, afirma Roberto Dutra Torres,  sociólogo e mestre em Políticas Sociais pela UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro). “A igreja católica deixou de ser um campo hegemônico. Mesmo que seja maioria numérica, já copia e segue as orientações e práticas pentecostais. Na política mais ainda, surfando a reboque das lideranças evangélicas, que são mais organizadas.”

A desregulamentação da religião pelo Estado brasileiro, que é laico e permite sem burocracias a instituição de cultos de todas as crenças, explica para o sociólogo porque a igreja evangélica cresceu e hoje “substitui a solução católica e afro-brasileira para problemas práticos do cotidiano.”

Na Nova Iban, um dos problemas cotidianos que os fiéis enfrentam é o preconceito: a maior parte deles é LGBT  e busca por um espaço de acolhimento onde sua sexualidade não seja considerada “pecado”.

“As igrejas, e não é de agora, expulsam a comunidade LGBT”, conta o pastor Leandro Moraes Lima. “Nós entendemos que Deus não faz acepção de pessoas. O que mais importa para Deus é o bem-estar e a felicidade. Se você é uma pessoa que segue os princípios cristãos, é indiferente se tem um relacionamento homoafetivo ou heteroafetivo”, diz.

Igreja fazendo as vezes do Estado

Igrejas como a Nova Iban têm se convertido em espaço de realização pessoal e comunitária para grande parte da população. Segundo o estudo “Viver em São Paulo: Qualidade de vida”, 19% dos paulistanos acreditam que é a igreja, mais do que o Estado ou a Justiça, que mais faz pela cidade e pelo bem-estar social.

Compreender este fenômeno torna-se, então, importante para entender os vínculos contemporâneos entre território e comunidade, e comunidade e Estado.

“Vivemos em um mundo cheio de instabilidade e insegurança, e a igreja fornece estabilidade na construção da identidade pessoal e social. Ela cria algo simbólico, mas que tem um efeito material: estar nela é estar protegido”, afirma Roberto.

Um exemplo são as células, presentes em algumas igrejas. São grupos de autogestão das relações pessoais que ajudam em questões de emprego ou de família, como problemas na escola ou na saúde.

Esse não é, contudo, papel exclusivo das igrejas evangélicas, como relembra Marcelo Natividade, antropólogo e jornalista com pesquisas voltadas para artes, religiosidade e sexualidade. “A religião enquanto fenômeno produz senso de coletividade. Ela assenta uma ideia de compartilhar vivências e produzir solidariedade.”

Na Nova Iban, os cultos, embora não cheios, são carregados de emotividade: pessoas historicamente excluídas de espaços como suas casas ou outras congregações se emocionam ao ouvir o pastor Elton dizer que aquele é um lugar sem julgamentos, onde pessoas de todas as raças, orientações sexuais e origens podem congregar.

“A igreja é uma família. A ideia do próprio Jesus é essa. Infelizmente algumas denominações perderam essa identidade. O que mais atrai as pessoas até aqui é a ideia de acolhimento. Elas se sentem em casa”, conta.

Para Marcelo, a sensação de familiaridade é reforçada com o toque: na maioria dos cultos evangélicos, os congregados se abraçam, conversam próximos e desenvolvem um vínculo profundo: “Quando você chega a um culto, já vê que algo está sendo produzido. É muito emocional, com música alta, expressão de sentimentos, persuasivo. Traz um senso de proximidade física e emocional”, explica.

É nessa acolhida, que alinha sentimento e experiência coletiva, que para Roberto está a chave da crescida de igrejas evangélicas, em especial em lugares onde o Estado tem uma presença mínima ou repressora, como as periferias.

“O Estado não consegue resolver cotidianamente os problemas destes locais, com seus mecanismos de polícia ou de política social, e a igreja consegue resolver não só coisas de ordem material, mas até de acesso à emprego e relações familiares”, explica Roberto.

pastores leandro e elton na nova iban
Os pastores Leandro e Elton na frente da Nova Iban / Crédito: Cecília Garcia

Organização política dentro das igrejas

Para ambos os pesquisadores, um índice claro da ascensão das igrejas evangélicas foram as últimas eleições: organizações políticas de algumas destas comunidades alavancaram as candidaturas do próprio presidente Jair Bolsonaro (PSL) ou de Marcelo Crivella (PRB), atual prefeito do Rio de Janeiro.

“A direita brasileira aprendeu bem com essas igrejas. Ela nunca foi popular, e só assim se tornou porque aprendeu essa epistemologia do afeto e do reconhecimento do vínculo”, declara Roberto.

A pesquisa desenvolvida por Roberto se concentra em como movimentos da esquerda vêm ignorando o fenômeno popular-religioso das igrejas evangélicas, incorrendo em erros e estereótipos e se recusando a dialogar com a complexidade do processo, e tampouco enxergando nele potências ativistas.

Uma das características para o pesquisador que mais chama atenção nas comunidades evangélicas é a combinação entre solidariedade e individualismo, ainda pouco compreendida pela esquerda:

“É uma ideia rasa pensar que as igrejas evangélicas não conseguem perceber opressão social. A recusa da vitimação tem uma aspecto mais profundo, que é uma atitude perante a vida. A percepção de quem é pobre não pode dar-se ao direito de ver-se e tratar-se como vítima, porque senão ele perde o horizonte de transformação de sua vida pessoal e comunitária. Os evangélicos têm nesse recurso um componente de ativismo. Isso, às vezes, pode se restrito e particularista, mas também pode dizer: essa comunidade tem uma percepção de que ela pode transformar seu micro-mundo.”

Marcelo complementa que é importante olhar os aspectos diversos do que é feito dentro das comunidades evangélicas, passando por cima de achismos:

“O senso de universalismo do cristianismo é perigoso. Temos que desconstruir o senso de homogeneidade das igrejas evangélicas. O senso de comunidade não é o mesmo em cada igreja. É verdade que houveram algumas que apoiaram a eleição de Jair Bolsonaro (PSL), por exemplo, mas outras fizeram manifestos contra.”

Senso de comunidade, senso de exclusão

Tanto Roberto quanto Marcelo são uníssonos na opinião de que o mesmo senso de comunidade criado por algumas igrejas evangélicas pode também converter-se em exclusão.

“Estes espaços podem se converter em uma comunidade somente para os que estão de acordo com suas regras. Grupos já socialmente discriminados, como os LGBT ou pessoas que tenham problema com drogas ou alcoolismo, podem ser expulsos, o que torna as comunidades evangélicas pouco convidativas para vários grupos.”

Roberto também acredita que a onda de conservadorismo recente pode envolver esses grupos religiosos. “O conservador popular do Brasil sempre foi católico, de uma certa tolerância e flexibilidade com a vida alheia: não se tolerava publicamente o homossexual mas não se atribuía a tarefa de curá-lo. O que há hoje é bem puritano: se empreende o processo de ‘cura’”.

Não é o que se passa na Nova Iban. Comandada por dois casais de pastores, a igreja abre, ao fim de todos os cultos, um espaço para se falar abertamente e em grupo sobre sexualidade, afetividade, drogas ou outras questões.

“Eu não acredito que todas as igrejas precisam pensar como nós”, diz o pastor Elton. “Acredito que dá para conviver com as diferenças. A igreja evangélica precisa praticar o evangelho, e ele é inclusivo. Expulsar pessoas não faz parte do evangelho. Uma igreja que expulsa pessoas, que as maltrata ou as rejeita, não é evangélica e nem cristã”, arremata.

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