publicado dia 4 de dezembro de 2020
Frantz Fanon, pioneiro em estudos decoloniais, tem livro “Pele Negra, Máscaras Brancas” relançado no Brasil
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 4 de dezembro de 2020
Reportagem: Cecília Garcia
“Todo problema humano exige ser considerado a partir do tempo. Sendo ideal que o presente sempre sirva para construir o futuro. E esse futuro não é cósmico, é o do meu século, do meu país, da minha existência”, escreveu o psiquiatra martinicano Frantz Fanon (1925-1961) no livro Pele Negra, Máscaras Brancas.
É neste primeiro livro, publicado em 1952, em que o ensaísta e militante aponta que modificar a sociedade só será possível mediante a confrontação das práticas colonialistas e seus efeitos no corpo e subjetividade das populações sujeitas a essa violência. Pele Negra, Máscaras Brancas, que está sendo relançado pela Editora Ubu com tradução de Sebastião Nascimento e Raquel Camargo, chega no presente de um país que ainda tem dificuldade de se reconhecer como racista, mas que pratica o racismo diariamente.
O exemplo mais recente é o assassinato brutal de João Alberto Silveira Freitas, morto por dois seguranças brancos em um mercado Carrefour em Porto Alegre (RS), mas o livro também é relançado no momento em que movimentos negros atuantes no Brasil têm pautado ações antirracistas importantes em áreas como educação, política e saúde, garantindo direitos e aprofundando discussões sobre negritudes — e também branquitudes. Tudo isso em um “contexto social abertamente genocida e chauvinista”, como pontuou no posfácio da publicação Deivison Nkosi, sociólogo e especialista na obra de Fanon.
Além de Nkosi, assina o prefácio a artista e escritora Grada Kilomba, portuguesa de raízes são-tomenses e angolanas que trabalha interdisciplinarmente o pós-colonialismo em suas obras. Estes dois contemporâneos, cujas trajetórias profissionais e sociais são atravessadas por pensamentos do psiquiatra martinicano, trazem em seus escritos o porquê da urgência de democratizar o conhecimento sobre Fanon no Brasil.
O ostracismo editorial imposto a uma obra decolonial urgente
Durante seus estudos em psicologia e psicanálise em Lisboa (Portugal), Grada Kilomba se via solitária na pesquisa em bibliotecas e aulas ocupadas por autores e educadores brancos.
“Eu passava horas à procura de palavras, frases ou parágrafos que eventualmente me pudessem dar uma linguagem. Eram recortes, retalhos que eu tentava cuidadosamente incluir na minha escrita. Mas este era um trabalho delicado, pois como é que se pode escrever sobre a negritude, num espaço onde não há um único livro escrito por autorxs negrxs? Este princípio da ausência, no qual algo que existe é tornado ausente, é uma das bases fundamentais do racismo.”
Quando uma de suas professoras emprestou-lhe o livro Pele Negra, Máscaras Brancas, Kilomba sentiu um misto de alegria por finalmente encontrar um autor que falava a partir de uma perspectiva negra, mas também frustração com o ostracismo editorial imposto ao trabalho do psiquiatra.
A negação da obra de Fanon tem a ver com a confrontação direta que o autor fazia a Europa e ao sistema colonialista. Ele foi vanguardista em fazer relações entre o sistema capitalista e sua origem colonial, a responsabilização dos países europeus na desumanização dos povos originários, como também na análise da psique do homem negro. “Como é que uma obra como esta pode permanecer “proibida” até hoje? O que é que é proibido em Frantz Fanon? O seu discurso? A sua pele? Ou ambos?”, se questiona Kilomba.
Mesmo censurado ou pouco discutido, Fanon se tornou fonte de inspiração para a obra interdisciplinar da artista, desde seus escritos como Memórias da Plantação até suas obras plásticas. A linguagem como meio de dominação, mas também de libertação, é uma das características do autor que Kilomba mais aprecia. “Mas o que era extraordinário na escrita de Fanon, e que nenhum dicionário podia traduzir, era o seu estilo literário, que transbordava em conteúdo e significado. Eu nunca tinha lido nada assim, tão brilhante e inteligente. Tão audaz. Tão poderoso. A força da sua escrita era tal que, enquanto eu lia, o meu corpo precisava de voltar à superfície, para um fôlego de ar.
“Agradeço também e acima de tudo a Fanon, que revolucionou o meu mundo, a minha visão e a minha linguagem, e que me incitou a experimentar, corrigir, criar e desobedecer. E talvez esta seja a obra de que o Brasil mais precisa, neste momento, como eu precisei anos atrás, para desobedecer à ausência e para viver na existência’, termina o posfácio da artista.
Tanto Grada Kilomba quanto Deivison apontam a ausência da mulher e do queer dentro da obra de Fanon. Mas para ambos, nasce aí uma oportunidade de enxergar o escritor em sua complexidade e contradições, e a partir de seus pensamentos criar outras narrativas que contemplem essas existências. Deivison escreve em rodapé do posfácio: “bell hooks ao concordar com a existência de uma visão masculinista (homofilista) que acaba por relegar a experiência das mulheres a um segundo plano, sugere não perder de vista que a escrita de Fanon oferece novos paradigmas à cura, pelo amor, do corpo político negro colonizado, prestes a se quebrar. Assim, ela propõe que se escute essa voz em emergência, permeada por uma paixão e desejo sedutores, sem, contudo, perder de vista seus limites patriarcais.
Fanonismos no Brasil: A pesquisa de Deivison Nkosi sobre Fanon
“Fanon afirmava que “O corpo é o homem, e o homem, seu corpo”, mas esse corpo, quando negado pelas adversidades coloniais, se torna uma presença negada, um ente que nem homem ou mulher chega a ser. É justamente a partir dessa urgência nascida da intimidade de quem não só vivenciou a negação, mas, sobretudo, optou por confrontá-la que melhor se compreende as posições defendidas ao longo da curta e, ao mesmo tempo, intensa, vida de Fanon”, escreveu Deivison Nkosi na sua tese de doutorado Fanon “Por que Fanon, por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil.
O sociólogo dedicou boa parte de sua pesquisa a entender como Fanon foi lido e estudado no Brasil. O segundo livro do autor martinicano, Os Condenados da Terra, chega primeiro ao Brasil, em 1968. Pele Negra, Máscaras Branca chega em 1983, com articulação dos movimentos negros organizados, onde as ideias de Fanon já circulavam direta ou indiretamente.
Sua recepção na época de suas publicações se divide em duas, derivadas principalmente de leituras de Os Condenados da Terra: uma advinda de pensadores brancos, que traçaram paralelos entre o pensamento de Fanon e a luta de classes no Brasil, sem olhar para “problematização estrutural sobre o racismo, a racialização da experiência e seus efeitos sobre a subjetividade” presente na obra do autor, como escreveu o sociólogo.
Já a outra era feita por pesquisadores negros, influenciados por lutas de libertação nos países africanos especialmente os falantes de português e por movimentos antirracistas como os Panteras Negras, nos Estados Unidos. Deivison destaca as leituras aprofundadas de Lélia Gonzalez e Neusa Santos Souza sobre o autor.
“Atualmente, o campo de estudos sobre Fanon apresenta-se bastante diversificado, e mesmo as tradições examinadas têm realizado esforços para dar conta da complexidade teórica do autor. Além disso, muitas outras tradições teóricas entraram na disputa pela definição de seu legado e pela interpretação de suas contribuições para a realidade social contemporânea”, comenta o sociólogo.
Para ele, isso deve não somente ao contexto de lutas anticoloniais que levantaram as questões que Fanon procurou responder, mas também ao aumento da diversidade nos espaços de produção de conhecimento e nos movimentos sociais brasileiros, que ampliam o cânone teórico e trazem como urgentes a leitura de Fanon e de outros intelectuais negros, como a própria Gonzales e Milton Santos.
A ampliação do acesso ao pensamento de Fanon não será ameno, como adverte o sociólogo. Isso deve não só à “notável erudição e articulação complexa de áreas como filosofia, psicanálise, psicologia, sociologia e antropologia”, mas também ao fato de que o autor nunca ter se negado a propor questionamentos difíceis e assertivos para si próprio, ao homem negro e para a branquitude responsável pela manutenção do racismo.
Enquanto operam ainda e de muitas formas os mecanismos colonialistas que Fanon expôs anos atrás, as respostas contra eles não virão senão a partir de transformações sociais concretas, que não percam de vista os desejos e afetos dos sujeitos.
“O autor nos sugere que as estruturas da edificação colonial capitalista estão apodrecidas de tal maneira que uma reforma seria inútil. “[…] outra solução é possível”, ele argumenta, mas ela “implica uma reestruturação do mundo”. A questão central aventada para as gerações futuras, portanto, são os meios e os processos pelos quais ela seria possível.”, escreve o sociólogo.
*Este texto foi possível porque a Editora Ubu cedeu uma cópia do livro Pele Negra, Máscaras Brancas. Ele também se baseou na leitura da tese de doutorado de Deivison Nkosi, que pode ser encontrada na íntegra no site da UFSCAR.