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publicado dia 19 de novembro de 2014

Escola infantil envolve comunidade para debater racismo e gênero na educação

Reportagem:

Por Juliana Sada, do Centro de Referências em Educação Integral 

Quando pequenas, é comum as crianças se divertirem imaginando o que serão quando “grandes”. Brincam de médicas enquanto examinam uma boneca. Com as mãos no volante imaginário, pensam ser motoristas pelas cidades. Segurando um lápis e com uma parede à frente, as crianças podem se transformar em professoras diante dos alunos-ursos de pelúcia.

Os sonhos são dos mais diversos e podem vir do mundo da imaginação ou das vivências de seu cotidiano – às vezes revelando a crueldade da realidade. Enquanto duas crianças brincavam em uma escola de educação infantil na zona sul de São Paulo, no bairro Jardim Maria Luiza, uma professora acompanhava de perto e escutava o que diziam. Surpresa, a educadora ouviu uma garota de três anos dizer: “quando crescer, eu quero ser branca”.

A surpresa da professora logo se tornou questionamento e reflexão partilhados com outros profissionais do Centro de Educação Infantil (CEI) Onadyr Marcondes. Quais experiências esta menina teve para se sentir assim? O que ela vivenciou que trouxesse uma negação da sua etnia? Quais estímulos ela recebeu nestes apenas três anos de vida para pensar que ser branca era melhor que ser negra?

Diversidade é exaltada no projeto político pedagógico da escola.
Diversidade é exaltada no projeto político pedagógico da escola.

A escola não tinha mais como não escutar e observar com atenção o contexto de seus alunos. A desvalorização do negro e da cultura afro-brasileira saltou aos olhos dos educadores que passaram a escutar a “fala” dos pequenos, observando suas atitudes. Como, por exemplo, o caso de crianças que não brincavam com as bonecas negras e preferiam as brancas, mesmo que estas estivessem quebradas. Outro tema que chamou a atenção foi o sexismo e a questão de gênero. Havia casos, entre outros, de garotas reclamando que os meninos não as deixavam jogar futebol “porque não é coisa para menina”.

A escuta atenta das crianças revelou muito do contexto em que viviam. Em uma aula sobre a chuva, a professora perguntou “quem aqui gosta da chuva?”. E quase todos os alunos disseram que sim, contando o porquê. Depois de um tempo, um garoto levantou a mão e disse que não gostava de quando chovia. O porquê? “Porque quando chove, a água entra na minha casa.”

Além do processo de observação, a escola decidiu conhecer de perto a realidade de seus alunos e passou a realizar uma caminhada anual pelo bairro. Após um aviso e junto às lideranças comunitárias, todos os funcionários da escola – professores, merendeiras, vigilantes e da limpeza – caminharam pelas ruas, vielas e becos percorridos pelas crianças e suas famílias e conheceram suas casas e seu território. A caminhada se repete há oito anos, com a comunidade cada vez mais receptiva e com os educadores enxergando esse exercício como um momento de colher matéria-prima para o seu trabalho. “Passamos a pensar as demandas das crianças e o que a escola pode oferecer”, relata a assistente de direção da unidade, Jacilene Ferreira de Lima.

Da constatação à ação

A partir das necessidades das crianças e da comunidade, a instituição tomou como prioritário no projeto político pedagógico tratar as temáticas das igualdades de gênero e racial. Neste processo, a escola se assumiu como um espaço de construção de conhecimento e como um ator na busca pela justiça social. “Temos que pensar qual conhecimento é necessário para a vida da criança, como para aquela que vê o córrego entrar em sua casa”, defende a diretora da Onadyr, Maristela Bayer Nepomuceno.

A escola passou a introduzir estas temáticas nas atividades realizadas junto às crianças ao mesmo tempo em que começou a realizar formações com todos os funcionários da escola. Este processo iniciado há oito anos, está em constante construção e aprimoramento.

Como o público do CEI são alunos pequenos – de bebês de sete meses até crianças de cinco anos – é preciso pensar em uma abordagem específica para apresentar as temáticas. “Valorizamos o momento das brincadeiras e levamos uma intencionalidade pedagógica a ele”, explica Jacilene.

Por meio das Rodas de Histórias, narrativas afro-brasileiras, que valorizam a cultura negra ou que discutem a igualdade, racial ou de gênero, são apresentadas às crianças. A escola também se vale do teatro, da poesia, da música, das danças, da culinária e das artes plásticas para criar um universo de pluralidade e enaltecer as diferenças. A instituição também promove ações de valorização da diversidade, como o desfile das belezas brasileiras.

Valorização da beleza de cada criança é ponto forte da escola
Valorização da beleza de cada criança é ponto forte da escola

No entanto, não há um currículo ou atividades já determinadas e as questões vão sendo debatidas à medida que vão surgindo. “Há uma problematização de cada profissional a partir do que acontece na sala de aula”, relata a assistente. Assim, a partir de uma fala de um aluno de que “meninos não dançam balé”, a escola fez atividades mostrando o trabalho de grandes bailarinos, realizou oficinas de danças e uma apresentação em que todos participaram. Em outro caso, enquanto as meninas eram maquiadas para um desfile, um menino disse que também queria. Mesmo com o temor do que os pais poderiam pensar se a criança chegasse maquiada em casa, a decisão da professora junto à direção foi de deixar o garoto brincar com a maquiagem como desejasse.

Repensar constante e conjunto

A realização destas atividades demanda espaço de formação e reflexões constantes dos educadores. A tarefa se torna ainda mais necessária diante da alta rotatividade dos professores e pelo fato de que a formação acadêmica dos docentes, em geral, não leva em consideração tais temáticas e debates. “Ninguém dá o que não tem”, afirma Jacilene. “É um olhar que deve ser construído”.

De terça à quinta-feira, ao final do dia, a equipe da escola se reúne para um momento de debate. Como todos são considerados educadores, todos participam do espaço: professores, merendeiras, vigilantes e as equipes de limpeza e do administrativo. “Temos essa formação para fazer uma reflexão e não naturalizarmos as práticas”, explica a coordenadora pedagógica, Joyce Anne Mol Semmler. Além disso, são realizadas formações externas oferecidas pela secretaria municipal e também com convidados que são levados aos espaços da escola.

Educadores encenam a história de Obax, uma garota sonhadora que vive na savana africana
Educadores encenam a história de Obax, uma garota sonhadora que vive na savana africana

A instituição tem clareza de que é necessário envolver as famílias das crianças para que o projeto político pedagógico tenha êxito. “Escola boa se faz junto à comunidade”, defende Joyce. O CEI aproveita os encontros mensais do Conselho para debater junto às famílias os temas que a instituição trabalha. Assim, a escola tenta quebrar estereótipos como o de que “homem não chora”, de que há brinquedos de menina e de menino, ou de que a responsabilidade da família é apenas da mulher. A cada início de ano também há um momento de acolhimento dos pais, apresentando a agenda e proposta da instituição.

Aliás, o debate sobre o que é a família é forte na escola: entendendo que essas não são definidas apenas como um pai, uma mãe e os filhos, a escola assumiu essa realidade e a trouxe para o debate. Ao invés dos dias dos pais e das mães, a escola promove o dia da figura feminina e o da masculina. Assim, os alunos levam à instituição aqueles que representam essa figura: avós, irmãos, tios, padrinhos, ou quem quer que seja. Esses dias comemorativos são oportunidades para questionar esses papeis e seus significados. A CEI também optou por não comemorar datas comerciais ou religiosas, promovendo mostras culturais ou festas temáticas para que as famílias frequentem. A escolha possibilitou que famílias evangélicas, que antes não se sentiam à vontade nas festas católicas, passassem a frequentar as comemorações no espaço.

“Neguinha, não. Meu nome é Shirley”

Os impactos das ações em prol da igualdade são sentidos diariamente nestes oito anos de ações do CEI. As famílias e os educadores percebem um aumento na autoestima das crianças e na aceitação e valorização de sua condição. Em uma reunião de conselho de pais, uma mãe relatou que a filha de três anos foi chamada de “neguinha” pelo motorista do transporte escolar e respondeu prontamente: “Eu não sou neguinha. O meu nome é Shirley”. Educadores relatam que as crianças passaram a valorizar as bonecas negras, achando-as bonitas e até se identificando com elas. Até a arrumação das meninas mudou e hoje os cachos soltos são comuns. “Antes as meninas vinham só de trança ou cabelo preso e as mães falavam que era por conta de piolho. Mas a gente sabe que tem uma questão de preconceito por trás”, conta a diretora Maristela.

As discussões sobre gênero também dão frutos. Talvez a mudança mais representativa seja o crescimento do número de homens que participam dos conselhos e das atividades promovidas pela escola. “Antes não vinham”, relembra Joyce. Os educadores também relatam caso de meninos que dizem que podem sim brincar de boneca e de familiares que reconhecem o quão opressor é dizer que “menino não pode chorar”.

 

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