publicado dia 7 de fevereiro de 2018
“A cultura popular propõe um chão de desafios para nos tornarmos indivíduos melhores”
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 7 de fevereiro de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
As escadarias que levam aos andares superiores do Instituto Brincante são forradas de memórias. Retratos emoldurados em madeira revelam os rostos pintados e as indumentárias coloridas de quem fez história no espaço que há mais de duas décadas se dedica a estudar e disseminar a cultura popular brasileira. Sua fundadora, a brincante e dançarina Rosane Almeida, está em alguns dos quadros, ora sozinha performando, ora de braços dados com o também fundador Antonio Nóbrega.
O que é cultura popular, por Antonio Nóbrega
Em entrevista para a plataforma Cidades Educadoras, o artista e brincante define a cultura popular como: Um conjunto de manifestações simbólicas que corresponde à uma linhagem formativa de nosso país, que pode ser desdobrada em diversas “configurações educativas”.
Quando estrearam o espetáculo conjunto Brincante, em 1992, a dançarina natural de Curitiba (PR) e o ator pernambucano tiveram dificuldades de atrair o interesse dos palcos paulistas para as manifestações culturais que tanto enfeitam e colorem os estados nordestinos, onde aprenderam juntos a brincar.
Foi percebendo essa mesma carência entre a população que eles criaram o instituto no bairro da Vila Madalena, em São Paulo. Hoje, o espaço oferece formações como Estudos da Cultura e Música Tradicional da Infância, Percussão Brasileira e Danças Afro-brasileiras.
Além de fundadora, Rosane é responsável pelo desenvolvimento artístico e pedagógico do instituto. Seu trabalho tem sido encarar a cultura popular como um território de saberes inesgotáveis e transformar os indivíduos por meio da educação e da arte.
Os participantes que escolhem um dos cursos oferecidos não presenciam nos espaços de amplas janelas ou sob as luzes amarelas dos palcos reproduções de festas como reisado ou o cavalo-marinho. As brincadeiras, quando estudadas, apresentam estruturas para que o indivíduo se conheça, conheça o outro e crie o que tem sustentado a repetição dessas manifestações até hoje: o espaço para criar.
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A artista é uma das responsáveis pela estruturação do curso A Arte do Brincante para Educadores. Nele, educadores são convidados a se despir de processos ortodoxos de formação e encontrar nas tradições populares formas de desenvolver sua autoestima e das crianças e adolescentes com quem trabalham.
O que é o Reisado? De origem cristã, mas sincretizando diversas outras matrizes religiosas e culturais, a Folia de Reis reencena a chegada dos Três Reis Magos e é realizada por todo o país – especialmente nas pequenas cidades da Bahia, Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Ceará, Minas Gerais, Paraná, Goiás e Espírito Santo – entre o Natal e o dia 6 de janeiro. (Publicado originalmente na Plataforma Cidades Educadoras)
Com uma sanfona em mãos e tambores adormecidos nos pés, Rosane conversou com o Portal Aprendiz sobre a inteireza de ser brincante e a relação entre saberes populares e educação.
Portal Aprendiz: Como poderíamos definir um brincante?
Rosane Almeida: Os artistas populares se autodenominam brincantes porque brincam uma ‘brincadeira’ ou ‘folguedo’ quando performam dentro de manifestações culturais. Suas origens remontam à brincadeiras que foram reivindicadas com muita convicção em cenários de infrações da dignidade humana, como processos coloniais de escravidão e genocídio. Ou seja, conclamadas por pessoas que não podiam e não distinguiam seu fazer artístico de de sua vida áspera.
Quando alguém se considera brincante, ele está fazendo uma escolha: quer dar o melhor de si todo tempo. Ele performa rituais onde concretiza o ideal de uma beleza interior que altera a visão que os brasileiros mantêm de seu próprio povo, exclamando: “Não somos um povo cinza, somos coloridos, não somos analfabetos, temos potência, somos reis e rainhas!”.
O que é o Cavalo-Marinho?
Cavalo-Marinho é um auto popular. Ele vai do ciclo natalino até a Festa de Reis na região da Mata Norte de Pernambuco. É composto de diálogos, danças e brincadeiras e conta com a participação do público, animado pela rabeca, pelo reco-reco, pelo ganzá e pelo pandeiro. São 80 personagens que compõe diversos arquétipos sociais, animais e folclóricos. (Publicado originalmente na Plataforma Cidades Educadoras)
Se você conversar com brincantes, perceberá que são pessoas generosas, muito lúcidas e bem-humoradas. Isso porque o objetivo final de dançar ou encenar um personagem fantástico no cavalo-marinho deve ser a manutenção de uma integridade psíquica e de um ganho emocional. A perseguição de uma inteireza do ser.
Portal Aprendiz: Os brincantes só existem dentro de manifestações culturais tradicionais?
Rosane Almeida: Não. Veja bem, quando as brincadeiras começaram a ser semeadas, o tempo era de caos: você tinha negros que falavam línguas diferentes a dividirem estruturas únicas, índios tratados como animais e portugueses que vinham povoar o país como punição por delitos em sua terra natal. Foram justamente esses encontros forçosos que fizeram com que nossas festas se desenvolvessem de maneira rica, pois as culturas que as criaram tinham na memória elementos muito bem estruturados.
Repare nos primórdios do cavalo-marinho, brincadeira tradicional da zona da mata pernambucana. Quando esses povos se encontraram, todos comemoravam de formas particulares o solstício de verão. Para se comunicar festivamente, essas populações trocaram memórias de alegria: os negros trouxeram o pulsão de sua memória rítmica. O índio, por sua vez, levou uma lembrança de desenhos espaciais, ocupando terrenos em roda. E o europeu fechou o folguedo com a estrutura melódica.
Temos que parar de pensar nas manifestações culturais como se estivessem paradas no tempo. Todo material de cultura popular que chegou aos dias de hoje é fruto da felicidade do fazer e só sobreviveu porque se alterou. E quem brinca nelas também. Ao pensar que só no sertão do Cariri alguém pode ser brincante, estamos apequenando o aprendizado e limitando seu saber.
Portal Aprendiz: E como isso se reflete no trabalho de formação do Instituto Brincante?
Rosane Almeida: A arte e a cultura popular propõem um chão de desafios para nos tornarmos indivíduos melhores. Na medida em que você toca, dança ou canta, você se realiza em estruturas que se refletem em todos os aspectos de sua vida. O cantar te coloca diante de palavras que proporcionam um discurso melhor, orientando o seu falar. O dançar te coloca de maneira orgânica de encontro com o outro e o território ocupado. E quando você menos percebe, você está brincando.
Portal Aprendiz. E com os educadores? Como é o trabalho?
Rosane Almeida: Cada um dos educadores que compõe o Instituto Brincante tem uma história de vida: a do Nóbrega olha para a questão da palavra e como ela se constrói poeticamente; eu, por outro lado, penso o corpo dentro da dança. Todos encontraram aquele lugarzinho onde seu fazer se expressa. O curso A Arte do Brincante para Educadores quer ajudar os professores a encontrarem o deles.
Temos que parar de pensar nas manifestações culturais como se estivessem paradas no tempo. Todo material de cultura popular que chegou aos dias de hoje é fruto da felicidade do fazer e só sobreviveu porque se alterou.
Dentro dos espaços educativos, como a escola, se cobra de um professor que ele ofereça aos alunos liberdade, autoestima, empoderamento, sentimentos que nunca experienciou no seu processo de formação. Então, usamos procedimentos de cultura popular brasileira para que o educador reconheça o quanto pode ser criativo. Mais importante: o que ele gostaria de investir enquanto aprendizado e o que não faz sentido.
Dentro da tradição, você encontra ferramentas, mas elas não podem ser um fim por si só. Não vamos dançar reisado no Instituto Brincante. Vamos construir experiências que dizem respeito ao encontro do educador com outro educador, naquele curso, naquele tempo-espaço onde elas aconteceram.
Portal Aprendiz: Poderia dar um exemplo de como uma tradição brincante pode ser ressignificada?
Rosane Almeida: Não existe nenhuma poesia estruturalmente tão rica quanto a feita no Brasil. Você tem sextilha, martelo agalopado e tantas outras estruturas particularizadas pelas regiões onde germinaram. Uma das mais famosas é a quadrinha, onde o segundo verso rima com o primeiro:
Batatinha quando nasce Espalha a rama pelo chão Menininha quando dorme Põe a mão no coração (…)
As quadrinhas foram inventadas há muitos anos, fazendo sentido no contexto de criação. Agora, não tem cabimento replicá-las. No Brincante, lançamos o desafio: faça sua própria quadrinha! Não cante sobre a batata, cante sobre um presidente que dilapida o país, sobre uma mídia opressora, enfim, sobre o seu cotidiano. Porque a criatividade depende do presente.
Enquanto brincante, meu trabalho é o de fazer as pessoas enxergarem que: tão importante quanto intervir na coletividade, é entrar fundo, verticalmente, nessa qualidade do ser humano que se move na verdade do seu entorno.
*Imagem de destaque gentilmente cedida pela pesquisadora Gabriela Romeu. A foto faz parte do trabalho Meninos e Reis, investigação sobre Reisado e infância no sertão cearense do Cariri. Você pode conhecer mais sobre o trabalho dela aqui.
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