publicado dia 20 de agosto de 2020
Cuidar da saúde mental de negros e LGBTs exige combater racismo e LGBTfobia
Reportagem: Redação
publicado dia 20 de agosto de 2020
Reportagem: Redação
Bruna* demorou 22 anos para se entender uma mulher negra. Foi a terapia, com uma psicóloga negra, que a ajudou a se enxergar dessa forma. Já Fernanda* sofreu uma tentativa de reversão por ser lésbica e ser atendida por um profissional que não estava pronto para suas demandas.
Matéria publicada originalmente no site Ponte Jornalismo. A autoria é de Caê Vasconcelos. A foto de capa é de Junião.
Essa é a realidade de muitas pessoas LGBTs e negras que buscam na terapia auxílio, escuta e acolhimento, mas nem sempre conseguem. Durante a pandemia a situação pode ser ainda pior, já que, por conta do isolamento social, as demandas de saúde mental ficaram mais fortes.
Para a psicóloga Beatriz Machado, integrante do Instituto Afro Amparo e Saúde, que atua com terapia para pessoas negras, isso acontece porque “corpos negros e LGBTs são vistos pela sociedade branca e cisnormativa como descartáveis”.
“Cuidar da saúde mental não é um luxo, é uma necessidade, principalmente quando as relações familiares estão desgastadas e não oferecem refúgio, quando os equipamentos do Estado estão sendo desmontados”, completa.
Bruna conta que faz terapia há dois anos, mas a primeira experiência não foi positiva. “Foi com uma mulher branca e não criamos uma conexão, até porque ela não entendia alguns lugares de mulher racializada e não entendia as questões de classe”.
Há um ano e meio, encontrou a psicóloga atual, uma mulher negra, conseguiu avançar nas sessões e se reconhecer como uma mulher negra. “Mudou completamente a minha percepção enquanto indivíduo, enquanto mulher e uma mulher racializada”.
Isso, afirma Bruna, foi extremamente importante para que ela entendesse as questões que atravessam a sua vida, enquanto uma mulher negra e periférica. “Eu sabia que eu não era branca, mas me vinha esse questionamento de não ser negra, por não ser retinta, então o que eu sou?”, lembra.
“Me vinha esse espaço de não-lugar, porque é você olhar para o seu entorno, ver muitas pessoas parecidas, mas ao mesmo tempo você vê pessoas questionando a todo momento quem você é: você não é preta, você não é branca, você é morena”, explica.
As primeiras experiências da publicitária Fernanda enquanto mulher lésbica procurando atendimento psicológico foram traumáticas. Aos 14 anos, ela começou a perceber sinais de que não se encaixava na heterossexualidade. “Era um pensamento que na época me causava muita dor, por conta da forma que fui criada, e comecei a cair em uma depressão bastante severa”.
Procurou, então, atendimento psicológico. “Encontrei uma pessoa que disse que, mesmo se eu fosse ‘gay’, poderia me ‘curar’. Graças a Deus eu tive força pra entender que isso não era certo”, relata. “Outra pessoa me ‘tratou’ por anos e simplesmente me afirmou que eu não tinha nada a me preocupar, pois era hétero”.
Fernanda lembra que acreditou nisso, na época, por ter vindo da boca de um profissional da saúde. Só que, embora especialista, não tinha qualquer conhecimento ou experiência com população LGBT. “Isso me fez viver anos em culpa e tristeza, sem seguir com a minha vida por puro medo”, lamenta. “Não sou capaz de colocar em palavras o tamanho do buraco que isso causou em mim, o quanto isso tem consequências fortes até hoje”.
Hoje, ela é atendida por uma profissional que entende suas demandas na medida do possível, sem afirmar ou negar que ela é uma coisa ou outra.
A psicóloga Beatriz Machado conta que é comum ouvir de pacientes LGBTs ou negros violências sofridas dentro dos consultórios, que relatam não terem tido suas queixas e dores legitimadas no espaço terapêutico em relação ao racismo e à LGBTfobia. “Isso é o equivalente a apanhar. Procurar um lugar seguro e lá ser surrado novamente”, define.
Mas aponta que isso não significa que psicólogos pretos devam atender pessoas pretas ou psicólogos LGBTs devam lidar com o público LGBTs. “Significa que os privilégios da branquitude, da cisgeneridade [pessoas que se reconhecem no gênero de nascimento] e heteronormatividade [ideia de que o padrão das pessoas é ser heterossexual, quem se relaciona com pessoas do gênero oposto] precisam ser reconhecidos por esses profissionais, que seus clientes não precisem se explicar e carregar a culpa do que é estrutural e que percebam a urgência de se apropriar das demandas que atravessam a existência de tanta gente”.
Para a psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus, professora do IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro) e especialista em questões de gênero, principalmente transexualidade, “o profissional de saúde mental precisa estar preparado para atender qualquer pessoa”. Mas, aponta Jesus, “em função dos aspectos estruturais da discriminação, em geral, os currículos não tratam de temas como gênero, diversidade sexual e questões étnicas-raciais”.
Falar em saúde mental para população LGBT+ e negra, explica a professora, é fundamental, “principalmente quando falamos em populações historicamente discriminadas, que sofrem pelos fatores sociais ligados aos preconceitos”.
A psicóloga lembra que as questões de racismo e LGBTfobia também precisam ser pensadas na interseccionalidade e interação dessas opressões, ou seja, quando falamos de uma pessoa que é negra e LGBT+. “A demanda não é em função das suas identidades em si, mas em função da discriminação decorrente de como a sociedade trata essas populações, pelas estruturas racistas e LGBTfóbicas da sociedade”.
No caso do atendimento de pessoas trans (que não se identificam com o gênero de nascimento), aponta Jesus, o cuidado dos profissionais deve ser ainda maior. “Profissionais que exigem laudo são profissionais que não se atualizaram”. Até junho de 2019, a transexualidade era considerada “transtorno de identidade de gênero”.
“Na psicologia já temos muitas resoluções que, há muito tempo, já não tratam as identidades trans sobre uma categorização patologizante. Já a psiquiatria ainda precisa avançar muito nas normativas que ela tem. Isso também funciona na psicanálise, que ainda tem uma corrente sem atualização”, explica Jesus.
Ter identidade de gênero legitimada, completa Beatriz, é determinante social no processo de saúde. “Corpos trans são corpos, que não se sujeitam à estrutura heterocisnormativa da sociedade e, assim, pagam um preço muito alto simplesmente por terem a ousadia de ser”.
“A atuação do psicólogo no processo de transição [momento em que uma pessoa trans assume o gênero de identificação], seja corporal e social, é de suma importância para ajudar com questões que inclusive podem anteceder o processo, como a disforia”.
Diante da sobrecarga dos atendimentos, o SUS (Sistema Único de Saúde) acaba não sendo um caminho rápido para quem procura atendimento psicológico. Por isso, aponta, os atendimentos com valores sociais e acessíveis, aponta Beatriz, “permitem que uma grande parcela da população possa se beneficiar de profissionais e de propostas que considerem os atravessamentos de quem os procura, como raça, gênero, condição social”.
A demanda durante o isolamento social aumentou muito. É o que afirma a psicóloga Natália Silva, fundadora da Reinserir, clínica ampliada de psicologia que, além de oferecer atendimento psicológico a valores acessíveis, também se preocupa com a reinserção da população negra e LGBT+ no mercado de trabalho na cidade de São Paulo.
“Em relação à população LGBT+ e, principalmente, à negra, por conta do racismo estrutural, a população está mais presente em empregos precários e tem que se colocar em risco para trabalhar, isso somado à violência policial que gera um sentimento de medo constante”, explica.
“Para o público LGBT+, por exemplo, quanto não são aceitos pela família é algo que tem atingido a saúde mental de forma intensa, por isso a busca por um espaço seguro de fala e de escuta ativa é prioridade nesse momento”, completa.
A Reinserir surgiu para suprir a necessidade de democratizar o acesso para esses públicos, com valores no esquema “pague quanto puder”, e, assim, combater o racismo e a LGBTfobia. Como conseguir isso? Por meio de uma equipe diversa, aponta Natália, e trabalhando também com as empresas que contratarão essas pessoas.
“Os dois sócios são pessoas negras, a pessoa do audiovisual é uma mulher trans, temos uma psicóloga bissexual, duas psicólogas lésbicas, uma psicóloga negra e um psicólogo bissexual”, conta.
“Além da formação acadêmica, os funcionários estão em constante atualização para atravessar o campo da política e das temáticas sociais, como homofobia, racismo, transfobia, machismo, sempre tentando compreender, respeitar e validar a diversidade”.
Natália acredita que não se pode generalizar as demandas de pessoas negras e LGBTs nos atendimentos. Quando uma pessoa negra traz demandas de aparência, conta a psicóloga, ela está falando também de racismo, não só de autoestima. Assim como uma pessoa LGBT+ que, ao trazer questões de carência de afeto, é sobre LGBTfobia.
“Não entender tais demandas e singularidades é reproduzir a violência do Estado. Muitos pacientes dizem que já tentaram estar em outros serviços, mas se sentiram violentados quando tentavam levar questões de racismo ou LGBTfobia”.
Outra proposta que também trabalha para o atendimento de pessoas LGBTs, principalmente pessoas trans, é a Casa Chama, que surgiu em 2018 durante o período eleitoral que culminou na vitória de Jair Bolsonaro (sem partido).
A artista Leona Jhovs, uma das co-fundadoras, conta que a Chama tem como objetivo acolher pessoas trans e trasvestis, de maneira cultural, social, psicológico, de saúde e jurídico. O projeto conta com uma grande parte jurídica que auxilia pessoas trans a retificar nome e gênero, principalmente na questão financeira, já que os custos são altos.
Quem cuida da parte psicológica é Joana Waldorf, psicanalista e co-fundadora da Chama. “O nosso público inicial era focar em pessoas trans e travestis, porém percebemos que podemos receber uma pessoa que ainda não se definiu de uma determinada forma, mas está justamente em uma pré-transição”.
Para montar o time de psicólogos, a Casa Chama recebeu indicações dos fundadores e algumas pessoas os procuraram pelas redes sociais. A maior parte dos profissionais são LGBTs e o grupo conta com duas pessoas trans nos atendimentos e Waldorf, que se identifica como uma pessoa não-binária (se identifica como homem ou como mulher).
Os valores são bem acessíveis, como aponta Waldorf. “Temos atendimentos totalmente gratuitos e atendimentos com valor social, negociado diretamente com o paciente”, explica.
A psicóloga lembra que, por estarem inseridas em uma sociedade em que padrão é ser hétero, branco e cisgênero (pessoa que se identifica com o gênero de nascimento), pessoas LGBTs e negras são diretamente afetadas. “A gente costuma até fazer uma referência com a palavra sistema escrita como cis-tema”, brinca. “Dentro desse sistema excludente, esses grupos sentem a necessidade de estar inseridos, de se criar redes de apoio”.
Para Waldorf, é melhor não fazer acompanhamento psicológico se for para passar com uma pessoa que não entenda as demandas, porque “muitas vezes a violência cometida dentro de um consultório é muito pior do que não ter ajuda nenhuma”.
Isso porque a terapia é um espaço “que a pessoa procura quando já está em uma situação de vulnerabilidade”. Por essa razão, a pessoa não espera uma violência e isso torna esse ciclo violento muito mais perigoso. “Sem o preparo você tem um desserviço”, frisa.
“É muito comum a gente receber pessoas LGBTs, principalmente pessoas trans, e pessoas negras que foram deslegitimadas, que eram colocadas o tempo todo em questionamento, que passavam ali por um viés do preconceito do analista”, denuncia.
*Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas