publicado dia 3 de outubro de 2019
Crise climática e o direito à cidade
Reportagem: Redação
publicado dia 3 de outubro de 2019
Reportagem: Redação
*Artigo postado originalmente no ArchDaily Brasil. A autoria é de Tama Savaget e Henrique Frota, do Instituto Pólis.
Em maio deste ano, o The Guardian recomendou, por meio de seu manual de redação, que jornalistas e colaboradores subam o tom para falar sobre as mudanças climáticas ou aquecimento global. Agora, anunciou o jornal britânico, é crise, emergência ou colapso climático.
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Não é de hoje que a comunidade científica nos alerta sobre o fato de que o planeta está esquentando. Desde 1950 o termo aquecimento global passou a ser usado em revistas especializadas e, desde a década de 1970, o tema tornou-se uma preocupação política, dando origem a conferências, acordos e protocolos firmados entre países para adotar medidas conjuntas com a finalidade de mitigar as mudanças climáticas. De lá para cá passamos pela Conferência de Estocolmo (1972), Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – Eco92 (1992), Protocolo de Kyoto (1997), Rio+10 (2002); Acordo de Paris (2015); Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (2015), dentre outros. Mas por que temos a impressão que a crise climática está mais em evidência do que nunca?
Em outubro de 2018 foi divulgado o 5º relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), instância das Nações Unidas que sintetiza e divulga os estudos da comunidade científica internacional sobre mudanças climáticas no mundo. Este relatório trouxe um cenário muito mais severo sobre as consequências imediatas da mudança no clima do que se imaginava anteriormente.
Agora está claro que não estão sob risco somente as futuras gerações, mas também a nossa. Já estamos sentindo os resultados do aumento de 1.1ºC na temperatura média do planeta, diretamente causada por atividades humanas poluentes: a indústria, a agropecuária, o desmatamento. E até o final do século, chegaremos a marca de 1.5ºC, podendo avançar ainda mais. Isso significa que presenciaremos o derretimento de geleiras e aumento do nível dos oceanos, a intensificação de eventos climáticos extremos, como tempestades, furacões, alagamentos, secas, desertificação, queimadas, declínio da qualidade do ar, agravamento de processos migratórios e escassez de água. E se atualmente estima-se que 54% da população mundial viva em áreas urbanas e que, até 2050, este número cresça para 66% [1] – no Brasil, já ultrapassamos os 85% da população vivendo em cidades -, então será nas cidades que sentiremos os maiores impactos da crise do clima.
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Embora esteja bastante difundida a ideia de que a crise climática é global, generalizada, e que estamos no mesmo barco, seus impactos não serão igualmente sentidos por todas as pessoas. Não podemos ignorar que as cidades brasileiras são marcadas fortemente pela exclusão sócio-territorial, segundo a qual a maioria da população vive em condições precárias, ocupando favelas e periferias, terras que a legislação urbanística e ambiental vetou para a construção ou que o mercado imobiliário não teve interesse. Um modelo de desenvolvimento urbano que impediu que as camadas mais pobres da população, sobretudo a população negra [2], tivessem acesso à uma moradia digna com condições básicas de urbanidade ou de inserção efetiva à cidade.
A desigualdade sócio-territorial condiciona os mais vulneráveis à precariedade urbana e, consequentemente, aos efeitos mais intensos da crise climática, pois os eventos que antes eram considerados extremos, agora se tornarão frequentes e cada vez mais nocivos.
A forma desigual como a crise climática afetará as populações urbanas, e as responsabilidades no que tange seus efeitos e causas, coloca em evidência o conceito de Justiça Climática, que surge como um desdobramento do conceito de Justiça Ambiental. Esse movimento está intrinsecamente relacionado com movimentos sociais pelos direitos civis, pela igualdade racial e de classes existentes nos Estados Unidos e que passam a englobar os conflitos neste país decorrente das consequências dos problemas ambientais para as populações mais vulneráveis.
Em linhas gerais, a noção de justiça ambiental fundamenta-se na ideia de nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, deve arcar de maneira desproporcional com os efeitos ambientais negativos de operações econômicas, de decisões políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas [3]. De forma análoga, os movimentos por justiça climática visam reduzir a vulnerabilidade de grupos sociais desproporcionalmente afetados pelas mudanças do clima. A base comum é, portanto, o combate às desigualdades sociais, raciais e de renda que, em nossas cidades, expressam-se nos processos de exclusão sócio-territorial. Nesse sentido, a luta por justiça climática ou ambiental indica que os desafios que a crise do clima nos impõem passam necessariamente por uma transformação radical dos processos de produção do espaço de nossas cidades.
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A emergência do cenário coloca-nos diante da necessidade de mudança completa do padrão de desenvolvimento urbano, o que afeta não apenas a prática da arquitetura e do urbanismo, mas de todos os setores e forças atuantes nas políticas urbanas. Não é exagero dizer que devemos rever rapidamente e de forma profunda a ação do Estado, do setor privado e da própria população habitante das cidades. As soluções apontadas atualmente pela arquitetura sustentável, como os “edifícios verdes”, não são suficientes. Além de pontuais e sem impacto de escala, elas são tratadas como elementos de grife acessível apenas às camadas mais ricas, sem romper com o padrão de exclusão.
A (re)produção do espaço urbano, de maneira geral, não está caminhando no sentido da justiça ambiental e da reversão das desigualdades sócio-territoriais. Isso porque a regulação estatal e as práticas sociais em nossas cidades continuam baseadas em modelos de consumo excessivo, desrespeito às funções socioambientais da propriedade e injusta distribuição dos ônus e benefícios do processo urbanizador. Embora se fale em cidades sustentáveis há anos, esse conceito não modificou suficientemente a política urbana no Brasil.
Um aspecto que nos parece central é como conectar as necessidades materiais da vida urbana, como o acesso a moradia, serviços e infraestruturas, com compromissos de enfrentamento das desigualdades territoriais, mudança do modelo de desenvolvimento, promoção e defesa de direitos humanos e democracia. O Direito à Cidade tem se mostrado como uma possibilidade com grande força de articulação dessas dimensões, inclusive quanto às questões ambientais. Nesse sentido, aproximando-se bastante dos princípios da justiça climática, o movimento pelo Direito à Cidade entende que nenhuma pessoa ou grupo étnico, racial ou social deve ser alvo desproporcional dos impactos negativos do desenvolvimento. Com isso, tem ressignificado o jargão leave no one behind (não deixar ninguém para trás), da ONU, no sentido da justiça sócio-territorial e da promoção dos direitos humanos sem discriminação.
O Direito à Cidade não se limita a princípios abstratos. Seus componentes fornecem elementos concretos, parâmetros e indicadores para que as políticas e práticas urbanas passem pelas mudanças necessárias ao enfrentamento da crise climática. As cidades devem assumir sua responsabilidade diante do colapso iminente, mas isso só ocorrerá se houver um forte compromisso coletivo em torno de um outro modelo de urbanização.