publicado dia 26 de agosto de 2019
Ciências no Brasil: escassez de financiamento e uma produção pouco conhecida
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 26 de agosto de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
“A sociedade brasileira e a humanidade estão enfrentando desafios sem precedentes sociais, econômicos e ambientais. E não há nada que não possa contra atacar esses desafios senão a soberania da ciência.”
No dia 16 de agosto, para um auditório lotado na Universidade de São Paulo (USP), o físico e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) Ricardo Galvão deu uma palestra de duas horas sobre a soberania da ciência e a importância da autonomia universitária.
Embora cientista de renome internacional, Galvão e o próprio INPE não eram tão conhecidos fora dos meios acadêmicos antes do último mês. Após uma série de embates públicos com Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente, e com o presidente Jair Bolsonaro sobre o monitoramento do desmatamento da Amazônia – nos quais eles acusavam o INPE de manipular os dados – o pesquisador foi exonerado ao rebater as críticas do governo.
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O imbróglio recente entre INPE e o poder executivo do país é metáfora para entender a relação entre sociedade e as ciências no Brasil: não há somente um desconhecimento público com relação a produção científica brasileira, mas também pouco investimento na nossa produção científica ou tecnológica.
Não são poucas as representações nos anais da história da difícil relação entre política e ciência. Em sua fala, Galvão trouxe algumas parábolas; a da médica Hipátia, cientista do século V em Alexandria que foi perseguida por seu gênero e sua produção disruptiva. Mais recentemente, a fuga de cérebros causada pela ditadura militar brasileira.
“Nós das instituições científicas sempre fomos atacados quando divulgamos o que os poderosos não querem ouvir. Mas o conhecimento científico não pertence à esquerda ou à direita. Sempre devemos lutar contra os assaltos, ataques à ciência independente de nossa ideologia partidária ou política. Temos que nos levantar e nos colocar à frente”, defendeu o físico.
O Brasil investe cerca de 1,5% do seu PIB (Produto Bruto Interno) em Ciências e Tecnologia – para se ter uma ideia, Ruanda, Japão e Coreia do Sul aplicam 3%. Faz dez anos que o investimento diminui progressivamente: hoje, o Brasil enfrenta um contingenciamento de 42% das despesas do ministério e um corte de verbas em universidades federais e no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2019 inaugurou um novo e preocupante capítulo dessa relação. O presidente vigente toma grande parte das decisões sem acessar pesquisas – e sua cúpula até rechaça algumas, como as relacionadas às mudanças climáticas e sobre o uso de drogas. Bolsonaro já chegou até a alegar que “chega de estudiosos e especialistas”.
“A situação é grave. Não se pode banalizar o que se levou 50 anos para construir: universidades que hoje estão par a par com instituições internacionais”, alerta Roseli de Deus Lopes, diretora da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Ainda que haja aridez no financiamento científico, muito se tem produzido dentro das universidades brasileiras, cátedras de toda pesquisa básica e aplicada no Brasil. Foram nelas que se criou um gel de gengibre para tratar pés diabéticos; é brasileira a iniciativa de usar pele de tilápia no tratamento de queimaduras; e também a tecnologia de combate a uma praga do feijão.
Essas descobertas, entretanto, encontram pouca porosidade na mídia e na sociedade. Foi para tornar a ciência mais palatável e menos desacreditada que as cientistas Ana Bonassa e Laura de Freitas criaram o projeto Nunca Vi 1 Cientista. Em canais como Youtube e Instagram, elas falam de ciências de maneira descontraída, tirando dúvidas do público.
“Pegamos memes, assuntos e notícias, e partir daí explicamos os fenômenos com dados científicos”, explica Laura. “Não falamos sobre o que queremos que as pessoas saibam sobre ciência, e sim sobre o que elas já estão falando e debatendo, só que de uma forma científica.”
Se 90% dos jovens não conhece o nome de um cientista brasileiro – segundo pesquisa Percepção de C&T realizada pelo Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (Fiocruz) e da Casa de Oswaldo Cruz – para as duas pesquisadoras isso se dá porque cientistas ainda não encontraram jeitos de falar para além de seus próprios círculos, como explica Ana:
Para tentar transpor o abismo comunicacional, jornais científicos das universidades têm transformado sua linguagem. O Jornal da USP, que divulga a produção dos campus espalhados pelo estado, é um exemplo. “Temos que mostrar para a sociedade o que a universidade faz e como a ciência produzida resulta em benefícios para todos, seja em produtos, em políticas públicas ou em tratamentos médicos. A razão é muito simples: a sociedade sustenta a universidade. Então é fundamental alcançar o público externo para mostrar o que é feito com seu dinheiro”, explica o superintendente da comunicação, Luiz Roberto Serrano.
“A universidade ainda não conseguiu na maioria dos casos mostrar para o público o que ela faz. Isso tem muito a ver com a própria linguagem da comunicação científica. Parece que quando um cientista se encontra com outro um vocabulário rebuscado toma conta.”
Laura complementa que dentro da própria universidade há resistência, e que muitas vezes os cientistas não querem testar outras formas de comunicação. “Se a gente fica só com nossos cientistas, nossa panelinha, as pessoas não vão saber o que a gente faz. E se as pessoas não sabem o que a gente faz, elas não nos dão apoio. Se não nos dão apoio, as verbas são cortadas, como está acontecendo agora.”
Para além dos contingenciamentos, a autonomia universitária também está em jogo. Garantida constitucionalmente, essa máxima está sofrendo vieses como Future-se e, em São Paulo, uma recém-instituída CPI das Universidades.
Para exemplificar o quanto a autonomia é necessária, Ana fala sobre a pesquisa básica, primeira a ser cortada em contenção de gastos: “Pesquisa básica é a pesquisa que não necessariamente irá gerar um produto. Pode ser que, daqui há algumas décadas, ela gere algum bem, mas a pesquisa básica tem por princípio produzir novos conhecimentos.”
O Future-se, lançado em julho pelo Ministério da Educação, visa ampliar a autonomia financeira das universidades a partir da maior participação de verbas privadas no orçamento universitário. Especialistas criticam o modelo.
Se é só o mercado que dita as pesquisas, então, elas vão estar invariavelmente comprometidas, como adiciona a cientista. “Empresas privadas querem lucro e a aplicação da pesquisa básica. Eles querem um fármaco, o melhoramento de um protetor solar. O que acontece com as pesquisas básicas que não necessariamente vão resultar nisso, mas são vitais para o progresso científico?”
Isso não quer dizer que pesquisas não possam ser financiadas pelo setor privado, mas Laura afirma que modelos como os adotados em Estados Unidos, onde 60% da universidade é financiada pelo Estado, garantem que a universidade possa pesquisar a partir de investigações próprias, o que traz avanços multifacetados para a ciências, e também garante sua soberania.
“Ciência não é opinião e não se constrói sozinha. Para publicar é preciso respaldo de outros cientistas, de uma base sólida de refutações. Ninguém constrói avanços científicos e políticas públicas baseado em achismo. E isso só vai acontecer se a universidade continuar autônoma”, arrematou Laura.