publicado dia 4 de agosto de 2015
CEUs cumprem papel social na construção coletiva do espaço público, afirma idealizador do projeto
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 4 de agosto de 2015
Reportagem: Danilo Mekari
Em seu contexto clássico, com uma sala de aula composta por lousa, professor em pé e alunos sentados, os espaços internos de uma escola podem ser facilmente confundidos com cárceres. Agora pense na área externa e pública da maioria das instituições de ensino no Brasil: quantas vezes pode-se reconhecer que aquele lugar é uma escola apenas avistando-o de longe?
É através de grades, janelas de ferro, parcas áreas verdes, paredes cinzas e despedaçadas que costumamos reconhecer as escolas públicas brasileiras. Quando avaliadas em relação ao ambiente e recursos disponíveis para a aprendizagem, as unidades de ensino do país demonstram que ainda estão longe de garantir que tais elementos tenham um papel educador na formação de crianças e adolescentes.
Para se ter uma ideia, segundo dados do Censo Escolar 2014, sete em cada dez unidades de ensino do país não possuem quadras, somente 17% dispõem de sala de leitura e pouco mais de 12 mil construíram laboratórios para compor o ensino de ciência. Se você considera esses recursos supérfluos, pasme ao saber que mais de 23 mil escolas no Brasil não oferecem banheiros em suas dependências.
A arquiteta e professora da Unicamp Doris Kowaltowski, autora do livro Arquitetura Escolar: o projeto do ambiente de ensino, é uma das defensoras de que o espaço físico da escola influencia a forma como as pessoas trabalham e aprendem dentro dele. Para ela, o ambiente escolar deve dialogar diretamente com o projeto pedagógico e ser projetado com a participação da comunidade.“Eu sou a favor de um processo participativo da comunidade escolar, onde alunos, pais, professores e diretores, junto ao arquiteto, discutem como deve ser essa nova escola.”
Aprofundando a discussão sobre a relevância da arquitetura na educação, o arquiteto uruguaio Pedro Barrán, responsável pelos projetos das escolas em tempo integral de seu país, discute a necessidade de criar espaços onde seja possível a coexistência de várias formas de aprendizado.
“Acredito que a arquitetura tem que dar a possibilidade de a educação ser mais flexível. Que você possa armar distintos grupos de trabalho em um mesmo espaço, que a professora possa atender aos alunos que realmente não entendem as matérias e que têm grandes dificuldades, onde haja um espaço para essa atenção mais pessoal”, propõe, lembrando que, sozinho, um bom projeto arquitetônico não é suficiente para garantir a qualidade da educação.
Opinião reforçada pela urbanista Beatriz Goulart, coordenadora do projeto Cenários Pedagógicos, para quem “não adianta o espaço ser lindo e a gestão e o currículo continuarem atrasados. Desse jeito, vai ser apenas um presídio colorido”. Segundo ela, se o prédio for destinado a ensinar ordem e disciplina, ele estará fadado ao fracasso.
Nesse diálogo complexo entre forma e conteúdo, baixar os muros e abrir os portões da escola para a comunidade não apenas expande o espaço educativo para a cidade: também contribui para transformar a cidade em um lugar mais igualitário. Um ambiente escolar harmonizado com o território onde está inserido potencializa suas práticas, aproxima novas pessoas do processo pedagógico e rompe com a divisão estabelecida entre escola e território.
Um exemplo dessa busca pode ser visto nos Centros Educacionais Unificados (CEUs), que acabam de completar 12 anos. Em 2003, quando foram inauguradas as primeiras 21 unidades, o órgão responsável pelo projeto arquitetônico, o Departamento de Edificações (Edif) – ligado à Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras – era formado por técnicos, arquitetos e engenheiros coordenados pelo professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), Alexandre Delijaicov.
Criados para ampliar a aprendizagem escolar, os CEUs pretendiam ser um endereço público, um ponto de encontro, assim como a rua. E tinham como desafio levar à cabo a ideia de construção coletiva do lugar. “Desde o projeto, a escolha de terreno, a construção, a escolha da gestão – tudo é visceralmente ligado à noção de apropriação social do espaço, de pertencimento e mobilização social”, afirma Delijaicov.
Baseado em paradigmas como urbanismo lento, rua viva e esquina cultural, o arquiteto assinala que um espaço público não necessariamente deve se restringir a praças, parques e ruas, sempre a céu aberto: ele também pode ser fechado e coberto. “O edifício público é um lugar legítimo e compõe o direito à cidade, que engloba infraestrutura, equipamentos públicos e habitação social.”
Diferente de um shopping center que, na visão de Delijaicov, é um “simulacro” de espaço público, os CEUs são locais que “propõem uma formação urbana, espaços de aprendizagens e virtudes de se estar numa cidade”. São ainda, em sua definição, “espaços de contraponto ao urbanismo mercantilista e rodoviário”, que “destrói as relações humanas, afastando e esterilizando as pessoas”.
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Inspirados nas Escolas Parque
O professor retoma as Praças de Equipamentos Sociais, implementadas em meados da década de 90, no governo municipal de Luiza Erundina, que reuniam um conjunto de equipamentos públicos municipais de educação, cultura, esporte, lazer, assistência social e saúde.
Inspiradas nas Escolas Parque de Anísio Teixeira, elas carregavam o conceito simbólico de lugar de encontro e reconhecimento, um lugar para onde as pessoas iam para se inventar e reinventar. “Não um lugar contemplativo, mas um lugar de ação pública e transformação”, completa o professor.
Mais de uma década depois, as Praças redundaram nos CEUs. “É uma ideia que consolida a cultura de projetos da arquitetura pública de um jeito extraordinário. Anísio reconhecia a importância da cidade, da arquitetura e das artes para a formação do cidadão brasileiro. Dizia que um edifício público pode ser uma obra de arte e isso influenciaria diretamente na formação do indivíduo.”
Se nos anos 1950, em Salvador, as Escolas Parque representavam a vanguarda da inovação educacional brasileira, lançando um polo de rede, um centro de estruturação urbana capaz de unir diversos equipamentos sociais de um território, em 2003, cabia aos CEUs resgatar essa proposta agora na cidade de São Paulo. “Todos os CEUs levaram benfeitorias estruturais para seus entornos num raio de dois quilômetros, distância razoável para um adulto caminhar”, aponta Delijaicov.
E metaforiza: “Considerando o CEU como o núcleo de uma célula, esse raio pode ser o seu citoplasma, e as mitocôndrias – que não estão no núcleo, mas são tão ou mais importantes que ele – são as outras escolas, espaços públicos e centros culturais da região. Apesar de ser um centro gravitacional, não significa que o CEU está numa ação de cima para baixo com a rede existente. É uma via de mão dupla.”
A comunidade educa
Nessa trajetória de construção em parceria entre poder público, especialistas e moradores das comunidades, alguns erros podem ocorrer. Como quando as obras dos CEUs priorizaram os materiais pré-fabricados. “Foi um equívoco. Parede, janela, vinha tudo pronto, mas criou um mal-estar na comunidade: afinal, como gerar apropriação social se chegamos com as peças prontas para montar e ir embora?”, questiona o professor.
“Refizemos os projetos várias vezes, no intuito de considerar a cultura construtiva local, levando em conta como aquelas pessoas construíam suas casas.” Diversos espaços são inspirados em puxadinhos, sobrados e lajes, muito presente nas obras locais. Serralheiros e pintores do bairro foram chamados para a construção, gerando renda para as comunidades.
Gestão democrática
“Qual é o coração e a alma do CEU? Onde está a vida ativa dele? No conselho gestor. É onde está a produção coletiva da coisa pública. Ele é intersecretarial, dá voz para todo mundo, de igual para igual – não apenas no âmbito da administração pública, mas principalmente incluindo os movimentos sociais e a população organizada”, opina Delijaicov.
No projeto original dos CEUs, que compreende a primeira leva de construções (21 no total), até as cores das estruturas eram pensadas com afinco. As paredes azuis simbolizavam locais onde passa água (banheiros, caixas d’água); as vermelhas significavam circulação (escadas, elevador); e em referência à gema do ovo e ao embrião de futuros cidadãos, as salas de aula eram amarelas.
Uma informação, a qual poucos têm acesso, é que todos os CEUs dessa etapa estão de frente para um curso d’água da capital paulista. Nascentes, córregos (como no CEU Perus), riachos e rios (como no CEU Aricanduva) compõem a paisagem das unidades, localizadas em uma São Paulo com mais de 300 rios canalizados e que atravessa atualmente uma grave crise hídrica.
Delijaicov relata que nada disso foi ao acaso. A ideia era mostrar a contradição das águas sujas dos cursos naturais e a água límpida das piscinas dos Centros. “Queríamos dizer o seguinte: fomos nós que deixamos o rio ficar assim, e somos nós que teremos que reverter essa realidade”, revela, sintetizando que os CEUs foram projetados na perspectiva de uma Cidade Educadora.
“A cidade é um elemento dinâmico e instigador do imaginário da criança e é fundamental para a sua formação técnica, ética e poética na arte das relações humanas.”
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