publicado dia 3 de fevereiro de 2015
Black is beautiful: 10 filmes blaxpoitation que refletem o orgulho negro
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 3 de fevereiro de 2015
Reportagem: Pedro Nogueira
Em 1970, o ator e diretor Ossie Davis lançava o filme “Rififi no Harlem”, considerado o primeiro filme do que viria a ser conhecido como “Blaxpoitation”, um gênero protagonizado, dirigido, roteirizado e produzido por negros nos Estados Unidos, que teve seu auge nos anos setenta. Filmes policiais, de gângsters, faroeste e até de terror eram “sampleados”, nas palavras do crítico de cinema, pesquisador e especialista no gênero Heitor Augusto.
Heitor Augusto é crítico de cinema e pesquisador, educador e está preparando um livro sobre blaxpoitation que deverá ser publicado até o final de 2015. Escreve para a revista Interlúdio e mantém o site http://ursodelata.com/.
“Blaxpoitation significou uma explosão do negro no cinema, tanto na frente das câmeras, protagonizando suas histórias, nos seus lugares, como também atrás das câmeras”, afirma o crítico. Para ele, esse conjunto de filmes, reflete uma radicalização no pensamento negro. “Eles abriram mão de um discurso conciliador, melhorista, para dizer: essa é nossa hora, queremos ser protagonistas de nossas histórias. Isso é black power. Isso é gritar que Black is beautiful (“O negro é lindo”) e Say it loud, i’m black and i’m proud(Grite, sou negro e orgulhoso)”.
Talvez você já tenha ouvido falar do gênero a partir de suas referências no cinema atual, mais notadamente nas obras de Spike Lee e Quentin Tarantino (com Jackie Brown e Django Livre). Mas quando ele apareceu, foi uma revolução nas salas de cinema dos EUA. Pela primeira vez, o país que teve um dos alicerces de seu cinema no “Nascimento de uma nação”, de D.W. Griffith, que conta a história do surgimento da organização de supremacia branca Klu Klux Klan, e na qual os negros sempre apareciam em papéis secundários ou subalternizados – quando apareciam – passou a ter parte de sua população representada e representando nas grandes telas.
Mas tampouco era o único passo: os anos setenta se forjaram, para o povo negro norte-americano, na sequência das lutas pelos direitos e civis e os consequentes assassinatos de Malcom X e Martin Luther King. Os negros tornaram-se sujeitos de direitos, mas ainda sofriam – e sofrem – com os efeitos de centenas de anos de segregação racial e escravidão. Enquanto os panteras negras organizavam as comunidades, Sun Ra criava o afrofuturismo, James Brown cantava o funk e havia a progressiva afirmação de uma estética negra que, segundo Augusto, “não pedia licença para existir”. “Existe porque tem orgulho da negritude, de seu passado e sabem que isso lhes dá força, dá distinção, lhes dá poder”.
E o que resgatar esse gênero hiperbólico, muitas vezes criticado, tem a dizer para o Brasil, nosso cinema e aos brasileiros? Para o crítico, que atualmente trabalha em um livro sobre o tema, o Blaxpoitation ainda pode comunicar muito aos jovens. “Muitas das situações retratadas nos filmes, a falta de perspectiva, as drogas, a opressão, a violência policial, a raiva do sistema. Qualquer moleque negro manja disso. No “Cleopatra Jones” tem uma cena de esculacho no qual a polícia planta heroína – de verdade! – em uma pessoa. Quantos meninos não viveram isso? Quanto isso não ajuda a ilustrar nossa realidade?”, questiona Augusto.
Na última semana, o Portal Aprendiz publicou uma reportagem sobre o projeto “Manifesto Crespo”, que trabalha com a questão da identidade negra a partir do cabelo. “O cabelo é uma das partes mais intrincadas do corpo negro. Especificamente na mulher, ele aparece com muita força: a mulher negra não é referência nem padrão de beleza na sociedade. Por conta disso, sofremos muita violência estética e isso gera várias consequências, principalmente no processo de formação ao longo da vida”, afirmou, então, a trancista Denna Hill. Para engrossar esse caldo, lembramos do período cinematográfico que gritou que o negro é lindo e imortalizou o black power – estilo de cabelo conhecido como “afro”, que no Brasil ganhou a alcunha do movimento de resistência negra – e pedimos que Heitor Augusto nos indicasse dez filmes. Confira abaixo:
Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (1971)
Dirigido, produzido e protagonizado por Melvin Van Peebles, o filme conta a história de um homem em fuga da opressão da polícia branca. Com trilha sonora do Earth Wind & Fire, é destacado por Augusto por ter uma das melhores trilhas do gênero e por ser um “road movie” com um herói forasteiro e foragido, que “desafia um estado e uma polícia racista”.
A obra foi considerada por Huey P. Newton, fundador do movimento Panteras Negras, como fundamental e passou a ser bibliografia obrigatória para todos os membros do grupo.
Shaft (1971)
“A quintessência do cool”. Assim Heitor Augusto lembra do filme de 1971, reeditado em 2000 com Samuel L. Jackson como protagonista. Mas o que é o cool? Para explicá-lo, uma breve digressão com a ajuda da biografia de Walt Frazier, ex-jogador de basquete.
“O cool é uma qualidade admirada nas comunidades negras. Ser cool é questão de auto-preservação e sobrevivência. Deve vir do tempo da escravidão, quando muitas vezes tudo que um negro tinha para se defender era sua postura. Se ele demonstrasse medo ou raiva, ele sofreria as consequências. Hoje, o cara respeitado no gueto é aquele que resiste ao impulso de explodir – que consegue lidar consigo mesmo numa crise, que consegue sair de uma briga no papo.
O cool também provê uma uma defesa para a comunidade no gueto. É usada contra adversidades coletivas como, por exemplo, contra os policiais, que são mal vistos nas comunidades. (…) Algumas pessoas podem achar que o cool é um afastamento de sentimentos reais. Mas às vezes, manter o cool é a coisa mais sensível a se fazer”.
Essa atitude, marcada por um distanciamento contemplativo e elegante, que proliferou também na indústria cultural, é evidente na cena de abertura do filme, que narra a história de um policial negro, Shaft, interpretado por Richard Roundtree (veja abaixo).
Superfly (1972)
Superfly narra a história de Youngblood Priest, um traficante de drogas que quer largar o ramo e mudar de vida. A trilha sonora, feita por Curtis Mayfield, se tornou mais famosa que o filme, que segundo Augusto, “tem a coragem de trazer um herói politicamente incorreto, um sujeito em crise, uma formiguinha cansada de trabalhar nessa máquina”. Uma curiosidade: A canção “Freddie’s Dead”, da trilha do filme, foi sampleada por KL Jay na faixa “Mano na porta do bar”, dos Racionais Mcs.
Cleopatra Jones (1973)
Cleopatra é uma agente anti-tráfico de drogas. Após queimar um campo de papoula, – numa cena cheia de grandiloquência e estilo – seu maior inimigo jura acabar com ela. Para Heitor, além de trabalhar com o feminino, este filme é “significativo na questão do orgulho negro, de ser negro, do pegar o que te faz negro e transformar isso em algo positivo”.
Ganja and Hess (1973)
Um arqueólogo (Hess) é mordido por um vampiro e se apaixona por sua assistente (Ganja). O filme inspirou “Da Sweet Blood of Jesus”, dirigido por Spike Lee, e apresentado em Cannes no ano passado. O tema do vampirismo foi considerado pelo crítico Scott Foundas como uma metáfora da “assimilação negra, imperialismo cultural branco e da hipocrisia das religiões organizadas”.
“É o melhor filme, em termos de cinema, já feito em blaxpoitation. É uma subversão dos filmes de vampiro, ao mesmo em que é um filme reflexivo sobre um autor negro, que pensa as demandas que ele tem que atender, os desejos dele como autor, os desejos da comunidade negra e as pressões e condições de produção dentro do cinema americano”, arremata Heitor Augusto.
The Mack (1973)
O filme de maior renda do gênero, protagonizado por Richard Pryor. Entendido por seu diretor, Michael Campus, como um comentário social e não um blaxpoitation, ele retrata a história de um cafetão. “O herói é um cafetão, mas é um cafetão reflexivo. Apesar de, nas aparências, fazer uma espécie de glamourização desse universo e de sua ascensão social, é também bastante crítico nas entrelinhas ao mostrar que esse processo é frágil, muito frágil”, aponta Augusto.
Black Caesar (1973)
O filme conta a história de Tommy Gibbs, um jovem negro que é espancado por um policial branco quando criança e, ao se tornar adulto, vira o chefão da máfia local. Para Heitor Augusto, o filme merece destaque por “samplear uma mitologia branca de cinema, acessando códigos tradicionais do filme de gangstêr branco, especificamente o Scarface, de 1933, no qual os negros não participavam. Há uma apropriação disso em um ambiente altamente negro”, conclui.
Foxy Brown (1974)
Estrelando a diva Pam Grier, que depois viria a aparecer em Jackie Brown (1997), de Quentin Tarantino, o filme conta a história de uma mulher que, após ter seu namorado assassinado, se infiltra no mundo da prostituição para libertar mulheres negras de uma vida de torpor e escravidão, e conseguir vingança pessoal. “Tal qual Cleopatra Jones, a protagonista é uma mulher forte e independente, segura e também consciente do poder que sua negritude traz”, analisa Heitor.
Space in the place (1974)
Sun Ra, o renomado músico de jazz, aterrissa em outro planeta onde está livre das perseguições do homem branco e resolve fazer lá, junto com sua orquestra, uma nova civilização. O meio de transporte para essa mundo? A música. “O filme reverbera por ter no centro do seu enredo a questão do afrofuturismo, que é uma corrente de pensamento fundamental para se entender a experiência negra da diáspora. E que ainda reverbera na cultura negra de hoje: basta ouvir com atenção a obra de Janelle Monaè”, analisa Heitor.
A estética do afrofuturismo, da qual Sun Ra foi um dos criadores e expoentes, junto com o Parliament de George Clinton, imagina a exploração espacial protagonizada por negros, fazendo metáforas da ascensão – presente no cancioneiro negro desde a escravidão – e da experiência, de estranhamento e deslocação da diáspora, da abdução de sua terra-mãe, a África. A capacidade de imaginar artisticamente outras realidades, não como fuga, mas como possibilidade, está presente na música do jazzista e encontra sua solução visual nesse filme.
Mandingo (1975)
O tema deste filme apareceu recentemente no Django Livre, de Quentin Tarantino. Ele conta a história de negros que eram treinados por um senhor de escravos para lutarem entre si, numa espécie de luta livre sangrenta. “É um filme audacioso por trabalhar com esterótipos, arquétipos e fetiches de outra maneira”, afirma o crítico.
Observação: os filmes aqui indicados são de temática adulta.