publicado dia 8 de agosto de 2018
Biblioteca comunitária é ponte entre literatura e território
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 8 de agosto de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
“A biblioteca? É a água”
Frase dita por jovem árabe no livro “A arte de ler”, de Michèle Petit.
Os livros carregam histórias além das que contam. Suas bordas têm sinais de manuseio, suas letras já foram devoradas por mãos afoitas e olhares curiosos. Alguns leitores os leem em silêncio; crianças brincam com eles, fazendo-os de chapéu. Na biblioteca comunitária, a literatura se faz com o território, a comunidade, e no prazer de ler – ou no de escolher não fazê-lo.
Em julho de 2018, foi aprovada a Política Nacional de Leitura e Escrita. A conquista é fruto de militância de ativistas pela educação e literatura, e prevê, entre outras propostas, o reconhecimento da leitura e da escrita como direito universal, além do fortalecimento do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP).
A biblioteca comunitária é o contrapelo da biblioteca heterodoxa e asséptica, como muitas vezes são construídas as institucionais, universitárias e, até mesmo, as públicas.
Estas últimas, cerca de 7 mil – muitas delas na região Sul e Sudeste, de acordo com o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) – não garantem necessariamente o acesso à leitura: algumas são centrais, distantes de territórios de vulnerabilidade. Outras, quando no território, dialogam pouco com ele, e se tornam elefantes brancos. E há lugares onde elas sequer existem.
“A biblioteca não é uma prestadora de serviço. Ela precisa ser uma instituição de construção de direito à leitura e escrita, à memória e à história. Mais importantes do que estantes ou prateleiras são seus espaços de convivência”, dispara Bel Santos Mayer, educadora, gestora da Rede LiteraSampa e do programa de jovens da Biblioteca Caminhos da Leitura.
A biblioteca comunitária nasce da ausência: de políticas públicas, de literatura disponível e relacionável, da própria biblioteca. Também nasce do desejo, como Bel afirma: “Elas são bibliotecas que nascem da iniciativa de uma comunidade, ou da escuta sensível de alguém aos desejos dessa comunidade que, às vezes, não conseguiu desejá-la, porque tudo, inclusive o livro, parece tão longe.”
A biblioteca comunitária Djeanne Firmino, antes Brechoteca, nasceu em 2009 de anseios de uma comunidade desejosa por uma literatura que espalhasse sua realidade. Seu berço foi o Sarau do Binho, um dos encontros poéticos mais consagrados da zona sul paulistana.
Hoje ocupando espaços da Associação de Moradores do Jardim Olinda, a biblioteca ainda carrega a alma de sarau em ser um espaço democrático e de livre acesso, com livros para ler e brincar.
“Na biblioteca comunitária, o território fala muito forte, porque já nascemos dele. Então com os quereres e saberes territoriais, a biblioteca atua na perspectiva de salvaguardar a memória desse lugar”, afirma Cris Lima, co-gestora e mediadora de leitura da biblioteca, que carrega hoje o nome de uma das maiores responsáveis por seu acervo diverso. A biblioteca também faz parte da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), assim como a Caminho da Leitura.
É também em um território igualmente rico em cultura e ancestralidade que brotam as bibliotecas comunitárias da Associação Vaga Lume. Atuando desde 2001 na região da Amazônia legal, a rede é formada por 99 bibliotecas, que ganham forma em casas de palha, moradias ou dentro de escolas. Através da mediação da literatura, se trabalha a cultura local de povos tradicionais como os indígenas, os quilombolas e os ribeirinhos.
“Estamos em comunidades muito distantes, de difícil acesso. A biblioteca se torna não somente um espaço de leitura, mas promoção de direitos da comunidade e da diversidade”, afirma Lia Jamra, gerente de comunicação da associação.
As bibliotecas comunitárias têm cravada no nome a palavra comunidade. Em territórios de vulnerabilidade, elas podem ser o único ponto de acesso à cultura em quilômetros. “A leitura nas periferias e nas comunidades vulneráveis tem caráter educativo, poético e político. E a biblioteca comunitária entendeu que ela acontece da porta para dentro e para fora. Ela anda, vai para a rua, escola, para o poste em formato de lambe. É uma biblioteca que circula”, explica Bel.
Quem senta nas cadeiras de praias coloridas da biblioteca Djeanne Firmino se depara com uma imensa bibliodiversidade; há mangás japoneses, clássicos como Cecília Meirelles ou Marina Colasanti, literatura periférica, cujos autores como Sergio Vaz podem a qualquer momento esbarrar com jovens lendo suas poesias.
“Todo livro é uma porta para a leitura, e não necessariamente o que dialoga com nós enquanto mediadoras dialoga com os leitores. Por isso temos de tudo”, explica Alessandra Leite, mediadora de leitura. “A bibliodiversidade permite que os meninos e meninas se identifiquem com as histórias e personagens. Cabe a nós então criar um acervo crítico e diverso, com prioridade para literatura afro-brasileira e indígena.”
A autora francesa Michèle Petit dedicou sua carreira a entender como a literatura é essencial na formação integral do sujeito, principalmente de jovens e adolescentes em situações de vulnerabilidade social, conflitos armados ou refúgio. No livro A arte de Ler – ou como resistir à adversidade, a autora relata: “Em tais contextos, crianças, adolescentes e adultos podem redescobrir o papel dessa atividade (a leitura) na reconstrução de si mesmos, e além disso, a contribuição única da literatura e da arte para a atividade psíquica. Para a vida, em suma.”
Um processo semelhante se dá nas regiões amazonenses onde a Associação Vaga Lume atua. Quando vão até São Gabriel da Cachoeira (AM) ou Guimarães (MA), as bibliotecas devem fazer sentido dentro das comunidades, e isso perpassa, muitas vezes, em dar espaço para a contação de histórias e para a tradição oral. “As histórias locais são sempre muito ricas, e quando autorizadas, nós também produzimos livros físicos do que nos é contado dentro de rodas de comunidades quilombolas ou indígenas”, conta Márcia Licá, coordenadora da área de educação da Vaga Lume.
Ainda que em territórios muito distintos, ambas as bibliotecas contam com uma figura de grande importância. Mediadores de leitura servem de ponte entre um potencial leitor e um livro, facilitando caminhos e construindo afetos. Como explica Bianca Pereira, mediadora de leitura da Djeanne Firmino. “É um trabalho na base da escuta e da proximidade. Às vezes lemos com eles, outras vezes eles leem para nós, percebendo esse lugar ativo da literatura.”
Se não nutrida no seio familiar, a escola é geralmente o primeiro espaço de contato entre sujeito e literatura – contato que pode ser áspero. Em geral, os espaços educativos tradicionais não individualizam a leitura, apresentando conteúdos homogêneos para alunos possuidores de menor ou maior grau de intimidade com a prática.
O resultado é um país de poucos leitores. De acordo com a última edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2016, 44% dos brasileiros quase não lê ou nunca lê.
A fim de reverter esse quadro, a escola precisa ser vista como aliada da biblioteca comunitária, diz Bel. “Temos que trabalhar com a escola porque ela tem a escala. Tem a obrigatoriedade, recebe todo mundo, as crianças passam por lá. É preciso envolver os professores nas formações sobre literatura. É tanto nela quanto na biblioteca comunitária que se faz possível perceber que a gente, enquanto povo, pode gostar de ler.”