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publicado dia 4 de fevereiro de 2014

Às vésperas da Copa, quem entra em campo é a polícia

Reportagem:

Com a colaboração de Raiana Ribeiro

No Brasil, um dos prognósticos para o mês de julho são milhares de pessoas reunidas em praças públicas para comemorar o hexacampeonato, caso a seleção brasileira conquiste a Copa do Mundo de 2014. Outra previsão possível é aquela na qual milhares de pessoas sairão às ruas para protestar contra a realização do torneio e a priorização de investimento público em obras privadas, de questionável legado social para a população.

Muito antes disso, porém, grande parte das ruas, avenidas e espaços públicos das 12 cidades-sede do evento estará tomada não pela população, mas por forças militares especialmente escaladas para garantir a segurança daquele que é considerado o maior evento do planeta.

Forças de segurança e manifestantes entram em choque no Rio de Janeiro.

Não demorou muito para que os excessos no uso da força policial no espaço público viessem à tona em 2014: no último dia 25/1, quando moradores das cidades-sede protestaram contra a realização do torneio, o choque entre manifestantes e policiais resultou em um cidadão baleadooutro atropelado, alguns feridos e mais de cem de presos.

Apesar do anúncio das autoridades de que os excessos policiais serão investigados, as fortes imagens que circularam pela internet e o passado de impunidade que ronda a instituição anunciam as inúmeras violações aos direitos humanos que devem engrossar os “custos” do evento.

Cidade vendida

A privatização dos espaços públicos não é necessariamente uma novidade para os brasileiros. O professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Vainer, acredita que esse processo, iniciado há cerca de 15 anos, fica mais evidente durante eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

“Uma série de concessões vai ser dada a FIFA, que não responde a nenhum interesse público, a não ser aos seus associados e patrocinadores – um grupo seleto de empresas multinacionais – aos quais é conferida uma série de benesses e privilégios em um espaço que deveria ser público.”

Segundo Vainer, há um entendimento de que a privatização desses espaços exige a “manutenção da ordem”. Por isso, as polícias civil e militar, os agentes de segurança federais e até mesmo as Forças Armadas poderão ser convocados para controlar qualquer situação que for considerada distúrbio. “Temos a ameaça de que as forças armadas intervenham para a segurança pública, algo que não é sua tarefa. Não é com tanques e soldados preparados para a guerra que se defende os cidadãos”, adverte.

Em nome da ordem

Publicado em dezembro de 2013 pelo Ministério da Defesa, o documento Garantia de Lei e Ordem estabelece as situações nas quais as Forças Armadas poderão ser acionadas para operações de segurança pública. Entre as “principais ameaças”, incluem-se modalidades tradicionais de protesto social cuja dispersão poderá ser realizada pelo Exército, Marinha e Aeronáutica.

A ONG Conectas, que trabalha na promoção dos direitos humanos, vem acompanhando desde o ano passado a atuação das forças policiais brasileiras nos atos de rua. O advogado e coordenador do Programa de Justiça da organização, Rafael Custódio, acredita que “as autoridades públicas, em todos os níveis, usarão a Copa do Mundo como pretexto para avançarem ainda mais na criminalização dos movimentos sociais e das manifestações populares”.

Para Custódio, o enquadramento de manifestantes na Lei de Segurança Nacional ou a tipificação do crime de “terrorismo” são reflexos desse avanço. Ele refere-se ao Projeto de Lei 728, proposto pelo senador Marcelo Crivella (PRB) em 2011, que caracteriza o crime de terrorismo pela primeira vez no Código Penal brasileiro.

Se aprovada, a nova lei abre possibilidade para que qualquer protesto, passeata ou ato coletivo seja interpretado como terrorismo. O PL também quer proibir qualquer tipo de greve durante os jogos e está sendo chamado de “AI-5 da Copa” pelos movimentos sociais, em referência ao Ato Institucional de 1968 que intensificou a repressão durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985).

O texto define terrorismo como “o ato de provocar terror ou pânico generalizado mediante ofensa à integridade física ou privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico ou xenófobo”.

O professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani, avalia que está em curso uma tentativa de criar zonas de exclusividade através da força militar. “O que vai gerar mais exclusão social em um país que já é excludente”, alerta.

Alcadipani, que nos últimos anos vem dedicando seus estudos a organizações policiais e manifestações, crê que a FIFA tem escolhido realizar Mundiais em países “onde os direitos individuais podem ser cerceados com mais facilidade”, como é o caso da Rússia e Qatar – que sediarão os jogos de 2018 e 2022, respectivamente.

Uma estratégia ainda não descartada pelo governo brasileiro é a criação de “tribunais especiais” para julgar e punir supostos delitos relacionados ao torneio. Experiência semelhante foi testada em 2010, durante o Mundial na África do Sul, quando 56 “cortes especiais da FIFA” foram estabelecidas, mobilizando profissionais do Judiciário do país para julgar, entre outros crimes, as violações aos direitos de imagem dos patrocinadores do evento.

Reforços

Nos primeiros dias de janeiro, o governo federal anunciou a formação de uma tropa de choque de 10 mil homens, que serão responsáveis por apoiar as polícias militares na contenção de protestos durante a Copa. A chamada Força Nacional de Segurança Pública, criada em 2004 pelo então presidente Lula, já foi testada em cinco estados durante a Copa das Confederações e deve ser levada a todas as cidades que receberão jogos.

Através da Lei de Acesso à Informação, a Conectas solicitou detalhes ao governo estadual de São Paulo sobre as operações policiais em manifestações de rua durante a Copa do Mundo. Ao todo, 17 perguntas foram enviadas ao Secretário da Segurança Pública, Fernando Grella, sobre temas como: delimitação de áreas de segurança ao redor de estádios, tipificação de condutas criminosas, armamento empregado e contingente envolvido, uso das Forças Armadas e procedimentos em casos de detenção e indiciamento. Pela lei, o governo tem 20 dias para responder – prorrogáveis por mais 10. Pedidos semelhantes foram feitos no Rio de Janeiro e no Paraná.

No que diz respeito aos investimentos em equipamentos de segurança, os valores estimados giram em torno de R$ 1,5 bilhão. As aquisições incluem robôs anti-bomba, tanques com jatos d’água, drones, além de bombas de efeito moral, sprays de pimenta e pistolas de choque.

“A Copa acaba em um mês, mas as instituições ficam. E infelizmente elas estarão ainda mais bélicas, repressoras e armadas. Se hoje as nossas polícias não sabem lidar com o exercício constitucional de manifestação, é previsível que elas estejam muito piores depois dos grandes eventos, já que estão sendo incentivadas como nunca a agirem dessa forma. No nosso dicionário, ordem não significa violação de direitos”, adverte Custódio.

Direito à cidade

Os especialistas ouvidos pelo Portal Aprendiz concordam que a militarização do espaço público viola o direito à cidade. Para Vainer, essa segregação acaba com um elemento fundamental das metrópoles: a existência da diversidade. “O direito à cidade está sendo surrupiado. Esse conceito parte do princípio de que a cidade é um espaço público e é ali que ela vive sua urbanidade. Embora existam espaços privados, a cidade não é feita da soma deles”, argumenta o professor.

Custódio ressalta que, além de revelar como a grande maioria da população está descontente com a vida cotidiana que as cidades oferecem, esse cenário demonstra que o poder público não compreende esse fenômeno e oferece apenas violência como resposta.  “Talvez a indignação sempre tenha existido, mas aparentemente as pessoas estão percebendo que podem e devem ir às ruas exigir que não sejam tão maltratadas assim”, aponta.

“Estamos diante de uma ameaça ao estado democrático de direito e ao direito de expressão e manifestação garantidos pela Constituição. Não há jogo de futebol que justifique isso”, finaliza Vainer.

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