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publicado dia 12 de dezembro de 2014

André Gravatá: O lugar onde você está agora

Reportagem:

por André Gravatá

A quadra do bairro era frequentada pelos garotos do futebol. Raramente usada por outros grupos no bairro, entrou num processo de degradação. Depois de muitas conversas com os moradores da região, um educador teve uma ideia: usar a quadra para um ritual poético. Uma vez por mês, passaram a cobrir o chão da quadra com cheirosas pétalas de rosas. E convidaram as grávidas do bairro para entrar na quadra com os pés descalços. Para pisar sobre as pétalas e dialogar sobre o que fosse importante para elas, diante de uma plateia formada por moradores dos arredores. De repente, a quadra passou a ser frequentada por novos públicos, ganhou outros fôlegos. Foi visitada por pessoas que nunca pensaram em entrar na quadra.

Uma vez por mês, a quadra virou um tapete de pétalas e grávidas em movimento. Assim as grávidas encontraram outro lugar para andar. E a quadra encontrou uma outra identidade possível.

André Gravatá é jornalista, mas pode ser definido como um “esticador de horizontes”, sempre atento às transformações ao seu redor. Com o coletivo Educ.Ação, escreveu “Volta ao Mundo em 13 Escolas”, que pode ser baixado e lido gratuitamente. Em maio de 2014, como integrante doMovimento Entusiasmo, organizou com artistas, escolas, educadores, ativistas e estudantes a Virada Educação, um evento de ocupação criativa do centro da cidade de São Paulo. Pode ser encontrado através do [email protected]

Como criar outras identidades para os espaços da nossa rotina? Essa cena da quadra é real, aconteceu na Colômbia. Na semana em que estive por lá – colaborando na organização de um evento intitulado Semana de Educação Alternativa (SEA), que vai acontecer em Bogotá, em 2015 – ouvi essa história de um educador e poeta chamado Pedro Zapata, que compartilhou comigo não apenas a cena da quadra grávida de uma nova identidade, mas também a história da praça forrada por papel em branco, para que as pessoas escrevessem o que quisessem nas largas superfícies vazias. Pedro me contou sobre os encontros que realizava com jovens, nos quais discutiam temas como sexualidade e suicídio. A partir de encontros e propostas para listar perguntas que faiscassem como fósforos acesos, Pedro organizou um livro com interrogações inventadas pelos jovens, com curadoria dos próprios meninos. O livro está esgotado, mas as perguntas sobrevivem e ecoam:

Quantas letras se beijam quando alguém lê um poema? Para onde vai a inocência quando alguém a perde? Houve alguma vez em que um palhaço morreu de rir? Qual é a pergunta que não surge de uma necessidade? Se as palavras são do ar e vão ao ar, tenho mesmo que respirar toda essa merda que falam? Poderia me dar um sinônimo da palavra flor? O cigarro é um lápis com o qual se escreve a palavra morte nos pulmões? Se não confiamos nos outros, por que duvidamos de nós mesmos? Quando choramos, a tristeza aproveita para se banhar?

GravataPoesiaTais perguntas apontam uma mirada poética para as situações. E só uma mirada poética é capaz de transformar uma quadra degradada em território para pétalas e grávidas. Com inspirações do poeta Zapata e dando continuidade às ações poéticas que eu e amigos temos construído por meio do Movimento Entusiasmo, criamos há algumas semanas uma Ação Poética na Escola Caetano de Campos, no centro de São Paulo. Passamos um fim de semana inteiro na escola para preparar a cena que se desenrolaria na segunda-feira pela manhã.

Na fatídica segunda, chegamos às 5h30 da madrugada, para cuidar das últimas miudezas. Quando os alunos entraram pelos portões, depararam-se com um espaço repleto de desenhos de peixes, pipas, pássaros e olhos. E com cortinas coloridas com mensagens poéticas. E com um pano de quinze metros pendurado na caixa d’água com a palavra “inventolhar” – como inventar novos olhares para a educação? E em cada sala de aula havia um envelope com uma bala e o poema abaixo, que criamos por inspiração de uma passagem do livro Alexandre e outros heróis, de Graciliano Ramos:

o garoto alexandre
decidiu se aventurar
entrou numa floresta
para curiosar

uma onça o encontrou
aí fugiu amendrontado
chegou em casa com sustos
olhou no espelho desesperado

estava sem o olho esquerdo
perdeu metade do olhar na floresta
voltou para o mato para encontrar a visão
demorou, demorou, até ver o olho no chão

levou o olho de volta ao rosto
cometeu um erro inesperado
recolocou o olho ao contrário
passou a ver atravessado
via agora para dentro e para fora
ao mesmo momento
via o que não via antes
via até a dança do vento no horizonte

GravataPoesiaAlém dos envelopes, cada lousa estava coberta com a poesia de Alexandre e desenhos das suas peraltagens. Alunos e funcionários encontraram no portão de entrada um jovem tocando gaita e uma moça com um mega-fone: “Bem-vindos!”. Dentro da escola, voluntários passeavam com guardas-chuvas cheios de fitas coloridas. Volta e meia os alunos e funcionários eram convidados a entrar debaixo dos guardas-chuvas com os voluntários, que diziam: “Você está agora no menor sarau do mundo” e em seguida declamavam alguma poesia ou mesmo faziam uma pergunta sobre sonhos e medos. A inspetora pediu um guarda-chuva para poesiar. O professor Elie também não largava seu guarda-chuva com fitas.

Nesse dia, nem o sinal piiiiiiii de entrada na escola tocou. Era outro sinal que estava tocando todo o tempo: a poesia que alarga frestas e brechas de potência nas pessoas e espaços. E por mais que ainda existam feiúras e resistências num momento bonito assim, a sensação que paira com mais nitidez é a de que dá para reinventar os espaços que vivemos, dá para inventar outros olhares para vermos. Como diz o sociólogo Edgar Morin, a poesia exalta a sensibilidade, reforça o sentimento de comunhão. E a poesia não é composta apenas por versos e estrofes, mas principalmente por uma mirada que vê as letras se beijarem a cada palavra que se encosta, uma mirada que vê os espaços dançarem à medida que ganham novas identidades e as pessoas se alargarem ao reencontrar o olho esquerdo e seguir a vida com um olhar atravessado. E não só espaços ganham novas identidades, com pétalas e guardas-chuvas, mas também as pessoas são provocadas pela poesia a ousar novos movimentos no mundo.

GravataPoesiaA quadra virou um tapete de pétalas. A escola acolheu um acervo de guardas-chuvas-de-mini-saraus. O que pode virar o lugar onde você está? Cadê a poesia que se esconde nas tramas do instante em que você está agora?

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