publicado dia 8 de outubro de 2019
A cartografia como linguagem de resistência de caiçaras e quilombolas
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 8 de outubro de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
É possível traçar um mapa da Praia do Camburi, no limite entre Ubatuba (SP) e Paraty (RJ), de maneira pragmática: desenhar uma faixa de areia extensa onde se imbrica um mar geralmente agitado; porções verdes e minúsculas de Mata Atlântica; e casas que se espraiam tanto pela serra quanto pela região costeira.
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Também é uma possibilidade o desenho de um mapa pelas mãos e olhos de quem nasceu nesse território misto quilombola e caiçara. Com os olhos astutamente negros, a sexagenária Vilma da Masla relembra o nome antigo dos rios: “Tem o Rei do Camarão, Rio do Café, Rio do Arroz, nomes que ninguém mais usa, mas que eu tenho na memória.” Ela traceja o caminho entre as casas lembrando-as pelos nomes de seus ancestrais, que há centenas de anos faziam farinha ou expulsavam cobras na terra que ajudaram a preservar.
Quando o Projeto Povos e seus pesquisadores comunitários chegam pela primeira vez para acompanhar o processo de cartografia social com uma comunidade indígena, caiçara ou quilombola não é incomum um ligeiro desconforto por parte dos moradores. As pessoas nunca desenharam um mapa, e acham que não são capazes.
Mas, a partir do momento em que se juntam e começam a conversar, puxando na memória histórias, tradições e saberes, as comunidades entendem que mapear seu território afetivamente é um processo feito desde sempre.
“Desde criança a gente percorre o território, fazendo brincadeiras no meio da mato, das cachoeiras, das ruínas. Andamos pela comunidade de criança até adulto e isso foi fazendo com que a gente guardasse e lembrasse de cada ponto, cada cantinho da nossa comunidade”, explica o pesquisador comunitário Guilherme Euler.
O Portal Aprendiz acompanhou a feitura do mapa por duas comunidades tradicionais durante a última semana de setembro: a Almada, praia fronteiriça onde está inserida uma comunidade articulada de pescadores; e a Praia do Camburi, onde vivem remanescentes quilombolas e caiçaras da região costeira e do sertão – que é como é chamada pela população a área separada pela construção da estrada SP-171.
O pescador artesanal Marcio Roberto dos Santos, conhecido como Chico, usou sem contenção o giz de cera azul. Nascido e criado no território da Almada, Chico conhece como as linhas das curtidas mãos o mar da região; foi ele o maior responsável pela feitura do mapa de seu grupo que, para além das terras, tinha uma classificação precisa das zonas de pesca de espécies como a tainha e a sororoca.
A mobilização local não é novidade na vida do pescador. “Sempre participei de movimentos pelo território. O pescador geralmente não participa e só ouve aquilo que os outros falam, mas trabalhamos para que ele entenda e se aproprie melhor do seu território.”
O líder comunitário ainda participa do GT da Pesca, um dos grupos de trabalho que mobiliza os pescadores da região, que sofrem com impactos da pesca industrial e da especulação imobiliária na região.
“Antigamente a gente tinha a rede de arrasto na praia, ou o cerco flutuante, que são pescas artesanais. Mas problemas como iluminação costeira, lançamento de esgoto, especulação imobiliária e a pesca industrial foram acabando com essas culturas. Temos que levar o pescador para dentro do planejamento do manejo, porque é ele que sofre com isso.”
Na luta para preservar os costumes dessa região, também apareceu na feitura do mapa a necessidade de cartografar o patrimônio imaterial: as festas e outras manifestações da cultura local.
Benedito dos Santos viveu seus mais de 60 anos no entorno da praia do Estaleiro, que faz parte do território da Almada. Coube a ele lembrar a importância de mapear festividades como a Folia do Divino, uma procissão católica centenária local.
“A Folia do Divino é uma festa que veio de Portugal, onde um folião passa na casa pedindo um pouco de esmola para igreja. Meu pai, que morreu com 104 anos, fazia uma festa de folia que durava almoço, janta e café da manhã no dia seguinte. A Folia tem o mestre, que versa algo religioso, e depois os dois foliões que repetem. É uma festa linda”, conta o aposentado, que relata que muitos dos costumes festivos da região foram se perdendo com o aumento da presença de igrejas neopentecostais.
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Seu Dito também é integrante de um grupo de fandango, dança tradicional da região que se dança de par. “Não dá para explicar o que é fandango, tem que dançar!”, ele brincou, imitando o movimento do bailado com uma mão no peito e a outra no quadril.
“A cultura caiçara tem que ser preservada, e hoje está acontecendo um movimento de resgate por conta da mobilização. Estão ensinando a criança a dançar fandango, as crianças tudo afiadinho. Acostumaram o povo aqui com o forró, e eu não tenho nada contra esse ritmo, mas temos que dar valor também para cultura que a gente tem.”
“Andorinha sozinha não faz verão”, provocou Dona Vilma durante a feitura do mapa do território do Camburi, que reuniu diversas comunidades quilombolas e caiçaras na Associação de Moradores. Com 61 anos de idade e braços sempre cruzados na frente do peito altivo, Dona Vilma é uma das responsáveis por articular sua comunidade na luta por territórios disputados por grileiros, especulação imobiliária e também pelos Parques Estaduais.
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“Eu tô fazendo isso por eles”, ela exclama, apontando para jovens que animadamente pegavam mais cartolina para colar no extenso mapa. “Eu já tô com 61 anos. Daqui a pouco bato as botas. Mas se eu não lutar, meus filhos e os filhos deles ficam sem futuro.”
A história da família de Dona Vilma, que é parte caiçara parte quilombola, espelha a história de muitas lutas dos povos tradicionais locais. Seus avós e pais, descendentes de populações escravizadas, tinham fartura ao plantar mandioca e arroz em pequenas porções de terra da região. A chegada da SP-171 e a cicatriz que ela desenhou entre as comunidades, além do estabelecimento dos Parques Estaduais, que proíbem o manejo da terra, empobreceram as famílias.
“Eu fui multada em 11 mil reais pelo Parque por plantar um pé de mandioca. 11 mil reais, para uma pessoa que só ganha um salário de Bolsa Família”, relata a moradora. “Tem um monte de gente de fora ganhando dinheiro em cima dos caiçaras e dos quilombolas. Perdemos a terra dos meus pais, que não podiam provar que era deles, pois não tinham os documentos.”
O ato de mapear a existência das terras quilombolas e caiçaras – ou de não mapear para preservar espaços sagrados para essas comunidades – é para mitigar o que Julene de Santos, uma das moradoras caiçaras mais antigas da praia de Picinguaba, chama de “perseguição” contra as comunidades tradicionais.
“Quando o parque [Parque Estadual da Serra do Mar] chegou, eles acusaram a gente de desmatar a terra e disseram que o parque seria criado para preservar. Mas fomos nós, indígenas, quilombolas e caiçaras que preservamos essas terras. Só tem parque hoje porque nossas famílias lutaram por esse território.”
*Essa é a segunda parte de cobertura que partiu de um convite do Projeto Povos ao Portal Aprendiz, que acompanhou duas oficinas realizadas no litoral norte de Ubatuba (SP). A primeira reportagem explica como se estrutura o Projeto Povos.