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publicado dia 28 de outubro de 2013

“Na Independência, um professor ganhava menos que um feitor de escravos”

Reportagem:

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Laurentino Gomes apresenta sua trilogia.

Quando Dom João VI, rei de Portugal, chegou ao Brasil em 1808, encontrou 99% da população analfabeta. Diante deste quadro, fundou a primeira escola superior do país, na Bahia, muitos anos depois de nossos vizinhos latino-americanos. Passados 81 anos, um professor e militar, Benjamin Constant, defendia o início da República e promovia as primeiras reformas educativas no país.

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Estes e outros fatos foram trabalhados pelo jornalista e escritor Laurentino Gomes, que concluiu neste ano seu terceiro livro sobre a história do país no século 19. Ganhador de quatro prêmios Jabuti e com mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos, Laurentino retratou a história do Brasil a partir de três momentos chaves: 1808, com a chegada da corte ao país; 1822, quando houve a proclamação da Independência; e 1889, com a proclamação da República.

Valendo-se do estilo livro-reportagem, as obras também contam histórias de personagens, pequenos “causos” e outros episódios marcantes na formação do país.  “Muitas das características do país atual, seus defeitos e virtudes, aí incluído o regime de toma-lá-dá-cá em Brasília, a corrupção, a desigualdade social e a ineficiência do governo, têm raízes fincadas nesse período”, analisa Gomes.

Portal Aprendiz entrevistou Laurentino para entender, a partir de nossa história, de onde vêm as mazelas do nosso sistema de ensino, assim como suas vicissitudes. O autor revela que na época da proclamação de independência, um feitor de escravos ganhava mais que um professor. Seria correto, portanto, afirmar que a atual greve dos professores no Rio de Janeiro, assim como a violenta repressão às manifestações, têm raízes na colonização? É possível pensar numa universidade inclusiva, com políticas de acesso, sem lembrar da escravidão? Confira.

Portal Aprendiz: A chegada da Corte portuguesa, em 1808, inaugurou um momento sem precedentes na história mundial, ao colocar o poder da metrópole na colônia. Mas além de nobres e funcionários públicos, desembarcaram bibliotecas, livros e ideias. Que papel teve a chegada da Corte no ambiente intelectual e educativo brasileiro?

Laurentino Gomes: Ao chegar ao Rio de Janeiro, em 1808, o príncipe regente D. João encontrou uma colônia portuguesa dominada pelo analfabetismo, pela escravidão, pela pobreza e pela grande concentração de riquezas. Havia poucas escolas, nenhuma universidade (contra 22 já existentes na América espanhola) e a circulação de livros e jornais era censurada ou controlada pelas autoridades. As regiões eram isoladas e rivais entre si. O esforço de mudar o Brasil não se limitou ao aspecto administrativo. Enquanto mandava abrir estradas, construir fábricas e escolas e organizar a estrutura de governo, D. João também se dedicava ao que os historiadores chamam de “esforço civilizatório”. Nesse caso, a meta era promover as artes, a cultura, e tentar infundir algum traço de refinamento e bom-gosto nos hábitos atrasados da colônia. A maior dessas iniciativas foi a contratação, em Paris, da famosa Missão Artística Francesa. Chefiada por Joaquim Lebreton, secretário perpétuo da seção de belas-artes do Instituto de França, a missão chegou ao Brasil em 1816 e era composta por alguns dos mais renomados artistas da época, entre eles o pintor Jean Baptiste Debret. Junto com a corte, chegaram ao Rio de Janeiro os 60 mil volumes da biblioteca real portuguesa, que incluíam livros raros e manuscritos. Esse tesouro faz parte hoje da Biblioteca Nacional, criada por D. João junto com o Museu Nacional, o Jardim Botânico e o Real Teatro de São João.

Portal Aprendiz: Quais seriam os fatos que o senhor destacaria na história brasileira (de 1808 a 1889) que impactaram positivamente a concepção e construção da vida acadêmica e escolar no Brasil?

Gomes: O império brasileiro investiu muito menos em educação do que deveria. Estima-se que no ano da chegada da corte de D. João ao Rio de Janeiro cerca de 99% dos brasileiros fossem analfabetos. Na época da Independência, o salário de um professor de escola pública no Brasil era inferior aos rendimentos de um feitor de escravos. Essa triste realidade não mudou muito até a chegada da república. Em 1889, o índice de analfabetismo ainda era de 80%. Só uma em cada seis crianças com idades entre seis e 15 anos frequentava a escola. Em todo o país havia 7.500 escolas primárias com 300 mil alunos matriculados. Nos estabelecimentos secundários, o número caia de forma dramática: apenas 12 mil estudantes. Oito mil pessoas tinham educação superior – uma para cada grupo de 1.750 habitantes. Ainda assim, pode-se dizer que o imperador Pedro II fez um grande esforço para consolidar a educação como um valor social importante no Brasil. No Brasil Imperial, escrever, pintar, compor era um meio de ascensão social, o ingresso para frequentar ambientes e os salões da corte até então vetados para os intelectuais, especialmente se fossem negros e mulatos – caso do próprio Machado de Assis. Escritores, poetas, pintores e compositores eram pagos, com bolsas de estudo ou empregos públicos, para esculpir nas artes o conceito de nação desejado pelo império. A condição é que suas obras refletissem o esforço de retratar o país ideal em confronto com a barbárie do país real. O próprio D. Pedro II financiou com seus recursos pessoais os estudos de vários pintores e compositores na Europa. Éramos um país de analfabetos, mas o monarca fazia questão de frisar que sem educação não haveria futuro.

Portal Aprendiz: Qual é a relevância da Abertura dos Portos às Nações Amigas?

Gomes: A abertura dos portos, anunciada durante a escala da corte em Salvador, em janeiro de 1808, foi a mais importante decisão tomada por D. João nos 13 anos que ele passaria no Brasil. Essa medida, combinada com a concessão de liberdade de comércio e indústria manufatureira no Brasil algumas semanas mais tarde, representava na prática o fim o sistema colonial. O Brasil libertava-se de três séculos de monopólio português e se integrava ao sistema internacional de produção e comércio como uma nação autônoma. D. João mandou abrir os portos brasileiros ao comércio internacional porque Portugal e o porto de Lisboa estavam ocupados pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte. Ou seja, o comércio do reino estava virtualmente paralisado. Abrir os portos do Brasil era, portanto, uma decisão óbvia. Além disso, a liberação do comércio internacional na colônia era uma dívida que D. João tinha com a Inglaterra. Depois da decretação do Bloqueio Continental por Napoleão, em 1806, os produtos da revolução industrial inglesa estavam encalhados nas fábricas, por falta de compradores. Os ingleses precisavam de novos mercados. A abertura dos portos foi, portanto, o preço que a coroa portuguesa pagou pela proteção da Marinha Britânica na fuga da corte para o Brasil.

Portal Aprendiz: O que representou a fundação da Universidade de Medicina da Bahia por Dom João VI, em 1808, a primeira instituição de ensino superior do país?

Gomes: D. João foi o responsável pela introdução do ensino leigo e superior no Brasil. Antes da chegada da Corte, toda a educação da colônia estava restrita ao ensino básico e  confiada aos religiosos. As provas eram ministradas muitas vezes dentro das igrejas, com platéia para assistir ao desempenho dos alunos. Ao contrário das vizinhas colônias espanholas, que já tinham suas primeiras universidades, no Brasil não havia uma só faculdade. D. João mudou isso ao criar a escola superior de Medicina em Salvador, outra de técnicas agrícolas, um laboratório de estudos e análises químicas e a Academia Real Militar, cujas funções incluíam o ensino de engenharia civil e mineração.

Portal Aprendiz: No seu terceiro livro, um dos três personagens evocados no subtítulo é um “professor injustiçado”. Benjamin Constant, militar, professor de matemática e positivista, teve um papel importante na construção da República. Primeiro Ministro da Educação (Instrução Oficial, à época), Constant elaborou uma reforma curricular para o Distrito Federal (RJ), que dispunha sobre  a criação de prédios, estabelecimento das Escolas Normais etc. Que papel desempenhou Constant para a educação brasileira e que reconhecimento este “injustiçado” têm por esses feitos? Além disso, qual a influência do positivismo na consolidação de nosso sistema público de educação?

Gomes: O pensamento positivista marcou profundamente a história republicana brasileira em todos os seus aspectos, incluindo a educação. O filósofo francês August Comte, pai do positivismo, acreditava que a humanidade deveria passar por três estágios de evolução. A primeira seria uma fase mística ou mágica, na qual os seres humanos tenderiam a acreditar que a organização da sociedade e do estado seriam uma delegação divina, fundamento das monarquias. A segunda seria marcada pelo uso da razão como instrumento para tentar entender os fenômenos naturais e sociais. Na terceira, chamada de positiva, as pessoas conseguiriam, finalmente, tirar conclusões racionais desses fenômenos para, a partir delas, estabelecer panos de reforma da sociedade. A República faria parte dessa última etapa, mas inicialmente caberia a uma elite educada, iluminada e mais bem preparada tutelar o regime republicano até que o restante das pessoas estivessem capacitadas a assumir a condução dos seus destinos como cidadãs de pleno direito. Esse é o fundamento da chamada “ditadura republicana” que tanto fascinava Benjamin Constant e a mocidade militar em 1889. A república era um experimento novo em um Brasil marcado pelo analfabetismo, pela pobreza e pelo latifúndio. Nesse ambiente, só uma ditadura permitiria a consolidação do novo regime. Getúlio Vargas, um discípulo de Comte, tinha isso bem em mente ao decretar o Estado Novo de 1937. E também os generais presidentes do regime militar de 64. Benjamin ocupou o Ministério da Instrução Pública por um brevíssimo período e tentou fazer uma reforma curricular que se adequasse a esse conceito, mas logo se demitiu do ministério e abandonou a vida pública. Morreu alguns meses mais tarde, magoado com os rumos do regime que ajudara a fundar.

Portal Aprendiz: Você afirma em resumo sobre seu livro 1822 que José Bonifácio “defendia o fim do tráfico negreiro e a abolição da escravatura, reforma agrária pela distribuição de terras improdutivas e o estímulo à agricultura familiar, tolerância política e religiosa, educação para todos, proteção das florestas e tratamento respeitoso aos índios”, mas que devido ao clima político da época, nem tudo saiu do papel. De fato, muitos desses princípios, apesar de consagrados pela Constituição Federal de 1988, seguem sem sair do papel. Quais eram os principais desafios para a implementação dessas políticas defendidas por Bonifácio na época? E hoje?

Gomes: Ao longo de sua história como nação independente, o Brasil falhou na tarefa de realizar coisas importantes, como prover educação para todos, incorporar os ex-escravos na sociedade produzida, reduzir a pobreza e formar cidadãos capazes de conduzir os seus próprios destinos em um ambiente de democracia. Em 1822, o Brasil rompeu seus vínculos com Portugal, mas manteve inalterada a estrutura social vigente durante o período colonial, incluindo o tráfico negreiro, a escravidão, o analfabetismo e a concentração de riquezas na forma de latifúndio.  Esse mesmo cenário se repetiu em 1889. O regime mudou de nome, mas, como em 1822, a estrutura social pouco se alterou. A analfabetismo e a pobreza continuaram. Os escravos, libertados no ano anterior pela Lei Áurea, tinham sido abandonados à própria sorte. Para essa imensa maioria da população, excluída de qualquer possibilidade participação na vida política do país, tanto faria que o governo fosse monárquico ou republicano. Os mesmos cafeicultores, fazendeiros e coronéis que mandavam na política do Segundo Império continuaram a dar as cartas nos primeiros anos da República, pelo menos até 1930. A fraude eleitoral, responsável pelo chamado voto de cabresto, era uma das principais características do Brasil monárquico e continuou impávida no Brasil republicano. Nosso grande desafio hoje é enfrentar e resolver esses passivos históricos em um ambiente de democracia em que, pela primeira vez, todos os brasileiros estão sendo chamados a participar da construção do futuro. É um caminho longo e difícil, mas sou otimista e acredito que conseguiremos construir o Brasil dos nossos sonhos.

Portal Aprendiz: O fim da escravidão lançou milhares de brasileiros na sociedade, mas sem qualquer política que fosse capaz de garantir uma equidade no acesso à educação. Como a escravidão impactou e ainda impacta a educação no Brasil? Na sua opinião, qual o significado da política de cotas neste contexto?

Gomes: O Brasil carrega ainda hoje uma herança muito forte desse período. Entre os muitos passivos históricos que ainda nos assombram hoje, o mais dramático está ligado à escravidão. O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental por mais de 350 anos. Estima-se que de um total de dez milhões de cativos africanos trazidos para as Américas nesse período 40% tiveram como destino as senzalas brasileiras. Foi também o país que mais tempo resistiu a por fim ao comércio negreiro e o último do continente americano a abolir a mão de obra escrava – quatro anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba. O abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco dizia que o Brasil estava condenado a continuar no atraso enquanto não resolvesse de forma satisfatória a herança escravocrata. Para ele, não bastava libertar os escravos. Era preciso incorporá-los à sociedade como cidadãos de pleno direito. Isso, infelizmente, não aconteceu. Depois da Lei Áurea, os ex-escravos foram abandonados à própria sorte. Isso se reflete ainda hoje nas estatísticas, segundo as quais os negros e seus descendentes ganham menos que os brancos e têm menos oportunidades em quase todas as áreas. A política de cotas é uma tentativa, ainda que tímida, de corrigir esse passivo.

Portal Aprendiz: Muito se fala do fascínio que o imperador Pedro II nutria por invenções científicas e tecnológicas. De que forma esse interesse do imperador impactou a sociedade brasileira? Aquilo que era um interesse particular do imperador chegou efetivamente a impactar o cotidiano dos cidadãos ou era restrito apenas aos nobres e intelectuais do país?

Gomes: O império brasileiro me encanta por uma certa nostalgia, um projeto de Brasil que poderia ter sido e não foi, uma miragem que se perdeu no passado. O Brasil da época do império era uma terra mais imaginária do que real. Às vésperas da proclamação da república, havia ali um país que aparentava ser mais civilizado, rico, elegante e educado do que de fato era ou seria no futuro. Aos diplomatas e visitantes estrangeiros, apresentava-se como um império destinado a ser grande, poderoso, desenvolvido, ilustrado – um “gigante adormecido em berço esplêndido”, como dizia a própria letra do Hino Nacional. O imperador Pedro II, sempre fotografado com um livro nas mãos ao lado de um objeto científico, era o símbolo maior disso tudo. Esse Brasil de sonhos, no entanto, confrontava-se com outro, real e bem diferente, marcado pela escravidão, pelo analfabetismo e pela pobreza. Era uma contradição difícil de sustentar no longo prazo. A República representa para mim um choque de realidade, o país imaginário confrontando-se no espelho com o país real ao preço de muito sacrifício e muita dificuldade, como podemos observar ainda hoje.

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