Rede Tumulto: um coletivo nordestino de comunicação periférica na linha de frente da emergência climática
Publicado dia 6 de novembro de 2025
Publicado dia 6 de novembro de 2025
🗒️Resumo: Conheça a Rede Tumulto, coletivo de comunicação periférica nordestino baseado em Recife (PE) que atua em emergências e quer ocupar o debate sobre o clima. O texto a seguir foi escrito por duas coordenadoras da iniciativa, Yane Mendes e Gilmara Santana*.
Quando o clima colapsa, os impactos são para todo mundo. Mas quem sofre primeiro? As periferias. Por isso, exigimos o direito de existir e falar por nós mesmas no debate climático.
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A Rede Tumulto é formada por coordenadoras negras e uma equipe mista com quatro jovens. Nós, junto a voluntários e parceiros, fazemos grandes ações acontecerem. Nossa metodologia na pauta climática se baseia em aprender e repassar.
A Rede Tumulto nasceu em 2019, em um momento de impacto direto: a crise sanitária global provocada pela Covid-19 tomou conta.
O que tínhamos de planos de aplicação das nossas estratégias de comunicação online e offline precisaram ser colocados em segundo plano. A emergência exigiu que a arrecadação e distribuição de cestas básicas com alimentos e materiais de higiene se tornasse prioridade.
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Na época, atuamos em mais de dez comunidades do Recife (PE), em sintonia com lideranças e articuladores locais, a fim de organizar uma força-tarefa para fazer chegar ao nosso povo o essencial, além da informação.
Dentro das cestas básicas, colocamos folders explicando que aquela ação não era de nenhum candidato – uma vez que era ano de eleições municipais – mas, sim, de um movimento de solidariedade e autocuidado coletivo, que também era político. Além disso, também promovemos encontros com mulheres para o autocuidado e a escuta sobre como estava sendo aquele momento.
Alguns anos depois, a Rede Tumulto voltou a viver um cenário de emergência, durante as grandes chuvas de 2022 que atingiram Pernambuco entre 25 de maio e 07 de junho.
Já sabemos que Recife afunda todos os anos, mas o desastre foi extremo: 133 vidas foram perdidas no estado e mais de 120 mil foram afetadas diretamente pelo desastre ocorrido diante dos nossos olhos.
Atuamos em várias comunidades do Recife: Totó, Arruda, Detran, Favela do Chiclete, Ibura, Coqueiral, Jaboatão e Coque. Lá, distribuímos alimentos, água, roupas e, principalmente, colchões.
Depois de atuarmos em ações emergenciais, percebemos em nossos debates internos, o quanto a questão da Justiça Climática e do Racismo Ambiental -antes mesmo de nomearmos esses termos – já era prioridade dentro da nossa coletividade.
A partir disso, expandimos nosso conhecimento técnico e, ao mesmo tempo, buscamos repassar saberes. Especialmente, quando criamos o Ocupa Clima logo após as grandes chuvas, ocupando espaços estratégicos para visibilizar nossas pautas, ampliar o conhecimento técnico e unir nossa vivência com referências próximas ao nosso público.
Inclusive, o cuidado com a linguagem foi uma escolha intencional para garantir essa conexão.
Essas ações nos fizeram ocupar hoje espaços onde a pauta climática é debatida, como na Aliança de Juventude por Governança Energética, espaço em que Norte e Nordeste debatem sobre uma transição energética justa, ecológica e popular.
Nossa representação nesse espaço é feita por Flora Rodrigues, coordenadora da Rede Tumulto, que sempre destaca o quanto esse tema tem tudo a ver com as favelas.
Nas palavras de Flora Rodrigues, o debate da energia tem a ver com a distribuição injusta. Transição justa é uma energia que não precisa matar vidas, esse tema afeta favelas e outros territórios, mas nunca estivemos na centralidade do debate, mesmo que, literalmente, a conta alta seja paga por nós.
Nosso papel é tensionar a narrativa, construir pontes e mostrar que a comunicação feita nas favelas é uma forma de incidência política. Quando registramos, comunicamos e mobilizamos, realmente transformamos o território.
Nessa frente, Yane Mendes reforça que a inserção da Rede Tumulto em espaços nacionais como Perifa Connection, Coletivo Autogestão e a Coalizão de Mídias Periférica, Favelada, Quilombola e Indígena fortalece o debates e traz as inquietações e tumultos da vida real na favela.
Em 2024, a convite do Instituto MOL, algumas coletividades da Coalizão de Mídias promoveram uma oficina sobre cobertura jornalística de desastres ambientais nos territórios. Nós somamos com a bagagem de aprendizados aqui no estado, junto à oficina que reuniu diversos jornalistas de diferentes meios de comunicação. A partir de tudo isso, construímos uma cartilha coletiva.
O Grande Recife é uma das regiões mais vulneráveis à crise climática no Brasil. Anualmente, enfrentamos enchentes, deslizamentos de barreiras, ilhas de calor extremas e a falta de planejamento urbano.
Fora tudo isso, há ainda a irresponsabilidade política hereditária dos governantes da nossa cidade Recife, que deixam de fora, nas decisões políticas, a participação dos territórios nos debates, o que agrava ainda mais a situação.
Sabemos que nossos coletivos não têm como dar conta do que a política pública não faz. E as apostas de políticos em projetos que vão prejudicar diretamente nosso povo são, infelizmente, muito explícitas.
É o caso da construção da Escola de Sargentos aqui no estado, uma obra que ameaça uma das maiores áreas de Mata Atlântica em Pernambuco, comprometendo a biodiversidade e o equilíbrio climático local, mas bastante defendido pela governadora do estado.
O desmatamento pode afetar nascentes e aquíferos que abastecem a Região Metropolitana do Recife, agravando a crise hídrica que já é realidade em vários bairros da cidade. Na nossa visão, este projeto de falso desenvolvimento coloca o lucro acima da vida e da preservação ambiental.
Os impactos da crise climática não se distribuem de forma igual. Nas bordas das cidades, onde a ausência do Estado é histórica, ela aprofunda desigualdades antigas, e não se pensa em um projeto político que tente modificar para melhor esses impactos.
É nos becos e vielas que o colapso ambiental se traduz em perda de moradia, insegurança alimentar e violência territorial. E é justamente nessas áreas que vivem as vozes mais excluídas nos espaços de decisão sobre o futuro do planeta.
A também coordenadora da Rede Tumulto, Fernanda Paixão, explica que levamos as temáticas que estão em alta e as aplicamos ao nosso cotidiano, fazendo essa costura entre o que está sendo falado e debatido e o que o território realmente necessita.
Nesse sentido, o Ocupa Clima foi o primeiro encontro sobre pautas climáticas e fake news realizado pela Rede Tumulto. O objetivo foi provocar o debate sobre injustiças climáticas, Racismo Ambiental e Educação Ambiental, sempre a partir das vivências de quem é diretamente impactado por essas questões.
Durante um final de semana, 20 jovens de diferentes favelas do Recife participaram de um encontro provocador, potente, político e afetivo, trazendo diversas denúncias sobre o descaso em seus territórios.
Sentindo a ausência de seus corpos e vozes nos espaços de debate e tomada de decisão sobre o tema, esses jovens deram origem ao Ocupa Clima. Trata-se de um movimento que nasce da necessidade de ocupar e transformar o debate climático a partir das periferias.
Com base em nossa metodologia circular – que passa pela escuta ativa, pelo aprender e trocar e pela importância de desaprender algumas maneiras impostas pelo sistema como formas não moldáveis – unificamos nosso objetivo de desmistificar, valorizar e favelatizar a informação climática.
Entre as ações, realizamos uma roda de diálogo para compartilhar com as juventudes o questionamento: “O que danado é isso do Acordo de Escazú?”.
A atividade foi promovida pela Coalizão de Mídias, com o apoio da Artigo 19. Nela, participamos de ciclos formativos com especialistas e, ao mesmo tempo em que aprendemos, devolvemos os conhecimentos e potencializamos as reflexões com os relatos e vivências das juventudes de favela sobre o tema.
Nick Silva, que também faz parte da Rede Tumulto, resume que a nossa maneira de pensar as atividades e trocas passam por valorizar o diálogo e a voz do outro, sem pensar em respostas certas ou erradas.
É desafiador transformar temáticas que trazem nossos corpos como centralidade, mas que, pela ausência de uma escuta ativa e participativa, chegam com termos distantes do nosso povo muitas vezes já realizando, na prática, o que essas palavras significam.
Em um momento em que as emergências climáticas se intensificam e a proteção de defensores e defensoras se torna urgente, o Acordo de Escazú surge como um instrumento fundamental para garantir transparência, participação e segurança.
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Assim, é nosso papel fortalecer e ampliar as vozes diretamente afetadas, internacionalizando o debate com uma comunicação independente e crítica, em busca da justiça socioambiental, colocando como protagonistas os corpos que precisam conhecer e exercer seus direitos.
Nas palavras de Gilmara Santana, a gente é laboratório do futuro, mas ninguém quer enxergar.
Estratégica e profundamente conectada, a Rede Tumulto trabalha para nacionalizar as pautas climáticas a partir de experiências locais. Também ocupamos espaços nacionais e globais com o objetivo de sinalizar a potência da intelectualidade, da técnica e da vivência do nosso povo de favela.
Nesse sentido, chegamos em 2025 à nossa primeira presença na COP30 em Belém (PA). Nossa participação é fundamental para romper a ausência histórica dos corpos periféricos e nordestinos no debate climático e mostrar que sem a favela não há justiça social nem ambiental.
Estar presente na COP30 é mais do que representar uma causa: é um ato político de ocupação. A presença da Rede Tumulto nesses espaços significa levar as vozes e práticas dos territórios periféricos ao centro do debate global.
Assim, teremos duas representações da Rede Tumulto no evento diplomático sobre o clima, nas pessoas de Flora Rodrigues e Yane Mendes. Inclusive, no dia 19 de novembro, Flora ocupará uma mesa sobre Educação Climática e saberes do território no Pavilhão Belém.
Em clima de COP 30, onde os debates estão fervendo e o foco sobre Belém está grande, nos preocupamos na Rede Tumulto em ouvir as crianças e dialogar com elas sobre o que tem acontecido.
Com escuta ativa e atividades lúdicas, como pintura e contação de histórias, realizamos uma ação com 50 crianças e adolescentes na Cidade de Deus, zona norte do Recife. Na ocasião, conversamos sobre poluição e falta de saneamento básico nas ruas das favelas, além de casos como o muro construído na praia de Tamandaré e o derramamento de óleo que atingiu nossas praias.
Escutamos bastante dos pequenos, especialmente sobre o cuidado com os animais e as enchentes e deslizamentos de barreiras, assuntos que surgiram naturalmente nas falas deles.
A ação foi realizada por meio de um edital no qual representamos o bioma Mata Atlântica, promovido pelo Instituto Alana, PerifaLab e pelo mandato da Marcele Oliveira, nossa representante nacional das juventudes na COP.
A experiência não foi nossa primeira atividade com crianças. Tivemos outro projeto chamado Vai e Vem, no qual utilizamos a Educação Ambiental e construímos instrumentos musicais com garrafas PET. O material, antes descartado, foi ressignificado pelo diálogo com Arte-Educadores que acompanharam o processo.
A Crise Climática é, antes de tudo, uma crise de escuta. Quando as soluções são pensadas sem a presença das periferias, perpetuam-se injustiças e apagam-se experiências que já produzem respostas concretas ao colapso. São exemplos disso as hortas comunitárias, mutirões, ações de economia solidária, ocupações e tecnologias sociais.
Na Rede Tumulto, defendemos que a verdadeira transição climática só será possível quando a Justiça Social for o centro da discussão. Enquanto isso, seguiremos vendo os mesmos corpos sendo os primeiros a sofrer e os últimos a serem ouvidos.
Além disso, não podemos esquecer que o termo Racismo Ambiental não pode deixar de ser usado. Quando falamos de clima, falamos sempre de raça, classe e gênero.
A luta da Rede Tumulto é para que o clima não seja mais tratado como um tema distante ou técnico, mas como uma questão de sobrevivência coletiva. A presença periférica nos debates climáticos é um direito e uma necessidade para construir um futuro possível.
* Yane Mendes é cineasta periférica em Recife (PE) e coordenadora da Rede Tumulto. Gilmara Santana é educadora social e coordenadora da Rede Tumulto.
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