Conexão Felipe Camarão
Publicado dia 20 de setembro de 2016
No bairro de Felipe Camarão, na periferia de Natal (RN) viviam o Mestre Manoel Marinheiro, do Auto do Boi de Reis, o teatro de bonecos João Redondo do Mestre Chico de Daniel, o Mestre Cícero da Rabeca e a capoeira do Mestre Marcos. Buscando tirar essas manifestações culturais da invisibilidade, articulando as escolas aos saberes locais, o Projeto Conexão Felipe Camarão, deu início a um processo de mobilização permanente nesse que é um dos bairros mais pobres da cidade.
“O que fazemos aqui é juntar pessoas e falar da vida”. É assim que Vera Santana, coordenadora do Conexão Felipe Camarão resume a atuação do projeto na capital do Rio Grande do Norte. Inicialmente, a ideia, lançada em 2002, era a de promover consultoria em educação e cultura no Rio Grande do Norte. No entanto, a percepção de que havia uma dificuldade de entendimento dessa prática educacional pelos professores fez com que o projeto se voltasse ativamente para a comunidade de Felipe Camarão, bairro da Zona Oeste de Natal.
Há uma agenda fixa junto à comunidade que se articula a partir de quatro pólos principais.
Tradição: além de oficinas que resgatam a prática da capoeira, boi de reis, luteria de rabeca e João Redondo, há também a retomada histórica de tais práticas. Os educadores trabalham na perspectiva de formar multiplicadores dessas atividades.
Moda: os familiares dos jovens participantes são convidados a pensar na cultura local e, a partir de suas habilidades, propor peças de vestuário e acessórios que fortalecessem a identidade da região. Como exemplo, o núcleo produziu bolsas e bordados em homenagem à história do mestre do baião, o músico Luís Gonzaga. O Núcleo de Moda Estilos Costumes Figurinos e Adereços funcionou por um ano, em 2012, e tinha como pretensão formar oficineiros entre os participantes. Sem financiamento, as atividades, temporariamente, pararam de acontecer.
Música: são ofertadas oficinas de orquestrim, flauta, percussão, metais e rabeca sempre na temática do folclore e extenso repertório local. Os mestres dos diferentes estilos formam multiplicadores, capazes de preservar a memória e inovar nas composições, sem perder o foco da tradição.
Comunicação: embora o núcleo não esteja ativo por falta de financiamento, a ideia é pensar sobre a comunicação do projeto entre os diversos atores da comunidade.
Inspiração
A iniciativa surgiu como resposta a um dos anseios de Vera, que depois de trabalhar no sistema educacional do Rio de Janeiro por 20 anos, apoiando a implementação dos CIEPS (Centros Integrados de Educação Pública) e vivenciando experiências culturais e de diálogo do poder público com a periferia, entendeu que a educação humana era um caminho a ser trilhado, mesmo que os sistemas educacionais, em grande parte, estivessem na contra-mão desse movimento.
O local, que apresenta problemas socioeconômicos, tem uma forte expressão cultural oral e o projeto se estrutura com base nesse cenário, com o objetivo de fortalecer a identidade cultural local, contribuir com sua preservação e integrá-la como potencial educativo para a comunidade.
O início da articulação
O trabalho teve início a partir de reuniões com os mestres locais. A cada encontro, os anfitriões convidavam líderes comunitários e moradores. As “tardes antropológicas” como eram chamadas pelos participantes eram momentos em que cada um falava abertamente de suas ideias ou das dificuldades em manter suas atividades pela comunidade. As reuniões se mantiveram por dois anos e, sobretudo, fizeram nascer um desejo único entre o grupo: o de produzir um registro fonográfico do Boi de Reis.
Além disso, os mestres levaram de maneira voluntária seis oficinas para a comunidade: boi de reis, adereço e figurino, percussão, flauta, capoeira e João Redondo. Essa movimentação foi fundamental para aproximar a comunidade do projeto, especialmente as escolas, com suas equipes gestoras e alunos. Ainda de maneira independente, os mestres levaram as primeiras atividades para as ruas. O Largo da Cruz da Cabocla foi o local escolhido para a exibição de filmes nacionais para a comunidade. A ideia era resgatar os valores e costumes brasileiros, sobretudo do Nordeste, entre os participantes.
Financiamento e ampliação
Além da ocupação dos espaços públicos, a iniciativa transformou um galpão na Escola de Saberes Conexão Felipe Camarão. Hoje, o espaço é um pólo cultural local que também apoia o desenvolvimento de atividades escolares. Em 2003, a realidade da iniciativa se modificou e a atuação pôde ser ampliada pelo território. Um financiamento do Banco Nacional para o Desenvolvimento Social (BNDES) permitiu o registro de 12 músicas do Auto do Boi de Reis com partitura. No mesmo ano, o projeto também recebeu um convite de patrocínio direto via Petrobrás. Com isso, foi possível contratar educadores e manter a oferta das atividades no território.
Uma vez ao ano, a iniciativa realiza o Conexão Brasil, um cortejo que sai às ruas do bairro, apresentando um compilado de todas as ações realizadas no período. O movimento acontece como consequência de forte articulação local entre o projeto, escolas, moradores e equipamentos que atuam na região.
Segundo a coordenadora, Vera Santana, o resultado do trabalho – embora atendendo grande escala – , é intangível. Para ela, o sucesso é ver um projeto de educação onde a valorização e preservação da cultura é base do entendimento e de compreensão da pessoa como ser humano, com direitos e deveres, exercitando a cidadania e a vida prazeirosamente.