Comunidades rurais criam Centros de Excelência em Educação no Campo
Publicado dia 28 de fevereiro de 2018
Publicado dia 28 de fevereiro de 2018
Em 1984 o mundo era outro: Guerra, Fria, muro de Berlim, o Brasil ainda mergulhado em uma ditadura, lutando pelas Diretas. E o antropólogo e educador popular mineiro Tião Rocha já sonhava com uma educação diferente, que pudesse ser feita “debaixo do pé de manga”, como ele mesmo define, sem a obrigatoriedade da escola e feita com bons educadores. Nesse mesmo ano, Tião fundou o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD) para atuar com projetos inovadores de transformação social e educação no campo em cidades de até 50 mil habitantes – cerca de 90% do total de municípios brasileiros.
As décadas de experiência mostraram que outra educação é possível, mas que esse novo paradigma não interessa para o sistema educacional e o mercado. “Fala-se de educação, mas pratica-se a escolarização, que vem submetendo gerações a uma lógica que depende do meio escolar, em que o aluno é apenas um detalhe.” Embora as iniciativas do CPCD tenham sido reconhecidas e premiadas ao longo dos anos, Tião entendeu que o trabalho realizado tinha uma limitação por estar fora desse sistema, sem de fato transformá-lo. “Há muitas experiências significativas, mas elas continuavam periféricas e o sistema continuava inabalável.”
Segundo o diagnóstico de Tião, o sistema educacional divide-se em dois eixos: a escola padrão urbanizada e a escola rural relegada ao segundo plano. E é justamente no campo que grande parte dos projetos do CPCD ocorrem, sendo a brecha perfeita para forjar um novo modelo de educação.
“Em conversas com Secretarias de Educação e com representantes de escolas rurais percebi um cenário terrível, de pessoas que vivem com migalhas do que sobra do sistema educacional, de escolas que não transformam nada”, relata Tião. Mas no Maranhão e no Vale do Jequitinhonha existiam experiências de educação no campo patrocinadas por movimentos de associações familiares e com gestões menos engessadas. Foi por aí que o CPCD resolveu começar a batalha.
Desafios da educação no campo
Pedagogia de Alternância
A pedagogia de alternância é um regime implementado nas áreas rurais do Brasil que prevê que os alunos revezem seu tempo entre dias na escola (num modelo de internato) e dias em casa. Trazido ao país pelos jesuítas, ele pretende valorizar os saberes do campo e diminuir a evasão escolar dos estudantes da região, visto que nos modelos escolares tradicionais, o difícil acesso à escola é um obstáculo para os alunos.
Localizadas em Araçuaí (MG) e Bom Jesus das Selvas (MA), a Escola Família Agroecológica e Casa Familiar Rural, respectivamente, foram trazidas ao Brasil por padres jesuítas e trabalham hoje sob o regime de alternância, no qual os alunos passam 15 dias seguidos na escola e 15 em suas casas. As gestões comunitárias e os ricos contextos no qual se inserem não foram suficientes para que as escolas alterassem seus currículos. Ao contrário, continuaram seguindo o programa estabelecido pelo Estado, com poucos recursos e infraestrutura, e completamente apartadas da realidade dos seus estudantes.
Pedagogia de Alternância
A pedagogia de alternância é um regime implementado nas áreas rurais do Brasil que prevê que os alunos revezem seu tempo entre dias na escola (num modelo de internato) e dias em casa. Trazido ao país pelos jesuítas, ele pretende valorizar os saberes da educação no campo e diminuir a evasão escolar dos estudantes da região, visto que nos modelos escolares tradicionais, o difícil acesso à escola é um obstáculo para os alunos. Em Araçuaí, apesar da formação técnica em agricultura ofertada pela escola, a estratégia não garantia que os alunos se estabelecessem no campo. Dos 19 formandos de 2014, todos foram trabalhar em comércio ou prestar vestibular na cidade. Em suma, o esforço comunitário para assegurar a formação dos estudantes e criar condições para a sua permanência no campo não tiveram resultados. “Mas se você olhasse dentro da escola, veria que ela era capaz de produzir recursos não só para sua manutenção, mas até vender serviços e ficar menos dependente dos recursos públicos”, argumenta Tião. “Só que para fazer isso era preciso vontade política de quebrar o modelo tradicional de educação. Esses alunos tinham 15 matérias para estudar, o mesmo programa curricular dos alunos da cidade e que não conversava com a realidade deles. Como iam querer ficar ali? Eles mesmos diziam que quando partiam para o sistema de vestibular, Enem ou concursos, saiam prejudicados, mas não havia nada que os segurasse e apoiasse ali no campo.”
No Maranhão, a situação era ainda pior. A primeira Casa Familiar Rural (CFR) onde trabalhou o CPCD foi a Padre Josino Tavares, que carrega o nome de um herói regional, morto pelos grileiros. Localizada no município de Bom Jesus das Selvas, ela também concentra estudantes da zona rural de Buriticupu e de Bom Jardim. Lá, narra Tião, as condições eram tão extremas que a escola “poderia ser fechada pela saúde pública”. Sem saneamento básico, banheiro e condições mínimas de higiene, Tião chegou a sugerir que a escola saísse dali, mas aquele era o único espaço que atendia a todos os estudantes da região que chegavam ao Ensino Médio. Não havia saída a não ser transformar a água em vinho – ou, no caso, transformar a Casa Familiar Rural em “Centro de Excelência em Educação no Campo”.
Plantando mudanças na educação no campo
Ednalda Santos, membro do CPCD e atual coordenadora do projeto na unidade, relembra que o projeto Nos Trilhos do Desenvolvimento(2012) foi o ponto de partida dos trabalhos na CFR. Realizado em cinco cidades do Maranhão em parceria com a Fundação Vale, as ações tinham como objetivo organizar uma plataforma de desenvolvimento conectando diversos espaços positivos e de interação dos atores locais na cidade, com vistas a uma comunidade sustentável.
A primeira proposta do CPCD foi que a comunidade plantasse 10 mil mudas de árvore em 10 minutos, ação que, após meses de planejamento, aconteceu às 10h do dia 14 de dezembro de 2014. Mas, qual era o sentido de plantar árvores naquele local? Segundo Tião, a ação não apenas mobilizou toda a comunidade, como resgatou a auto-estima dos moradores e estudantes, semeando a ideia de que era possível alterar aquela realidade.
– E agora, o que nós podemos fazer? – perguntaram em seguida a Tião Rocha.
– Tudo! – respondeu o educador.
A partir da ação de plantio, com a comunidade motivada, os trabalhos continuaram. Uma solução encontrada para dar sentido à transformação da escola foi trabalhar com metas a longo prazo, criando um plano de três anos, que acompanhasse o currículo do Ensino Médio. A proposta era que toda a comunidade escolar aprendesse fazendo.
A meta do primeiro ano era resolver a questão do abastecimento hídrico, de modo que a escola produzisse a água que precisa. Qual a interface disso com o currículo? Simples: professores de física e matemática compartilhavam os conhecimentos técnicos necessários para a construção de uma caixa d’água. “O resultado foi a autossuficiência hídrica da escola. Agora já viram até que é possível captar a água da estrada e fazer um lago na região. Já estão discutindo como criar peixes nesse lago”, conta Tião. Ao perceber que era possível fazer uma educação com sentido e pertinência, os professores começaram a romper com a resistência que tinham em não cumprir o currículo tradicional. Agora as disciplinas oficiais são ministradas à noite.
A meta do segundo ano de transformações era não mais comprar comidas enlatadas ou depender de merenda da prefeitura; e a do terceiro ano, que está em curso, é fazer com que a escola produza seu próprio dinheiro. Com as metas estabelecidas, todos os projetos dentro e fora de sala de aula se reposicionam e trabalham para que sejam cumpridas. Além disso, as ações têm como princípios norteadores a Carta da Terra e os valores humanos e éticos, sustentando-se na permacultura e na bioconstrução, e na intrínseca conexão entre escola e comunidade.
Mudar radicalmente uma escola e o que se aprende não é fácil e, logo nos primeiros 15 dias de alternância em casa, os estudantes deram provas do tamanho do desafio. Nada do que haviam aprendido na escola era levado para as comunidades. O potencial transformador via-se novamente limitado e circunscrito às paredes da sala de aula. Para desatar esse nó, a equipe estendeu as metas para o território.
Os estudantes que antes usavam os 15 dias como folga, agora organizam atividades como rodas de conversa, exibição de filmes, biblioteca itinerante e se comprometem em aplicar conhecimentos práticos como plantação de mudas, práticas mais eficientes de cuidado com o solo, etc, nos locais onde vivem. “A experiência do Maranhão se tornou referência, passando a ser visitada por toda a população da região e por outras casas familiares”, afirma Tião.
Adrian Ribeiro, 16 anos, acabou de ingressar no Ensino Médio e se diz surpreso com a proposta. Residente em Buriticupu, ele relata que não imaginava uma escola tão prática e que, depois de apenas um semestre, já conseguiu integrar os novos conhecimentos às necessidades de sua casa. Adrian construiu um aviário para as galinhas, o que até então ninguém sabia fazer.
Já a formanda Altina de Abreu, 17 anos, compartilha que o aprendizado na Casa Familiar Rural ultrapassou os saberes formais. “Esse modelo me ensinou a ser solidária, a trabalhar em equipe e a pensar no coletivo. Nesses tipos de trabalho, não tem como não ser assim, não compartilhar o material e o conhecimento.” A estudante narra que reaprendeu muitas práticas importantes para a família, como as distintas técnicas de se plantar mudas. Desde que começou a estudar na CFR, a família de Altina passou a cultivar produtos como manga, caju e castanhas, gerando renda na estação da colheita.
É esse espírito de “fazeção”, como define Tião, que atravessa o projeto pedagógico da escola. No momento, os alunos estão mobilizados para a construção do refeitório, aplicando conhecimentos acadêmicos (proporção de ouro, escala, etc) e locais (manejo do bambu e de outros materiais disponíveis na região) no processo. “Quando o processo é deles, automaticamente há um vínculo com um lugar. É visível o orgulho que têm em mostrar o ambiente em que vivem”, avalia Ednalda Santos, coordenadora do projeto na CFR Padre Josino Tavares.
Educar a comunidade, transformar o território
Ser um Centro de Excelência significa buscar de forma permanente a autotransformação e a transformação da comunidade. Não implica ser a melhor escola da região, mas ser a melhor escola dentro de um determinado contexto, a partir dos seus professores, com seus alunos. Prova disso pode ser vista logo no primeiro ano de ações, quando os moradores perceberam que – se era possível construir um banheiro na escola – também era factível construí-lo em suas casas.
O fim das barreiras que separam escola e comunidade, conhecimento acadêmico e saber popular, encontram eco nas quatro casas de referência criadas pelo projeto na região, nas bibliotecas itinerantes, bancos de sementes e plantações agrícolas compartilhadas. O objetivo destas iniciativas é compartilhar e aplicar na comunidade as estratégias usadas com sucesso na escola.
Atualmente, outras 15 Casas Familiares Rurais maranhenses preparam-se para aderir ao modelo e também virar Centros de Excelência em Educação no Campo. Cada uma com suas especificidades e programas próprios, embora com agendas em comum. O abastecimento de água, por exemplo, é um problema para 10 das 15 iniciativas. Estuda-se a proposta dos jovens formados em Bom Jesus da Selva serem multiplicadores do formato.
A experiência na CFR Padre Josino Tavares se mostrou tão bem sucedida que motivou a equipe do CPCD a trabalhar a ideia em Minas Gerais, formando Centros de Excelência locais. Nas palavras de Tião Rocha, “a partir da ousadia do trabalho de campo, estamos construindo a possibilidade para que outras escolas e oxalá um sistema inteiro tenha a coragem de se tornar um Centro de Excelência”. Os resultados em Minas Gerais também são marcantes: há trabalhadores migrantes voltando para a região por verem nela potencial de desenvolvimento, especialmente com o plantio e venda do pequi, uma iguaria local.
“As transformações são muito concretas e visíveis para a comunidade. No Vale do Jequitinhonha [onde fica Araçuaí], com o aprendizado de não desperdiçar a água, temos hoje uma área de cinco hectares que produz uma tonelada de alimentos por mês mesmo em período de seca”, ressalta Ednalda.
Acabar com a escola ruim
E como transpor essas experiências para as políticas públicas que articulam educação e território? Para Tião, o sonho é que esses projetos deixem de ser exceção e passem a ser a regra, mas o caminho pela frente parece ser longo. Como alguém que está na ponta ajudando a transformar realidades, Tião acredita que os educadores percebem a necessidade de um novo modelo, mas têm receio de mudar. “Por isso queremos que as experiências sejam lidas e refletidas – e não copiadas. O sistema é de uma fragilidade danada. A ideia aqui não é acabar com escola, é acabar com a escola ruim”, defende Tião, para quem os impactos dos Centros de Excelência em Educação no Campo podem ser sintetizados a partir da seguinte prosa:
– Então quer dizer que eu posso fazer diferente?
– Pode, meu filho. Agora que você descobriu que pode, vai lá e faz.