publicado dia 3 de fevereiro de 2017
De autoria de Helena Singer, o artigo abaixo foi originalmente publicado em Palgrave International Handbook of Alternative Education, organizado por Helen Lees.
Este artigo tem como objetivo apresentar uma síntese de experiências inovadoras na educação que vem ocorrendo em São Paulo nos últimos vinte anos e que apontam no sentido de uma possível mudança no cenário educacional não só da cidade, mas do Brasil. Os conceitos aqui empregados partem das definições da educadora equatoriana Rosa Maria Torres (1):
• Reformas são as políticas propostas e conduzidas pelos governos, em nível macro e de sistema, muitas vezes alinhadas com orientações de organismos internacionais.
• Inovações são as intervenções que ocorrem em nível local, por iniciativa de escolas,comunidades ou outras instituições educativas.
• A efetiva Mudança na educação pode ocorrer como resultado da confluência entre inovaçãoe reforma, embora nem sempre isso seja garantido.
(1) R. M. TORRES (2000). Reformadores y docentes: el cambio educativo atrapado entre dos logicas. In: L. CÁRDENAS; A. RODRIGUEZ CÉSPEDES; R. M. TORRES (2000).
El maestro, protagonista del cambio educativo. (Bogotá: Convenio Andrés Bello; Magisterio Nacional), 161-312.
(2) E. G. G. GHANEM Jr. (2013). ‘Inovação em escolas públicas de nível básico: o caso da Maré (Rio de Janeiro, RJ)’. Educ. Soc., v. 34, n. 123, 425-40. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br.
(3) C. LEADBEATER (2012), Innovation in Education: Lessons from Pioneers Around World. (Doha: Bloomsbury Qatar Foundation Publishing).
O sociólogo brasileiro Elie Ghanem (2) avança no debate caracterizando a inovação educacional pelo isolamento, fragmentação, descontinuidade no tempo, baixa visibilidade das ações e forte voluntarismo. Já a reforma educacional apresenta ampla abrangência, homogeneidade e alta visibilidade.
O pesquisador inglês Charles Leadbeater(3), por sua vez, dedica-se à descrição dos aspectos comuns das experiências inovadoras em educação. Em sua pesquisa, estas experiências demonstraram relevância e impacto. A relevância acontece com a inclusão de novos atores no processo, o foco em novas habilidades e diferentes modos de aprendizagem. Já o impacto é medido pela influência da inovação para muito além de seu polo inicial. As experiências inovadoras, via de regra, iniciam-se às margens do sistema, sob lideranças de pioneiros que criam pontes entre suas comunidades e redes bem mais amplas e também entre a produção acadêmica e a prática. As experiências inovadoras desenvolvem métodos confiáveis que atendem necessidades efetivas, articulam redes e alcançam resultados significativos. Algumas vezes, a experiência inovadora consegue pautar a agenda pública na área, mas isso depende da articulação com o governo e com movimentos sociais.
Descreveremos aqui experiências inovadoras desenvolvidas nos últimos anos que possuem as características descritas por Leadbeater superando, portanto, o isolamento, a fragmentação e a descontinuidade. O fato de estas experiências acontecerem na maior e mais rica cidade do país favorece que conectem parceiros, influenciem políticas públicas, ganhem visibilidade e inspirem novas experiências. É este processo que apresentamos a seguir.O período determinado para o recorte histórico é marcado pelo novo marco legislativo da educação brasileira. Depois de 25 anos de ditadura militar, em 1988, os diversos movimentos sociais conquistaram uma nova Constituição nacional, que ordenou o regime democrático no país, afirmando os direitos inalienáveis de sua população. Nos anos seguintes, o ordenamento político institucional consolidou-se nos diversos campos da vida pública. Na educação, o novo marco legal foi promulgado em 1996: a Lei de Diretrizes eBases da Educação (LDB). Como todo documento síntese de diversas disputas políticas, a LDB carrega muitas contradições, porém de modo geral, representou um avanço no ordenamento da educação brasileira. A partir dela tornou-se possível organizar escolas de modo não seriado, construir currículos contextualizados, adotar instrumentos de avaliação contínua e processual no lugar de provas, fazer uso dos espaços não escolares como espaços de aprendizagem. A gestão democrática é preconizada pela Lei, que afirma a necessidade de cada escola contar com um Conselho formado por representantes eleitos de professores, estudantes, pais, funcionários e membros da comunidade local.
A lei, embora seja fundamental em um processo de mudança, não é capaz de efetivá-la. Por isso, mesmo tendo se passado quase vinte anos da promulgação da LDB, ainda hoje organizar no Brasil escolas democráticas, com currículos flexíveis e envolvimento com a comunidade, depende de grande determinação de lideranças e apoio de redes articuladas. São experiências deste tipo que vamos conhecer.
Na virada do milênio, com a normalidade institucional democrática já consolidada no país, a intensificação dos processos de troca com movimentos e iniciativas de outros países, algumas experiências de inovação escolar começaram a se desenhar no Brasil. Dentre as diversas, faremos aqui um recorte com base em dois critérios: experiências da região metropolitana de São Paulo com foco nas crianças e adolescentes. A cidade de São Paulo, capital do estado de mesmo nome, fica na região Sudeste do país, abriga 12 milhões de pessoas e integra uma megalópole formada por 39 municípios, constituindo-se no centro financeiro e político do país. Sendo a maior cidade do país, iniciativas que ali acontecem repercutem com certa rapidez no país todo.
As experiências que vamos apresentar são as de maior impacto nacional e até internacional, estando constantemente na mídia, sendo objeto de pesquisas acadêmicas, recebendo visitantes semanalmente, inclusive de educadores em processo de formação de diversas partes do país.
Além de serem a de maior impacto, estas experiências apresentam a diversidade possível no que se refere a territórios educativos: a primeira trata de uma escola municipal que iniciou seu processo de transformação pedagógica a partir da aliança com os pais e parceiros da região; a segunda é também uma escola municipal, que se aliou com as associações de moradores em um compromisso para a transformação do bairro; a terceira é uma escola comunitária; e, por fim, temos a experiência de uma organização da sociedade civil que promove territórios educativos apoiando comunidades e escolas interessadas em desenvolvê-los.
Escola que se torna Ponto de Cultura
A primeira experiência teve início logo que foi promulgada a nova Lei. Trata-se da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Amorim Lima, que fica no bairro do Butantã, região oeste da cidade, uma região marcada pelas diferenças, onde convivem classe média e baixa, a Universidade de São Paulo e algumas grandes favelas.
Em sua capacidade máxima, a escola atende 727 estudantes de 6 a 14 anos, sendo que 9% recebem benefícios destinados a famílias de extrema pobreza, cerca de 3% são portadores de deficiência e o perfil geral do grupo é formado por crianças e adolescentes filhos de estudantes universitários, trabalhadores, artistas, profissionais liberais entre diversos outros. A equipe da escola é formada por 54 pessoas (4).
(4) Dados levantados junto à Diretoria Regional de Ensino do Butantã da Secretaria Municipal de Educação deSão Paulo em junho de 2014.
Foi a partir de 1996, com a chegada de Ana Elisa Siqueira à direção que a escola iniciou o processo de inovação. Começou com a intervenção nos espaços escolares, tornando-os mais agradáveis e voltados à convivência. Intervenções artísticas foram feitas nas paredes e muros, grades foram retiradas, espaços de convivência onde as pessoas podiam sentar e conversar foram criados. Também se abriu a escola nos finais de semana para atividades com a comunidade.
Estudantes mais velhos passaram a frequentar e viver a escola fora de seus horários de aula, como monitores em atividades várias. Com apoio e engajamento crescente dos pais e da comunidade, a escola começou a oferecer oficinas de cultura brasileira, capoeira, educação ambiental e teatro. A maior participação dos pais foi na organização das festas, na criação de um grupo de teatro de mães, no trabalho voluntário desenvolvendo atividades com os estudantes e apoiando os funcionários e no Conselho Escolar. Institutos especializados apoiaram a formação da equipe e fundações financiaram todas estas atividades.
Em 2000, o Centro de Estudos e Aplicação da Capoeira (CEACA) foi convidado para desenvolver um programa de cultura popular na Amorim, oferecendo oficinas às noites e aos sábados para a comunidade de dentro e fora da escola.
A reorganização do espaço determinou a reorganização dos tempos e dos papéis de cada um.
Em 2002, o Conselho de Escola, já fortemente constituído, instituiu uma comissão com o objetivo de levantar e analisar dados sobre os processos de ensino e aprendizagem. Foram diagnosticados como problemas centrais a indisciplina e os altos níveis de absenteísmo de estudantes e professores. Ao examinar o projeto político pedagógico (PPP) da escola, a Comissão e o Conselho compreenderam que havia grande dissonância entre o texto e aprática cotidiana na instituição. Decidiram, então, buscar apoio de assessores externos para revisar seu PPP. Conheceram assim a experiência da Escola da Ponte de Portugal (5), que se tornou uma grande inspiração. Com a aprovação da Secretaria Municipal de Educação, o PPP da Amorim começou a ser transformado no sentido de adequar suas premissas com a realidade cotidiana da escola.
A primeira ação resultante deste processo, de forte impacto tanto do ponto de vista simbólico quanto operacional, foi a derrubada das paredes que separavam as salas de aula, formando-se assim grandes salões. A reorganização do espaço determinou, como era de se esperar, a reorganização dos tempos e dos papéis de cada um.
(5) A escola portuguesa ficou famosa entre os brasileiros em 2001 quando o filósofo Rubem Alves lançou o livro A escola que eu sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir . (São Paulo: Papirus).
(6) Pontos de Cultura são projetos provenientes de entidades da sociedade civil sem fins lucrativos, que exploram diferentes meios e linguagens artísticas e lúdicas de forma que contribuam com a ampliação e garantia de acesso aos meios de fruição, produção e formação cultural. As iniciativas dos Pontos envolvem comunidades em atividades de arte, cultura, educação, cidadania, economia criativa e solidária. O financiamento dos Pontos de Cultura se dá por convênios firmados entre Governo Federal e Governos Estaduais diretamente com organizações da sociedade civil. Mais informações em http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cultura1.
(7) Mais informações sobre a escola Amorim Lima no seu site http://amorimlima.org.br/institucional/31-2/.
O currículo tornou-se mais flexível integrando as atividades antes oferecidas como extracurriculares. Como resultado, em 2005, foi criado o Ponto de Cultura Amorim (6), possibilitando que as atividades do CEACA passassem a integrar o currículo, não só com a capoeira, mas também com diversas danças da tradição brasileira.
Depois, as transformações no currículo continuaram no sentido de garantir a autonomia do estudante, o acompanhamento individualizado e a avaliação contínua da aprendizagem. Hoje na Amorim, cada estudante tem um tutor, que pode ser qualquer membro da equipe escolar. Em média, um tutor é responsável por 20 estudantes. Uma vez por semana, tutor e tutorandos tem um encontro de 5 horas. Nos demais dias, se o tutorando tiver questões a conversar pode procurá-lo. Os estudantes recebem ao longo do ano roteiros de pesquisa, com cerca de 20 objetivos, ou seja, questões a serem desenvolvidas. Os roteiros exigem que os estudantes pesquisem em vários livros de diferentes disciplinas.
A organização dos grupos não se dá mais em séries, mas sim em três ciclos, sendo que cada ciclo ocupa um salão. Nos salões, os estudantes sentam-se em mesas de quatro lugares para realizarem as suas pesquisas em grupo e sistematizarem, individualmente, seus objetivos. São poucas as aulas expositivas que ainda acontecem. Os professores circulam pelo salão para ajudar os estudantes em suas dúvidas e explicar alguns conceitos, se isso se fizer necessário. O roteiro é realizado na forma de portfólio, que é o instrumento utilizado na conversa entre estudante e tutor para avaliarem juntos o aprendizado. Não há, portanto, provas.(7)
Bairro Educador
A inovação aportada pela Amorim Lima influenciou outra escola da rede municipal de São Paulo, que hoje é um marco no país. Trata-se da escola Campos Salles, no bairro de Heliópolis, região sudeste da cidade, que oferece o ensino fundamental regular e educação de jovens e adultos (EJA). Em uma área bastante adensada vivem 125 mil pessoas, que ali começaram a chegar nos anos 70. Heliópolis já foi considerada a maior favela do Brasil, mas passou por processo de urbanização e hoje tem estatuto de bairro. A maior parte dos domicílios tem abastecimento de água, acesso a rede de esgoto e a rede elétrica, as ruas são pavimentadas, mas a maioria das famílias ainda está na linha da pobreza, vivendo com até dois salários mínimos.
A grande marca de Heliópolis é sua força comunitária. A razão desta força encontra-se na União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS), fundada nos anos 80, inicialmente com foco na luta pela moradia. No início dos anos 90, quando o educador Paulo Freire (8) foi Secretário Municipal de Educação, a educação entrou na pauta da UNAS, principalmente a partir da criação de vinte salas do Movimento de Alfabetização de Adultos (MOVA) (9) na região. É a partir dai que a UNAS inicia sua abertura para outros temas da luta popular que tem como objetivo a conquista de uma vida digna para todos (10).
(8) O educador pernambucano Paulo Freire sistematizou uma metodologia de alfabetização de adultos a partir de uma experiência muito bem sucedida com cortadores de cana no Rio Grande do Norte no início dos anos 60. O método levava em consideração o contexto vivido pelos trabalhadores, seus desejos e reflexões. Foram os excelentes resultados alcançados que motivaram a disseminação da proposta para todo o país. Mas, depois o golpe militar de 1964 reprimiu o movimento e mandou Freire para o exílio. Vivendo em diversos países da Europa, América e África, Freire tornou-se uma referência mundial em educação para a autonomia. Dentre seus vários livros, o mais famoso é Pedagogia do Oprimido publicado em várias línguas. Freire, P. (1970). Pedagogy of the Oppressed (New York, Continuum).
(9) O MOVA foi criado em 1989 em São Paulo, com uma proposta que reunia Estado e organizações da sociedade civil, para promover a alfabetização de jovens e adultos. Suas salas são instaladas em igrejas, creches, associações e empresas. A prefeitura custeia as despesas dos educadores e entidades se responsabilizam pelo local das aulas. Cada sala tem de 15 a 25 estudantes, com aulas de 3 horas 4 vezes por semana, geralmente no período noturno. Atualmente o Movimento está presente em outros municípios de São Paulo e também do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Pará, Minas Gerais.
(10) M. de SANTIS (2014) De Favela a Bairro Educador: Protagonismo Comunitário em Heliópolis. Dissertação de mestrado defendida junto ao PROGEPE (São Paulo: Universidade Nove de Julho).
Este processo intensificou-se a partir de 1995, quando Braz Rodrigues Nogueira assumiu a direção da escola Campos Salles. Aos poucos, Braz articulou-se com as lideranças locais para transformar a escola em um centro de luta pela efetivação dos direitos das pessoas. Naquela época, Heliópolis era dominada pelo crime organizado que, muitas vezes, impunha toques de recolher, obrigando escolas, comércio e demais equipamentos públicos e privados a fecharem suas portas. Sob liderança de Braz, a primeira demonstração de força da escola deu-se ao se recusar a fechar as portas quando o tráfico assim ordenasse.
Mas o ponto de inflexão neste processo de fortalecimento da comunidade contra a opressão foi motivado por uma tragédia. Em 1999, uma aluna de 16 anos foi assassinada a poucos metros da escola, quando voltava para casa. No lugar de se fechar, render-se ao medo, a escola, em parceria com as lideranças da UNAS, organizou a primeira Caminhada pela Paz, ato de demonstração de união da comunidade que se tornaria, a partir de então, evento anual, reunindo milhares de pessoas, entre adultos, crianças e jovens de Heliópolis e de fora, incluindo-se movimentos sociais de outras partes da cidade e políticos de diversos partidos. A Caminhada, organizada ao longo do ano todo, pelo Movimento Sol da Paz, começa e termina na Campos Salles, depois de percorrer 4,5 quilômetros, o raio do que hoje é chamado Bairro Educador. O Movimento Sol da Paz foi formado em 1999 por todas a organizações que lutam pelo Bairro Educador – escolas, ONGs, associações de moradores,coletivos de arte, movimentos de mulheres, movimento negro, entre outros.
Porém, mesmo quando o papel de centro de liderança da comunidade estava consolidado para a Campos Salles e sua gestão já contava com Conselho escolar forte, grêmio estruturado e comissões atuantes, do ponto de vista pedagógico a escola ainda se organizava nos velhos moldes da sala de aula, séries, disciplinas, provas e notas. Até que em meados da década de 2000, Braz e alguns professores tomaram conhecimento do processo de transformação pedagógica que a Amorim Lima estava realizando e decidiram iniciar a revisão de seu próprio PPP.
Hoje seus 1120 estudantes se organizam de forma semelhante à escola Amorim, em grupos, nos amplos salões, pesquisando a partir de roteiros elaborados especificamente para seus ciclos e contando com a ajuda dos educadores, quando preciso.
Para além da inovação curricular, a Campos Salles criou uma forma muito inovadora de os estudantes participarem da gestão da escola, que é chamada República de Estudantes. A origem dessa organização está nas comissões mediadoras. Essas comissões são compostas por estudantes eleitos em cada salão e tem como objetivo cuidar da convivência, do respeito pelo espaço, e do respeito entre os estudantes, professores e funcionários. Valendo-se de sua autonomia, os estudantes das comissões chegam, inclusive, a chamar os pais para apoiar os processos de superação de conflitos, quando necessário. Os bons resultados da atuação das comissões levaram à configuração da República que se estrutura da seguinte forma: os estudantes elegem, dentre os membros das comissões mediadoras maiores de 10 anos, um Prefeito, um Vice-prefeito, dez Vereadores (dois por salão). O prefeito indica, também dentre os membros da comissão mediadora, quatro Secretários: de Convivência e Diversidade; Comunicação; Saúde e Ambiente; Cultura e Esporte. Em caso de conflitos envolvendo estas funções, é acionada a Comissão de Ética, formada por três professores, três estudantes e um funcionário.
A inovação do projeto pedagógico da Campos Salles conferiu ainda mais força e coerência para que o Movimento Sol da Paz reivindicasse a transformação de Heliópolis em um Bairro Educador. Com o apoio de organizações reconhecidas no país, como Universidade de São Paulo, Cidade Escola Aprendiz, Instituto Baccarelli de Música, Instituto Tomie Othake, entre outras, o Movimento conquistou o Centro de Convivência Educativa e Cultural de Heliópolis (CCECH), erguido no entorno da escola a partir 2007. Foram instalados naquela área três centros de educação infantil (para crianças de até 3 anos), uma escola municipal de educação infantil (CEI) (para crianças de 4 e 5 anos), uma escola técnica do governo estadual (nível médio), um complexo esportivo, 5 praças e um centro cultural que inclui um teatro para a Orquestra Sinfônica de Heliópolis e uma biblioteca. A gestão é feita por funcionários da prefeitura indicados pela UNAS e atualmente conta com seis pessoas.
A grande marca de Heliópolis é sua força comunitária.
A UNAS se não só com a parceria permanente com o CCECH, mas também no sentido da construção do Bairro Educador, assumindo a gestão, por convênio com o município de São Paulo, de: 11 CEI; oito Centros da Criança e do Adolescente (CCA), onde as pessoas de até 14 anos desenvolvem atividades educativas diversas todos os dias; dois núcleos do Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto voltados para apoiar adolescentes que estão cumprindo penas de prestação de serviços à comunidade por terem cometido ato infracional; o Serviço de Atendimento Social a Família (SASF), que busca apoiar as famílias em situação de vulnerabilidade; três telecentros, que oferecem acesso gratuito a computadores com internet; sete núcleos do MOVA. Além disso, a UNAS ainda é responsável por equipamentos comunitários como uma biblioteca, um Ponto de Cultura, uma escola de marcenaria e uma rádio.
É todo essa rede de entidades que organiza, mobiliza e fortalece o Movimento Sol da Paz e sua luta pelo Bairro Educador de Heliópolis.
Comunidade de Aprendizagem
A terceira experiência apresentada aqui é de uma escola formada por uma organização da sociedade civil, após 17 anos de atuação com atividades artísticas e esportivas para crianças e adolescentes de baixa renda. Trata-se do Projeto Âncora localizado em Cotia, na região metropolitana de São Paulo. Cotia é um município marcado pela desigualdade social, abrigando condomínios de luxo e diversas favelas.
Em 2012, assumiu a coordenação do projeto José Pacheco, que havia sido o diretor da Escola da Ponte em Portugal. Ao perceber o alto potencial de inovação no Brasil, José Pacheco, deixou Portugal e passou a apoiar organizações sociais, educadores e escolas brasileiros em seus processos de transformação, como a Amorim Lima, a Campos Salles e, depois, o Projeto Âncora. Com a chegada de Pacheco, a organização criou uma escola própria, financiada por fundo público municipal que recebe doações de empresas e convênios diretos com a prefeitura.
Atualmente, a Escola Projeto Ancora atende 680 estudantes de 4 a 14 anos que se organizam em quatro ciclos de aprendizagem. Todos os dias, ao chegarem, os estudantes se encontram com o tutor, com quem fazem o planejamento do dia, observando o roteiro de estudos que semanalmente elaboram juntos. É na elaboração dos roteiros que os estudantes indicam o que desejam aprender naquela semana e o tutor os auxilia na escolha de temas e recursos a serem utilizados.
No fim do dia, os estudantes se encontram novamente com o tutor para discutir o que aprenderam e compartilhar aquilo que tiveram dificuldade. Toda vez que o estudante aponta dificuldades em realizar algum item do roteiro, o tema é resgatado no novo planejamento. As pesquisas e projetos realizados pelos estudantes fazem uso tanto dos grandes e generosos espaços internos do Âncora quanto do bairro e procuram envolver a comunidade na medida em que, muitas vezes, tratam de questões sociais, ambientais e culturais do lugar.
Os momentos de sistematização acontecem nos salões, onde os estudantes trabalham em grupos. Caso precisem de ajuda, levantam as mãos e chamam algum educador. Nas paredes dos salões ficam pendurados cartazes com duas colunas: “Preciso de Ajuda”
e “Posso Ajudar?”, neles, as crianças e adolescentes podem pedir apoio aos colegas escrevendo o nome na primeira coluna, ou oferecer auxílio quando dominam bem algum assunto. Os estudantes também encontram afixadas nas paredes dos salões, listagens completas e simplificadas das competências e conteúdos que integram os Parâmetros Curriculares Nacionais.
Todas as avaliações realizadas no decorrer dos dias são registradas no processo individual do educando, que resulta em uma síntese elaborada pelo tutor, acrescida da avaliação de atitudes e competências.
A participação democrática dos estudantes nos processos decisórios se dá por meio de Assembleias, que são pautadas por quadros onde todos colocam os temas que querem debater, indicando o que gostam e o que não gostam na escola. As Assembleias são organizadas por uma comissão formada especificamente para este fim. As decisões são tomadas por consenso. Os pais participam da gestão através da Associação de Pais e Amigos do Projeto Âncora.
O Âncora se apresenta como uma comunidade de aprendizagem, assim definida: práxis comunitária baseada “em um modelo educacional gerador de desenvolvimento sustentável. É a expansão da prática educacional do Projeto Âncora para além de seus muros, envolvendo ativamente a comunidade na consolidação de uma sociedade participativa.”(11) A ampliação da comunidade de aprendizagem do Âncora para além de seus muros envolve duas frentes: a primeira, volta-se para possibilitar a educadores chegados de diversas partes do país a experimentação da práxis formativa da escola com base em encontros, vivências na organização e acompanhamento a distância pela equipe do Âncora. A segunda frente de trabalho extra muros do Projeto se efetiva com a oferta de cursos para a comunidade de mosaico, produção de bancos de superadobe e restauração de mobiliário, abrindo novas possibilidades de geração de renda com base em iniciativas ecologicamente sustentáveis e que recriam os espaços da comunidade.
Bairro-escola
(11) Mais informações sobre o Projeto Ancora no seu site e também no filme dirigido por A. LOVATO, R. PEREZ & A. LIMA (2014) “Quando sinto que já sei”, disponível com legendas em inglês e espanhol em https://www.youtube.com/watch?v=HX6P6P3x1Qg. O filme também traz registros da Amorim Lima e da Campos Salles, entre várias outras experiências brasileiras.
(12) O Portal Aprendiz atualmente é feito por jornalistas profissionais.
Dentre as muitas organizações da sociedade civil que nasceram com o processo de redemocratização do país, destaca-se outra, criada dois anos depois do Projeto Âncora, a Associação Cidade Escola Aprendiz, fundada por jornalistas, arquitetos e educadores.
O foco inicial de atuação do Aprendiz foi o bairro onde a organização se instalou, a Vila Madalena, área boêmia da zona Oeste da cidade, de classe média. A organização nasceu com projetos experimentais de comunicação realizados por estudantes do ensino médio de escolas públicas e privadas juntos, rompendo com a segregação destes dois grupos que marca a cidade de São Paulo. Destas experimentações nasceu o Portal Aprendiz, um dos primeiros sites do país a tematizar educação e cidadania. (12)
Logo em seguida, a organização começou a realizar também projetos experimentais de arte urbana, mobilizando moradores e comunidades escolares a fazer intervenções criativas nos muros da cidade, para conferir novos significados aqueles símbolos da segregação social, bem como apoiar processos de revitalização de espaços antes degradados para serem reapropriados pela comunidade. Este tipo de projeto foi continuamente realizado pela organização ao longo de vários anos em diversas partes da cidade, envolvendo, inclusive, as escolas Amorim Lima e Campos Salles, dentre muitas outras interessadas em criar marcos simbólicos de suas relações com o bairro. Como resultados, além do fortalecimento de projetos político pedagógicos de escolas, mais de vinte praças e outros espaços públicos foram reapropriados por suas comunidades e por artistas da cidade.
Uma terceira linha de ação foi desenhada ainda nos primeiros anos da organização, esta voltada para apoiar jovens no desenvolvimento e viabilização de iniciativas sociais em suas comunidades. O Aprendiz manteve ao longo de seus primeiros 15 anos, diversos projetos para a formação de jovens agentes mobilizadores, alguns com foco maior em cultura, outros em comunicação. As metodologias de trabalho com os jovens foram sistematizadas e utilizadas para apoiar processos formativos de educadores interessados em realizar iniciativa semelhante em escolas ou outras organizações.
Por fim, o Aprendiz desenvolveu também outra linha de ação na Vila Madalena atuando com as crianças e adolescentes, catalisando para eles diversas oportunidades educativas do bairro, aproximando suas famílias da rede socioeducativa local, levando-os a conhecer os potenciais da cidade e também oferecendo-lhes atividades educativas nas praças do entorno. Depois de alguns anos desenvolvendo este trabalho, a associação foi chamada por algumas escolas públicas do bairro para apoiá-las na aproximação com a comunidade. A partir dai, passou a orientar processos de formação dos professores, de articulação de parcerias com organizações do bairro e da cidade e de desenvolvimento curricular.
O trabalho com as crianças e adolescentes convergiu para o fortalecimento do Fórum das Crianças e Adolescente de Pinheiros, espaço onde os estudantes da região debatem as políticas e programas voltados para os direitos das crianças e adolescentes com os técnicos dos equipamentos de educação, saúde e desenvolvimento social.
Atualmente, a prefeitura convidou a Cidade Escola Aprendiz a fomentar, junto com a Faculdade de Educação da USP, o processo de articulação das escolas do mesmo microterritório entre si e com suas comunidades em uma ampla região da cidade, que inclui a Vila Madalena e o Butantã. A perspectiva é que nestes microterritórios, as escolas que já fazem o trabalho de articulação comunitária, como as da Vila Madalena e a Amorim Lima, possam apoiar processos de criação de novas comunidades de aprendizagem na região.
O conjunto das tecnologias desenvolvidas ao longo de todas estas iniciativas foi sistematizado em uma metodologia chamada de Bairro-escola. Em 2004, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) reconheceu o Bairro-escola como um modelo a ser replicado (13). A partir daí, vários municípios passaram a procurar o Aprendiz solicitando apoio para criar novos programas educativos. O ponto chave da transposição daquela experiência comunitária para redes públicas de ensino foi a criação a figura do professor comunitário, que seria encarregado de operacionalizar a articulação da escola com a comunidade, mapeando as oportunidades educativas do entorno e criando as parcerias necessárias. Diversas cidades criaram esta figura, com diferentes nomes, e o Aprendiz foi chamado para dar a formação a esses novos atores. Em geral, estas formações aconteceram em parceria com as universidades públicas do estado de São Paulo.
(13) B. MEDEIROS FILHO & M. B. GALIANO (2005) Neighborhood as School: Mobilising the educational potential of the community/Barrio-Escuela: Movilizando el potencial educativo de la comunidad , São Paulo: Cidade Escola Aprendiz/Fundação Abrinq/Unicef.
Para além da formação de agentes comunitários, algumas cidades decidiram desenvolver políticas de Bairro-escola, criando coordenadoria especializada no assunto, como em Nova Iguaçu (Rio de Janeiro), ou a partir da Secretaria de Educação, como em Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE) e Sorocaba (SP) ou, ainda, pela Secretaria de Ações Sociais e Cidadania como em Barueri, na região metropolitana de São Paulo.
No Rio de Janeiro, o Aprendiz apoiou a Secretaria Municipal de Educação para o desenvolvimento do projeto Bairro Educador de 2009 a 2012, promovendo a articulação entre as escolas municipais e suas comunidades em todas as áreas de violência conflagrada na cidade. A partir de 2013, o projeto deu lugar a outro chamado Aluno Presente. Este projeto integra a agenda internacional pautada pelo UNICEF para que todas as crianças e adolescentes do mundo tenham acesso à escola.
Voltando para a atuação do Aprendiz em São Paulo, a partir de 2005, a organização ampliou seu foco para outros dois territórios da cidade. O primeiro foi a região central, marcada pelo multiculturalismo, a riqueza histórica, arquitetônica e cultural e alta intensidade de disputa territorial urbana, que opõe a especulação imobiliária aos movimentos por moradia. O Aprendiz iniciou ali, em parceria com a Subprefeitura, um projeto de formação de professores da rede municipal de ensino que acontecia dentro dos espaços culturais do Centro, que são referência na cidade. Depois de conhecerem estes espaços, os professores organizavam visitas de seus estudantes para os mesmos lugares. Quando este projeto se encerrou, quatro anos depois, outro se iniciou tendo por base a rede articulada dos equipamentos culturais. Esta nova rede constituiu um grupo articulador para criar ações em parceria com agentes da educação e da saúde tendo como principal objetivo que as famílias que vivem na região, sobretudo as imigrantes, e as escolas ali instaladas frequentassem os equipamentos culturais e se apropriassem da agenda cultural da cidade.
Em 2007, o Aprendiz passou a atuar também no distrito do Jardim Ângela, região sul da cidade, uma das mais pobres e violentas. Por iniciativa da direção de uma escola de lá, empreendeu-se processo de articulação comunitária, inicialmente com oficinas de arte em escolas e associações comunitárias para a produção de intervenções criativas nos muros e escadarias da região. O processo chamou a atenção de lideranças comunitárias e agentes de cultura que, com o apoio do Unicef, criaram uma rede em favor da criança e do adolescente. A rede foca as ações em grandes escolas estaduais da região, auxiliando, sobretudo, os estudantes de diversas formas: criação do grêmio; criação de espaço cultural dentro da escola onde são oferecidas oficinas de arte e realizados eventos da comunidade; elaboração de projetos de autoria deles para a escola e para a comunidade. Como resultado, hoje existe ali um fórum com forte presença de pessoas ligadas à educação articulado em torno do debate sobre as políticas públicas na região.
O Sentido da Mudança: Políticas públicas de Educação Integral
Como dito, as experiências de Bairro-escola inspiraram prefeituras a criar programas voltados para aproximar a escola da comunidade e criar novas oportunidades educativas para os jovens. Estas iniciativas acabaram por configurar uma nova agenda política no país que recebeu o nome de educação integral.
A educação integral propõe a articulação dos diversos espaços e agentes de um território para garantir o desenvolvimento dos indivíduos em todas as suas dimensões – intelectual, afetiva, corporal, social e simbólica. Compreende-se que para tão complexa tarefa, é necessária a integração de diversos atores em torno de um projeto comum, um projeto que possa transformar localidades em bairros que se educam. A escola tem papel primordial neste processo, já que é a instituição social reconhecida por sua missão educativa e é, hoje, o equipamento público mais distribuído pelo território nacional. Mas, para que se integre às famílias e demais agentes educativos da comunidade, a escola precisa de um projeto político pedagógico democrático e inovador.
Um dos primeiros governos a formular projetos de educação integral depois da promulgação da LDB foi justamente o do município de São Paulo. Em 2001, sua prefeitura criou os Centros de Educação Unificados (CEU). Os CEU são estruturas localizadas nas áreas periféricas da cidade concebidas como centros locais da vida urbana, articulando equipamentos públicos dedicados a educação, cultura e esporte.
A região metropolitana de São Paulo conta atualmente com 54 CEU onde estudam mais de 120 mil pessoas. Em cada CEU são instaladas três escolas, cada uma voltada para um nível de ensino. Todos os CEU são equipados com quadra poliesportiva, teatro, playground, piscinas, biblioteca, telecentro e espaços para oficinas, ateliês e reuniões. Estes equipamentos são utilizados não apenas pelos estudantes, mas por toda a comunidade. Em seu projeto inicial, os CEU eram geridos de forma integrada pelas secretarias de Educação, Cultura e Esporte e pela comunidade por meio de um conselho gestor.
A proposta pedagógica dos CEU descreve três objetivos fundamentais: desenvolvimento integral das crianças e dos jovens, polo de desenvolvimento da comunidade e polo de inovação de experiências educacionais. No entanto, mudanças de governo, embora não tenham diminuído o ritmo de construção de novos CEU na cidade, promoveram rupturas no desenvolvimento da sua proposta político-pedagógica. O principal resultado dos CEU até o momento é o desenvolvimento da comunidade, com a criação de empregos, obras de saneamento básico e a diversificação das oportunidades educativas, mas as escolas que funcionam em seu interior ainda operacionalizam uma proposta pedagógica basicamente tradicional.
A educação integral apresenta-se como uma efetiva possibilidade de mudança na educação sempre que promove a ocupação criativa dos espaços públicos
O governo atual, cujo mandato iniciou em 2013, está retomando a proposta original do CEU via criação de Centros de Educação em Direitos Humanos. Estes centros têm por incumbência apoiar as comunidades das escolas que funcionam dentro e no entorno do CEU para criar estratégias de promoção dos direitos humanos que reflitam na gestão, no currículo e no ambiente escolar. A gestão pedagógica desses centros é feita pela Cidade Escola Aprendiz em parceria com as secretarias municipais de Direitos Humanos e de Educação. Outra iniciativa do governo atual é a transformação do Centro de Convivência Educativa e Cultural de Heliópolis em CEU, o que possibilitará ampliar o seu raio de influência sobre os demais CEU da cidade.
Se São Paulo constituiu sua política de educação integral com foco maior na construção de centros locais de educação, cultura e lazer, outros municípios, como os já citados Barueri, Sorocaba, Belo Horizonte, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro e Recife, desenvolveram políticas de aproximação entre escolas e comunidades via criação de percursos de aprendizagem na cidade e articulação de parcerias entre escolas, equipamentos públicos e organizações comunitárias.
Essas políticas municipais de educação integral inspiraram o governo federal que, em 2007, criou um grupo de trabalho formado por gestores públicos, organizações da sociedade civil e universidades públicas para elaborar um programa que pudesse induzir políticas de educação integral no país. Nasceu assim o programa Mais Educação, que hoje disponibiliza recursos diretamente para mais de 50 mil escolas espalhadas pelo país, visando à elaboração de projetos que incluam os atores da comunidade como agentes educativos.(14)
(14) Quando o programa foi lançado, as escolas que a ele aderiram receberam a publicação CIDADE ESCOLA APRENDIZ (2007) Bairro Escola: passo a passo (São Paulo: UNICEF/Fundação Educar DPaschoal) acompanhada do filme UNICEF (2008), “O Direito de Aprender: Educação Integral e Comunitária”. (Brasília), versões com legendas em inglês e espanhol. Disponível em no site do MEC. O material descreve as experiências de São Paulo, Belo Horizonte e Nova Iguaçu.
(15) As informações sobre o programa e as experiências das cidades que desenvolveram políticas de educação integral no país estão relatadas em J. MOLL et. all (2012) Caminhos da educação integral no Brasil: direito aoutros tempos e espaços educativos. (Porto Alegre: Penso).
O foco maior do programa é a ampliação da jornada escolar, para no mínimo sete horas diárias, que não precisam ser cumpridas dentro da instituição, mas sim nos espaços disponíveis em seu entorno. Os recursos chegam diretamente às escolas que aderem ao Programa e são usados para a organização de atividades de que os estudantes participam se tiverem interesse. Os recursos do MEC voltam-se para ressarcimento de monitores, aquisição dos kits de materiais, contratação de pequenos serviços e obtenção de materiais de consumo e permanentes, além da alimentação. Os municípios e governos devem disponibilizar os educadores comunitários para a orientação do Programa nas escolas. (15)
Apesar de atingir milhares de escolas, não é em todos os lugares do país que o Mais Educação induz a uma efetiva mudança na educação. Para que isso aconteça, é preciso, em primeiro lugar, que os governos municipais ou estaduais, responsáveis pela educação básica, tenham políticas voltadas para a educação integral. Mas, mais importante, é preciso que a escola se integre às práticas educativas comunitárias e aos movimentos emancipatórios que há décadas se organizam no Brasil.
Um novo movimento social
A educação integral apresenta-se como uma efetiva possibilidade de mudança na educação sempre que promove a ocupação criativa dos espaços públicos, o fortalecimento das iniciativas e das produções culturais locais, a democratização das oportunidades educativas e, sobretudo, quando reconhece e integra o currículo escolar com os saberes comunitários e expressões populares – não só as tradicionais, mas também as novíssimas expressões culturais das juventudes brasileiras.
Os programas de educação integral possibilitam a criação de parcerias entre as escolas com as iniciativas voltadas para processos educativos que promovem a criatividade, a solidariedade e a autonomia nas diversas áreas que garantem o bem-estar humano, como cultura, comunicação, novas tecnologias, meio ambiente e direitos humanos. Trata-se de organizações da sociedade civil voltadas para a arte-educação, educomunicação, educação, audiovisual, educação digital, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação para paz. Embora estas iniciativas sejam bastante inovadoras, possibilitando processos significativos de aprendizagem em ambientes genuinamente democráticos, sempre tiveram pouca influência sobre o sistema escolar. Os programas de educação integral possibilitaram esta aproximação, o que ajuda a transformar as escolas e, ao mesmo tempo, fortalecer a agenda política dessas organizações.
A parceria das escolas com estas organizações não só diversifica os espaços e tempos de aprender, como traz para o currículo as questões sociais locais e a cultura democrática. Aos poucos, redes envolvendo estas iniciativas começam a se organizar, criando as condições para um potente movimento social na educação brasileira.
A parceria das escolas com estas organizações não só diversifica os espaços e tempos de aprender, como traz para o currículo as questões sociais locais e a cultura democrática.
Em 2007, aconteceu em Mogi das Cruzes, na região metropolitana de São Paulo, a 15ª Conferência Internacional de Educação Democrática (IDEC). A IDEC reúne desde 1993, sempre em um continente diferente, escolas, organizações e indivíduos que se orientam pelos seguintes ideais: respeito e confiança pelas crianças; liberdade de escolha; gestão democrática compartilhada entre crianças e adultos. (16)
Pela primeira vez na América Latina, o encontro de 2007 foi organizado pelo Instituto Politeia, o Laboratório de Pesquisa em Ensino e Diversidade da Universidade Estadual de Campinas (LEPED-Unicamp), o Instituto Socioambiental (ISA) e a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), como evento paralelo ao Fórum Mundial de Educação do Alto Tietê. O Fórum Mundial de Educação surgiu em 2001 como um dos desdobramentos do Fórum Social Mundial (FSM), movimento internacional que busca articular iniciativas que propõem alternativas à hegemonia neoliberal.
(16) Sobre a rede internacional da educação democrática e suas principais referências históricas e filosóficas, ver H. SINGER (2010).
República de crianças: sobre experiências escolares de resistência.
(Campinas: Mercado de Letras).
(17) Sobre esta experiência, há várias dissertações e teses acadêmicas. Ver, por exemplo, A. C. O. ABBONIZIO (2013). Educação escolar indígena como inovação educacional: a escola e as aspirações de futuro das comunidades. Tese de doutorado defendida junto à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
O Instituto Politeia foi criado por educadores ligados a escolas democráticas particulares de São Paulo em 2006, com o objetivo de fomentar o movimento pela educação democrático no país. Suas principais atividades estavam ligadas à conexão com a rede internacional da educação democrática, a oferta de um curso livre sobre educação democrática e a criação de uma nova escola democrática na cidade, a escola Politeia.
O ISA desenvolveu o Projeto Educação Indígena no Alto Rio Negro, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Este projeto buscou reestruturar a educação escolar protagonizada pelas comunidades e organizações indígenas da região, superando o caráter evangelizador que caracterizava estas escolas até então. Como resultados há hoje na Amazônia algumas dezenas de escolas com projetos político pedagógicos coerentes com a matriz lógica indígena e estratégias pedagógicas baseadas na pesquisa, que catalisam projetos de desenvolvimento local.(17)
A Faculdade de Educação da USP participou da organização da IDEC, sobretudo, por causa do seu envolvimento com uma rede na zona leste da cidade de São Paulo, que articula organizações públicas e da sociedade civil tendo como horizonte a educação como desenvolvimento local.(18)
O LEPED-Unicamp volta-se para a pesquisa e a formação de professores no campo da inclusão escolar de todos os jovens, independente das condições físicas ou mentais, outra agenda que ganhou força política no início do novo século no país. Para uma escola acolher todas as pessoas que a ela chegam, precisa se transformar com recursos, metodologia e, principalmente, filosofia que atendam a todas as necessidades e culturas. As escolas inclusivas propõem um modo de organização que considera as necessidades de todos e que é estruturado em função dessas necessidades.
Foi assim que na IDEC de 2007 encontram-se os movimentos pela escola democrática, autônoma, inclusiva e articuladora do desenvolvimento local. Participaram cerca de 170 pessoas ligadas a 65 organizações escolares e não escolares de várias partes do Brasil e também do Peru, México, Canadá, Estados Unidos, Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, Ucrânia, Israel e Japão. Nas atividades abertas ao FME, o público chegou a 800 pessoas.(19)
(18) A publicação I. Passoni & J. C. D. GARCIA (2008) Conhecimento e Cidadania – Tecnologia Social e Articulação Comunidade-Escola, vol. 1. (São Paulo: ITS), traz relatos sobre esta experiência e também sobre os programas de educação integral de Belo Horizonte e Sorocaba.
(19) H. SINGER (2008). L’Idec va in America Latina. Libertaria, anno 10, numero 1-2, p.73-9, Milano: Editrice A cooperativa arl. Versão em inglês disponível para download em https://www.academia.edu/3609006/Bringing_the_Democratic_Education_Movement_do_Latin_America.
Nos anos seguintes, em outras partes do país, o Mais Educação tornou-se importante foco para a articulação em rede de experiências inovadoras e governos comprometidos com a mudança na educação. Isso se deu porque o programa conta, em sua estrutura, com Comitês Metropolitanos ou Regionais, constituídos por representantes das secretarias, gestores escolares e outros parceiros, entre os quais as universidades, e Comitês Locais, formados por representantes da comunidade escolar e do entorno. Encontros regionais e nacionais desta rede debatem os princípios e a agenda da educação integral no país. Durante o encontro nacional de 2013 em Brasília, lançou-se uma Carta Aberta –
Manifesto em que se afirma a educação integral como elemento fundamental do sistema de garantia de direitos.
No mesmo ano foi criado o Centro de Referências em Educação Integral, uma iniciativa de organizações governamentais e não governamentais para promover a pesquisa, o desenvolvimento, aprimoramento e difusão gratuita de referências que contribuam para a gestão de políticas públicas nesta área. A gestão pedagógica do Centro é feita pela Cidade Escola Aprendiz.
Ainda em 2013 foi lançado o Manifesto “Mudar a Escola, Melhorar a Educação: Transformar um País”. Este manifesto foi escrito por educadores, ativistas e pesquisadores, inicialmente instigados por José Pacheco, que desde 2008 se articulam em uma rede que inclui muitos dos que se encontraram na IDEC. Hoje a página virtual conta com mais de dois mil membros ligados a algumas centenas de iniciativas de todo o país.
Encontros regionais desta rede passaram a debater princípios comuns a uma proposta de transformação social a partir da educação. O Manifesto afirma a necessidade de se garantir a gestão democrática das escolas, o fortalecimento das “comunidades de aprendizagem concebidas por um projeto coletivo baseado num projeto local de desenvolvimento”
e a educação integral como uma proposta que supera a fragmentação do conhecimento nas séries e disciplinas.
Novos pontos da rede se fortaleceram. Criou-se a página virtual da Rede Nacional de Educação Democrática.(Encontros presenciais começaram a acontecer mensalmente em diferentes partes do país. Teses sobre as experiências inovadoras se multiplicam nas universidades brasileiras. Está em permanente elaboração uma plataforma colaborativa mundial onde as pessoas incluem as experiências com as quais estão envolvidas nos diversos países. Filmes e livros, financiados coletivamente, começam a registrar a diversidade das experiências, mapas coletivos mostram a distribuição destas pelo mundo, festivais anunciam as novas possibilidades.
Conclusão
O movimento em curso demonstra que os casos de inovação apresentados neste artigo conseguiram superar o isolamento, a fragmentação e a descontinuidade e estão efetivamente produzindo uma mudança no cenário educacional brasileiro. Para tanto, algumas condições foram necessárias.
Os quatro casos apresentados iniciaram-se como intervenções em nível local, por escolas e ONGs, que se conectaram com grupos culturais, associações de moradores e comunidades dos bairros em que estavam localizadas. Mas, para além desta conexão local, as organizações aqui enfocadas também fizeram articulações com universidades e pesquisadores. Se nos primeiros anos, estas experiências dependiam largamente do empenho e dedicação dos seus diretores, com o tempo conseguiram formar equipes qualificadas que criaram metodologias confiáveis com foco no desenvolvimento integral, o que significa tratar de competências diversas, valorizar os diferentes estilos de aprendizagem e incluir de novos agentes no processo educativo.
Estas experiências ofereceram uma possibilidade concreta para os governos interessados em ampliar o tempo da educação, mas sem recorrer ao questionável modelo da escola de tempo integral.
Os bons resultados alcançados e a rede articulada em torno destas experiências as tornaram inspiração para muitas outras iniciativas no mesmo sentido espalhadas pelo país, o que vem constituindo um novo movimento na educação brasileira. Este movimento reivindica autonomia para que as escolas possam desenvolver seus projetos pedagógicos intrinsecamente ligados com o contexto que elas estão, respeitando sempre o protagonismo dos estudantes e professores.
Este movimento se contrapõe às políticas governamentais que se alinham com recomendações de organismos internacionais e avaliam a educação com base em exames de proficiência em português e matemática, reduzindo a função escolar ao ensino massificado das habilidades mínimas para o mundo do trabalho.
No entanto, as experiências inovadoras de educação integral inspiram e fortalecem outro tipo de política governamental, que busca atender outra orientação dos organismos internacionais: a da extensão da jornada escolar. Ao redesenhar a estrutura escolar para possibilitar as parcerias com a comunidade e ONGs e ampliar os espaços e tempos de educar para além dos muros escolares, estas experiências ofereceram uma possibilidade concreta para os governos interessados em ampliar o tempo da educação, mas sem recorrer ao questionável modelo da escola de tempo integral.
Muitas vezes, dentro do mesmo governo, há disputas de força entre programas de educação integral e programas voltados para a melhoria do desempenho nos exames nacionais. A efetiva mudança na educação brasileira acontece na medida em que os primeiros se sobreponham aos últimos.
(A foto que ilustra essa matéria é de barbara carneiro via Flickr/Creative Commons)