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As letras de música do funk carioca escandalizam muita gente pelo conteúdo sexual, às vezes ofensivo, e palavras de baixo calão. O uso desses recursos, no entanto, não é dos dias de hoje. Fazem parte da literatura desde os primórdios da língua portuguesa, quando eram aplicados pelos poetas na composição das chamadas “cantigas de escárnio e maldizer”. Pense no pior palavrão que conhece e, certamente, ele esteve presente nas composições da época.

Linguagem carregada de imprecações, difamações, uso de baixo calão e referências ao baixo material corporal. Comparações e metáforas que transformam o homem em animal. Exagero em descrições corporais, paródias e ironias constantes e criação de um mundo inacabado e ambivalente. Essas são as principais características do chamado “grotesco”. Rogério Caetano de Almeida, pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, analisou a presença desses elementos na poesia portuguesa ao longo da história, de olho em autores consagrados como Bocage, do século 18, e o contemporâneo Al Berto, entre outros.

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Já as obras de Camilo Pessanha e Mario de Sá-Carneiro, ambos do início do século 20, também fazem parte da pesquisa com o lado sinistro do grotesco. Tratam de temas relacionados à morte, ao fantástico turbulento e ao lado abismal da existência.

Para Almeida, a literatura grotesca pode ter grande valor. “Apesar de seu vínculo a tudo o que é aberratório, estranho e ridículo, o grotesco está na essência do ser humano, com seus pequenos universos ainda em expansão”, escreve em sua tese de doutorado, orientada pelo professor José Horácio de Almeida Nascimento Costa. O autor acredita que juízos morais não podem afastar uma obra por ela parecer repulsiva. O uso hábil do grotesco pode produzir um texto que seja “orgânico, vivo, dinâmico e, por que não, absolutamente sublime”.

Na maior parte dos casos, o universo do grotesco na poesia portuguesa gira em torno do corpo humano. Fala-se, por exemplo, de características físicas que destoam do padrão, órgãos genitais e necessidades fisiológicas. O sexo e a sensualidade são temas constantes. Traços disso, aponta o autor, podem ser encontrados tanto na cultura elitizada quanto na popular dos dias de hoje. É o caso, por exemplo, das piadas com sentido sexual e das palavras com significado dúbio na linguagem coloquial.

Aceitação
O termo “grotesco” surge das grutas romanas (grotta em italiano) localizadas dentro da residência do imperador romano Nero. Os renascentistas encontraram dentro delas obras estranhas, que uniam plantas e animais numa só imagem.

Segundo Almeida, a aceitação do grotesco variou de acordo com a época. Pode parecer surpreendente, mas os medievais lidavam com a questão de maneira mais simples. “Eles brincavam e riam juntos. O texto, afinal, é grotesco”, explica Almeida. Naquela época, até reis como D. Afonso X escreviam cantigas de escárnio e maldizer. Numa delas, por exemplo, o monarca diz recusar uma donzela feia e flatulenta.

A poesia que leva a pecha de grotesca foi desprezada durante séculos e excluída do cânone literário, ou seja, o conjunto de obras considerado pertinente e valoroso de acordo com o modo de pensar de determinada época e local. Até hoje, é pouco estudada até nas universidades.

“Essas produções em muitos casos ficaram relegadas a um segundo plano, para não dizer desprezadas e até mesmo proibidas, seja por serem provocativas, seja por denunciarem mazelas quaisquer ou simplesmente por levarem seus ouvintes ou leitores a sorrirem”, escreve Almeida.

Para o autor, trata-se de um desperdício. O poeta Bocage, por exemplo, teve seu ápice justamente na sátira grotesca, que é a parte menos estudada de sua obra. A lacuna existe também na formação de novos leitores, que não têm acesso a poemas assim no ensino básico. “Acredito que o grotesco poderia ser apresentado para o público juvenil. Afinal, a produção literária é boa, interessante e ainda nos diverte. No entanto, a questão permeia a educação moral que algumas famílias esperam para seus filhos”, diz Almeida. Para conhecer a obra grotesca na poesia portuguesa, acesse aqui obras de Bocage, Camilo Pessanha e D. Afonso X .

(Agência USP)

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