publicado dia 20 de março de 2013
Valorizar uma produção que não surge da erudição, mas da capacidade de invenção do povo brasileiro, é o objetivo da mostra “Design da Periferia”, em cartaz no Pavilhão das Culturas Brasileiras, no Parque do Ibirapuera. A iniciativa é resultado do mapeamento da sabedoria criativa do design feito em comunidades e cidades de todo o país.
Churrasqueiras construídas com calotas velhas de pneus, postos de trabalho de vendedores ambulantes, móveis e brinquedos elaborados a partir de materiais e técnicas disponíveis no lugar em que vivem seus produtores são alguns dos objetos da exposição.
Curadora da mostra, a jornalista e professora de História do Design, Adélia Borges, destaca que, por trás de uma aparente precariedade na vida da maioria dos brasileiros, existem soluções “geniais”, em artefatos feitos na própria comunidade e para uso em seu cotidiano.
De acordo com Adélia, “as peças expressam como a invenção tem sido historicamente uma estratégia de sobrevivência inerente à cultura brasileira, totalmente impregnada no cotidiano e na vivência dos seus produtores”.
Para falar de temas como estratégias de criação na periferia, as diferenças regionais na produção e também da importância do design para a aprendizagem, o Portal Aprendiz entrevistou a curadora da mostra.
Portal Aprendiz – Qual o sentido de periférico que a exposição apresenta?
Adélia Borges – A periferia é um conceito subjetivo, pois necessariamente se relaciona a um centro, que pode ser real ou metafórico. Podemos falar da periferia de uma cidade, ou de um país que está na periferia do mundo. O próprio papa se refere a esse conceito, quando diz que foram buscar um papa “lá no fim do mundo”. No nosso caso, o título da mostra alude ao fato de que ela apresenta objetos e situações que não estão no centro das atenções do mundo da cultura institucionalizada, mas são marginais, ocorrem nas bordas, longe do estabelecido, do status quo.
De certa forma, ao expor essas peças num museu, um local de prestígio, ainda mais numa “área nobre” de São Paulo como é o Parque Ibirapuera estamos tirando-as da periferia e colocando-as no centro – o centro de uma cidade que está no centro do país. Espero que nessa recontextualização a gente possa estimular o reconhecimento a elas. Apesar de provavelmente já termos vistos tantas dessas manifestações de sabedoria criativa in loco, muitas vezes as ignoramos, por serem marginais. Talvez a gente só passe realmente a perceber o seu real valor quando inseridas numa exposição como esta.
Portal Aprendiz – De que forma as peças em exposição revelam o cotidiano, a vivência dos seus produtores?
Adélia – As peças são manifestações inequívocas de sabedoria criativa. Elas expressam como a invenção tem sido historicamente uma estratégia de sobrevivência inerente à cultura brasileira, totalmente impregnada no cotidiano e na vivência dos seus produtores. Movidas pela pobreza, com acesso restrito ao mercado de consumo, as pessoas comuns improvisam e criam artefatos sob medida para as suas necessidades, tirando partido de materiais que estão à mão no seu ambiente. E elas revelam o contexto dos produtores na medida em que são soluções a partir das disponibilidades do local em que vivem. Nas pequenas cidades, predominam os materiais orgânicos, mas nas capitais o forte são as criações feitas com os dejetos da sociedade industrial. Há uma alta carga de improvisação.
Portal Aprendiz – Reutilização e materiais de baixo custo são estratégias recorrentes da criação brasileira popular de design?
Adélia – Sem dúvida! Costumo dizer que o povo brasileiro é ecológico avant la lettre, pois muito antes dessa palavra se difundir, as criações populares já professavam os princípios da sustentabilidade, que se pode ver tanto pela prática da reciclagem quanto pelo sábio uso de técnicas e recursos locais.
Portal Aprendiz – Há diferenças regionais no design produzido nas periferias do país ou aparecem marcas expressivas comuns a despeito das distâncias geográficas?
Adélia – Acho que as diferenças se manifestam mais nos materiais utilizados. A despeito das distâncias geográficas, chama a atenção a perfeita funcionalidade dos objetos, obtida em soluções que revelam muita inteligência. Mas no design popular brasileiro a forma não atende apenas à função, ela a transcende. Constatam-se uma grande liberdade criativa e um rico vocabulário de formas e cores.
Portal Aprendiz – Como o design produzido no Brasil é recebido no exterior?
Adélia – Estamos vivendo um momento de grande reconhecimento. E com certeza, para isso, colabora o fato de o próprio país não estar sendo mais considerado periférico. As mudanças econômicas, em especial a ascensão dos países BRICs, estão levando a uma nova geopolítica do mundo. Os fluxos culturais passaram a ser multidirecionais. Junte-se a isso o bom momento vivido pelo design brasileiro – que também depende de crescimento econômico e que, sem dúvida, passou a se desenvolver muito mais a partir dos ares da redemocratização -, e temos um cenário internacional do design em que o Brasil é um dos países “bola da vez”. As principais revistas especializadas estrangeiras deram edições especiais sobre o Brasil recentemente, há um aumento no número de premiações para brasileiros e a quantidade de exposições sobre design brasileiro também cresceu nos últimos anos.
“A topografia do espaço do Pavilhão das Culturas Brasileiras dedicado à exposição Design da Periferia se estrutura com uma escavação no prédio. A cenografia propõe uma arqueologia do design no contexto de uma ambientação conceitual, imersiva e finalmente funcional. A estratégia de usar paradigmas compositivos e tectônicos de uma escavação, introduz o visitante em uma experiência de narrativa e de descoberta. Nessa escavação é descoberta uma cidade com uma organização espacial que reproduz uma malha urbana espontânea da periferia. A forma urbis dessa cidade imaginária serve para criar diversas camadas de relacionamento entre o público e os objetos, da pele íntima dos objetos do corpo e dos brinquedos, passando pelas paredes e um entorno doméstico, até as ruas que expõem objetos do contexto urbano e público. A montagem utiliza como componente construtivo um tijolo de concreto comum (no contexto da construção da periferia), porém neutralizado por meio de uma coloração especial. Todo o espaço da exposição foi inteiramente pintado na cor azul Yves Klein , com o objetivo de dar um fundo infinito e imersivo dessa escavação arqueológica do mundo do design. “, Marko Brajovic, arquiteto e cenógrafo da mostra.
Portal Aprendiz – Como tem sido a recepção do público para a exposição? Quais são as ações do setor educativo?
Adélia – A receptividade das pessoas tem sido excelente. Os visitantes se reconhecem nas obras, lembram de já terem visto algo semelhante antes, de certa forma são coisas familiares às pessoas. O setor educativo tem trabalhado com muitas associações da sociedade civil e ONGs. No momento, os mediadores estão fazendo uma oficina bem bacana tendo por base o design dos móveis de Festas de Largo de Salvador, que na exposição são apresentados por meio de fotos do Adenor Gondim. Cada barraca tinha seu próprio padrão de cores, grafismos e elementos decorativos. Empilhados durante o dia, quando fora de uso, os banquinhos compunham conjuntos incríveis, muitos deles em composições geométricas, que variavam de dia para a dia, conforme o jeito com que eram arrumados. Mas no final dos anos 1990 a prefeitura proibiu o uso de móveis de madeira e impôs, por decreto, a utilização de móveis industriais de plástico cinza ou branco. A paisagem urbana, que era plural, ficou homogênea e empobrecida.
Portal Aprendiz – Como foi a pesquisa de campo para a exposição Design da Periferia?
Adélia – A pesquisa teve a colaboração de associações, organizações não governamentais e curadores em vários estados do Brasil. De Salvador conseguimos várias obras, graças a uma investigação que vem sendo feita desde 2002 pela ONG Cipó Comunicação Interativa e escola de tecnologia Oi Kabum! Graças à eles, e cito especificamente a coordenadora Isabel Gouvêa, temos um conjunto muito bom de peças provenientes de Salvador. Da região do Cariri cearense, tivemos a colaboração expressiva de Titus Riedl, fotógrafo, historiador e sociólogo. Fotógrafos têm um papel significativo, muitos passam anos pesquisando um assunto. Para a exposição foram fundamentais os trabalhos de Adenor Gondim, de Salvador; Guma, que mora no Campo Limpo, na cidade de São Paulo; e de jovens moradores de favelas cariocas, aprendizes da ONG Observatório das Favelas.
Outra colaboração indispensável foi a de Eleilson Leite, da Ação Educativa, de São Paulo, que elabora a Agenda Cultural da Periferia e tem um profundo conhecimento sobre a periferia paulistana. Eu também fiz muitas pesquisas diretas. Como há vários anos me interesso pelo tema, costumo aproveitar as frequentes viagens que faço, convidada a dar palestras, para também ir a feiras e mercados populares e visitar oficinas de designers e artistas, e assim investigar in loco.
Portal Aprendiz – Como o design pode contribuir para a aprendizagem dentro e fora da escola?
Adélia – O design está no cotidiano de todos nós, tenhamos ou não consciência de sua presença. Da hora que levantamos à hora em que vamos dormir convivemos com objetos projetados pelo ser humano – na verdade, até durante a noite, pois a maioria das pessoas dorme sobre uma cama ou uma rede. O design tem a capacidade de resolver problemas, atender às necessidades e aos desejos das pessoas. Seu fim último é a melhoria da vida das pessoas. A percepção consciente dessa presença pode nos levar a discernir melhor o design que realmente melhora a nossa vida e pode disseminar o exercício formal ou informal dessa atividade transdisciplinar. Nesse sentido, a sua prática pode contribuir bastante para a aprendizagem dentro e fora da escola.