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publicado dia 26 de fevereiro de 2014

Educação sitiada: Por dentro dos colégios da PM em Goiás

Especial produzido em parceria entre o Centro de Referências em Educação Integrale o Portal Aprendiz

Pela manhã, todos se concentravam no pátio. As turmas uniformizadas se dividiam em pelotões para a verificação dos presentes. Era o momento em que cada estudante se apresentava a um oficial, batendo continência e mostrando respeito e disciplina. Em seguida, a bandeira nacional era hasteada e todos entoavam o hino nacional, da Independência ou do estado. A descrição acima poderia ser de um quartel, mas era o dia a dia de Bruno Pena, 28, que frequentou, de 1999 a 2003, um dos seis colégios da polícia militar de Goiás, o CPMG Hugo de Carvalho Ramos.

Onze anos depois, este modelo escolar continua vivo no estado. Só em janeiro deste ano, dez novos colégios foram inaugurados em diferentes municípios goianos. Até o fim de 2014, mais três escolas deste modelo serão entregues, totalizando 19 no sistema. Administradas pela Polícia Militar do estado, essas unidades são fruto de um termo de cooperação técnico-pedagógico entre as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e Educação, envolvendo também as subsecretarias regionais de ensino. As escolas atendem estudantes do Ensino Fundamental II e Ensino Médio em todos os períodos.

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Uma das justificativas para a existência do modelo de educação militar tem como pano de fundo a violência nos territórios onde as escolas estão inseridas. Segundo dados do Mapa da Violência 2013, entre 1998 e 2010, o índice de homicídio de Goiás cresceu 119,4% (29,4 homicídios a cada cem mil habitantes), ao mesmo tempo que a taxa do Brasil ficou estagnada em 26,2.

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A deputada Sônia Chaves (PSDB), uma das responsáveis por apresentar o requerimento de expansão do modelo ao governador do estado, Marconi Perillo (PSDB), aponta que o projeto está em sintonia com a demanda educacional dos municípios da região. “Nós fomos procurados por muitos gestores que lidam com a questão para interceder junto ao governador pela instalação de colégios militares em outras cidades.”

Para Paulo Carrano, professor da Universidade Federal Fluminense, a Polícia Militar é uma herança dos períodos autoritários e, por essa razão, considera um desvio institucional e um equívoco educacional que ela assuma responsabilidades com a rede pública de ensino. “Mas o senso comum vê na medida um elemento capaz de levar segurança às escolas e disciplinar crianças e jovens que teriam fugido ao controle de seus familiares e professores. Há também aqui um indício de falência da noção de escola como centro cultural público emancipatório e de formação cidadã. A disciplina faz parte do processo educativo, mas não pode ser nossa utopia educacional e civilizatória”, contesta.

A hierarquia escolar

Diferente do que ocorre nas escolas básicas da rede pública, em uma escola militar o posto de diretor não é ocupado por um pedagogo; a gestão é realizada por um policial com formação técnica equivalente a uma graduação voltada à educação.

Cabe também aos militares lecionar a disciplina de “Noções de Cidadania”, que aborda temas como  a “ordem unida”, orientações de trânsito, Constituição Federal, meio ambiente, etiqueta social, prevenção às drogas e educação religiosa. “A filosofia de trabalho é reacender nos nossos alunos os valores que foram esquecidos pela sociedade brasileira, como o amor ao civismo, à verdade e ao próximo”, defende Edmilson Pereira de Araújo, comandante diretor do CPMG Doutor Cezar Toledo, localizado em Anápolis.

A proposta dos colégios militares de promover “a ordem”, “o civismo” e “a moral”, segundo o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Miguel Arroyo, não é novidade, antecede a ditadura militar com a educação moral e cívica e remete a uma visão da elite de condenar os populares como aqueles que não têm civilidade e valores. “Nossa educação sempre foi mais moral que intelectual. Nossa escola nunca teve a cultura de formar cidadãos. Aqui quem forma é a justiça, a partir da repressão”, condena.

A hierarquia nos colégios militares de Goiás fere o inciso VIII do artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), que preconiza a gestão democrática como um dos princípios do ensino público no país. “Acreditamos que a gestão escolar sob responsabilidade da polícia pode ser nociva, uma vez que repassa a hierarquia militar ao estudante. Nesse modelo, a construção do coletivo se dá pelo medo e não com base na parcimônia, respeito e múltiplos métodos de convivência”, avalia Márcio Menezes Moreira,  assistente da Relatoria da Educação da Plataforma Dhesca Brasil.

Na Constituição Federal, o inciso VI do artigo 206, também ratifica a gestão democrática como um dos princípios da educação brasileira.

Na visão do pesquisador da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO), André Lázaro, oficiais, policiais e bombeiros podem se tornar educadores, desde que se submetam a concursos públicos e, por esse trajeto, assumam legitimamente a direção de estabelecimentos de educação. “Neste caso, há uma inversão: a escola é gerida por militares por serem apenas militares e a função da educação fica esquecida.”

Disciplina como resposta

Além da matéria voltada às noções básicas de cidadania, os colégios militares de Goiás possuem, a cada turno, um momento chamado de “seção disciplinar”, destinada aos alunos que não caminham de acordo com as normas do colégio. “Os policiais dão todo o suporte para que os professores tenham tranquilidade para ministrar sua aula. Toda escola tem situações de alunos que vão para atrapalhar e aqui não é diferente. Há casos de professores e funcionários sendo agredidos, ultrajados em sua moral. Esse serviço é preventivo e, quando detectamos que algum aluno está saindo fora da rotina de nosso colégio, chamamos os pais para dividirem essa responsabilidade conosco”, explica o comandante-diretor Edmilson.

Quando o estudante entra no colégio, ele é avaliado em duas notas diferentes: uma sobre o currículo e outra disciplinar. Na avaliação de conduta, todos começam com uma “nota padrão” e vão perdendo pontos ao passo que falham diante das regras. “Se o aluno chega abaixo de determinada pontuação, ele então é encaminhado ao Conselho Escolar, que normalmente acaba por expulsar o estudante. É como se fossem multas de trânsito”, relata a professora Ticiana Barbosa Bernardes, que lecionou por sete anos no CPMG Carlos Cunha Filho, do município de Rio Verde. Para a docente, as regras não vêm para tornar a criança submissa e sim para “dar conduta e garantir bom comportamento.”

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Existem ainda outras regras: os estudantes devem usar as fardas corretas de acordo com ocasião, as meninas não podem usar esmalte escuro e devem amarrar o cabelo, não é permitido piercings ou mais de um furo na orelha, nem pulseiras, correntes ou colares. Aos professores, também é norma manter o cabelo curto, a aparência asseada e moderar o uso de acessórios. Para as infrações dos estudantes, as punições são diversas – desde copiar artigos de conduta à suspensão de aulas ou até expulsão.

Os alunos podem sair da escola sem farda, mas se o fazem vestidos com o uniforme devem mantê-lo em perfeito alinhamento. “Teve um caso em que um garoto tirou a camisa para fora da calça, uma coordenadora encontrou com ele no ônibus e ele foi punido”, relembra Ticiana.

De acordo com pesquisa de Sirismar Silva, sobre o sistema de ensino da PM de Goiás, o regimento interno dos colégio é respaldado pela teoria behaviorista, que tem como base o estímulo e a resposta. O estudo indica que a hierarquia e disciplina nestas unidades estão presentes não apenas na figura dos policiais fardados – que desenvolvem atividades na área administrativa e pedagógica -, mas entre os próprios alunos, todos uniformizados à semelhança dos superiores. Os estudantes devem ainda mostrar deferência, cumprimentando seus superiores com o tratamento de senhor(a).

Foi por causa da disciplina que o pai do então estudante Bruno, que cursou o CPMG Hugo de Carvalho Ramos por cinco anos, escolheu o colégio militar.  “Ele acreditava que era a última saída para mim, o filho rebelde, por conta das orientações disciplinares”, avalia o jovem, relembrando que a cada vez que um professor entrava na sala, o chefe de turma batia continência e anunciava o número de presentes na aula. De acordo com o manual do aluno, cada sala nomeia um chefe, que tem domínio sobre os demais colegas e zela pela disciplina do coletivo. Há também um subchefe para cuidar da limpeza e um estudante chefe geral para cada turno, responsável por auxiliar a coordenação disciplinar e realizar a chamada dos demais.

Quando estudante, Bruno criou o grêmio em sua escola como resposta à falta de espaços de participação dos estudantes. O Conselho Escolar, por exemplo, composto por representantes da direção, docentes e famílias, não contava com a presença de alunos. Na hora dos julgamentos sobre as possíveis expulsões, não havia possibilidade para que o estudante contra-argumentasse ou se defendesse. “Isso não é formar o cidadão, é apenas selecionar”, explica Bruno, que embora tenha críticas, é favorável ao sistema de ensino. “Passar por uma experiência dessa é bom para todo mundo, tanto para repudiar e dar valor à liberdade, quanto para adquirir valores, como disciplina, ordem e hierarquia.”

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Taxas

Além de obrigatórios, os uniformes devem ser providenciados pelas famílias. Cada estudante tem, pelo menos, quatro tipos deles, que chegam a custar até R$100 cada. Para arcar com estas e outras despesas, o termo de cooperação técnico-pedagógico permite que, uma vez aprovada pelo Conselho Escolar, a escola sugira uma contribuição voluntária.

Esta contribuição resulta em um fundo, cujos 10% podem ser utilizados para cobrir despesas de alunos que não possuem recursos suficientes.  “Aqui nós trabalhamos a questão da solidariedade humana. Em nosso almoxarifado, temos peças [uniformes] que podem ser doadas ou vamos atrás de pessoas que possam nos apoiar”, explica o coronel-diretor Edimilson.

Até janeiro deste ano, os termos vinham sendo cumpridos legalmente. Contudo, no processo de expansão, o Ministério Público (MP) de Goiás foi acionado por pais de estudantes de unidades de Valparaíso, Novo Gama, Cidade de Goiás e Inhaúma, que alegavam que a “contribuição” não foi acordada no Conselho Escolar. “As cobranças vinculavam, inclusive, a matrícula desses alunos ao pagamento. O mesmo ocorreu com os uniformes”, explica a coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Educação do MP-GO, Simone de Sá Campos.

Inicialmente, a questão foi resolvida com diálogo entre o MP e o Comando de Ensino da PM, no sentido de orientar os gestores das escolas de que essa prática fere o direito à educação e permanência dos estudantes na escola. “Apenas em Valparaiso e Rio Verde foi preciso que o MP entrasse com uma ação civil pública contra a cobrança. O juiz concedeu liminares e as escolas que desobedecerem a decisão estarão sujeitas à multas diárias e seus gestores podem, inclusive, ser presos”, esclarece Simone.

Para Márcio Moreira, da Plataforma Dhesca, a necessidade dos materiais e mesmo da contribuição voluntária é preocupante, pois ao ferir o princípio da gratuidade, viola-se a condição da escola como universal e equitativa. “Se penso em insumos apenas pra quem tem condições financeiras, eu não dou as mesas condições e violo o principio de permanência na escola.  Aqueles que têm mais recursos conseguem e os outros não”, justifica.

Ordem e progresso

A Secretaria de Segurança Pública alega que a medida não responde apenas à contenção de violência e sim ao fato de que os colégios militares apresentam bons resultados nos sistemas de avaliação, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Segundo o pesquisador Sirismar Fernandes Silva, na tese “Hierarquia e disciplina no colégio da polícia militar – estudo de caso do CPMG Doutor Cézar Toledo”, a estrutura pedagógica mais rígida, baseada em disciplina individual e coletiva, proposta pelas unidades, favorece os bons resultados nas avaliações padronizadas.

Essa tendência em associar melhoras nas avaliações a um maior controle da escola e do aluno também é vista pelo Luiz Carlos Freitas, doutor da Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (Unicamp) . “Essa mentalidade leva a pensar que para melhorar o ensino tem que botar todos na linha e, com isso, tem um processo de valorização excessiva da disciplina, o que acaba produzindo uma pedagogia penal direcionada às classes média e pobre”, explica.

Essa melhoria nos índices, para Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, é reflexo, na verdade, do maior investimento e atenção do poder público. “Contudo, as escolas com gestão democrática e de discussão compartilhada, como as escolas técnicas e federais, vão muito melhor em avaliações de larga escala e vestibulares do que estas.”

Análise

Especialistas ouvidos pelo Centro de Referências em Educação Integral e Portal Aprendiz consideram o modelo goiano um equívoco, justamente por promover um sistema autoritário como contrapartida ao cenário de violência, que carece de leis que promovam a convivência humana, diálogo e compreensão.

Para Paulo Carrano, o conceito da violência é polissêmico e, muitas vezes, casos de indisciplina ou dificuldades de relacionamento podem ser confundidos com a violência física propriamente dita.

“As instituições precisam reconhecer que as violências são sempre relacionais e que não existe um único fator que possa ser ‘atacado’ para que o ‘maus elementos’ sejam controlados ou afastados do convívio. A grande questão é produzir as bases de convivência no mesmo espaço-tempo institucional, garantindo melhores condições de trabalho e formação dos profissionais e transformando a escola num bom lugar para se estar”, aponta.

Por sua vez, Ieda Leal, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás (Sintego), acredita que é preciso resolver questões que estão fora da escola, como moradia e assistência social e promover colaboração para que os professores possam atuar em conjunto com outros atores.

“É normal que tudo ‘arrebente’ dentro da escola porque é lá que o aluno passa a maior parte do seu dia. Precisamos de um governo que entenda que a escola é mais um instrumento e não o único”, afirma, indicando que “militarizar” as instituições não resolve o problema. “A sociedade precisa repensar seu papel e a escola precisa dialogar com isso. Agora, que me desculpem os policiais, mas quem tem que atuar nas escolas, são os professores”, complementa.

Para Cristiano Novaes Rezende, docente do departamento de filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), militarizar as escolas é perder o espaço próprio para a produção da paz em nome da mera ausência de guerra, posto que as duas não devem ser confundidas. “Assim como a saúde não é a ausência de doenças, a paz não é a ausência de guerra. Enquanto o governo goiano atuar a partir do viés da erradicação da violência, não trabalhará propriamente pela promoção da paz, que encontraria nas escolas o âmbito ideal para ser gerada”, explica.

Reportagem: Ana Luiza Basílio, Danilo Mekari, Jéssica Moreira, Julia Dietrich, Pedro Ribeiro Nogueira, Raiana Ribeiro e Roberta Tasselli.

Arte: Vinícius Savron e Mayara Barbosa

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