publicado dia 28 de fevereiro de 2014
Se você paga, não deveria!
Pois o transporte não é mercadoria
É com alegria e espontaneidade que o refrão da marchinha Pula Catraca, escrita pelo mineiro Eduardo Macedo, mostra como as jornadas de junho estão vivas na memória e seguem estimulando a criatividade de artistas que veem no carnaval de rua um palco livre e enorme para a reivindicação do direito à cidade.
A composição ficou em segundo lugar na 3ª edição do Concurso de Marchinhas Mestre Jonas – perdendo apenas para o Baile do Pó Royal. Em comum, ambas representam o resgate das tradicionais marchinhas carnavalescas dos cidadãos de Belo Horizonte. E, mais do que isso, da cultura do carnaval de rua, já que anos atrás era possível contar nos dedos o número de foliões que pulavam carnaval na cidade – em 2014, são esperadas mais de um milhão de pessoas.
Belo Horizonte não é a única a ver o carnaval de rua renascer – capitais como São Paulo e Porto Alegre também presenciam o ressurgimento de blocos, cordões e milhares de pessoas fantasiadas ocupando as vias públicas. Aos poucos, essas metrópoles vão se somando aos locais onde a realização do carnaval de rua sempre foi uma tradição histórica, como Recife, e também às cidades onde os blocos voltaram a circular não faz muito tempo, como no Rio de Janeiro.
“Os blocos carnavalescos vêm ganhando força em decorrência da necessidade de se obter momentos de expressão e manifestação das relações sociais centradas na alegria”, pontua o geógrafo e pesquisador do FIT (Festas, Identidades e Territorialidades), Alessandro Dozena. “É a partir desses elementos que a população consegue voltar e se apropriar das ruas do bairro, das praças e de outros equipamentos públicos”, complementa.
BH: carnaval da resistência
O arquiteto Roberto Andrés não tinha o costume de pular carnaval. A partir de 2009, porém, Andrés e outros foliões realizaram desfiles diários – “sempre as mesmas 300 pessoas” – nas ruas de Belo Horizonte. Desde então, iniciaram um movimento que estimula o carnaval de rua na capital mineira.
Para ele, a prefeitura – que antes respondia a tais manifestações culturais com violência e proibições, chegando inclusive a impedir a circulação de pessoas fantasiadas no metrô – percebeu que não adiantava atrapalhar a festa. Aliás, foi a proibição de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, localizada na região central de Belo Horizonte, a razão para o surgimento do movimento de jovens e ativistas culturais em prol da ocupação do espaço público. Hoje, o bloco Praia da Estação reúne uma multidão que desfila da Praça até a prefeitura, onde é feita uma limpeza da fachada do prédio. Além de refrescar, a água lava as almas dos foliões.
Se em 2009 não havia movimento nas ruas durante o carnaval, em 2013 o número de blocos que espalharam o espírito carnavalesco pela cidade ultrapassou os 80. Neste ano, há 200 blocos inscritos. Andrés participa da organização do Tico Tico Serra Copo, bloco itinerante que “caminha por lugares marginais da cidade”.
“Nesse ano, vamos passar por um parque abandonado pela prefeitura e pela Vila Santana do Cafezal, comunidade que está sendo ameaçada de despejo”, afirma o arquiteto. “Temos muitos blocos envolvidos com o estímulo a uma prática mais democrática do espaço público.”
Um deles é o Bloco do Manjericão que, desde 2010, distribui ramos da planta para os frequentadores e ainda leva mudas para serem plantadas nos canteiros vazios por onde passa. Janaína Macruz, produtora cultural e uma das organizadoras do bloco, garante que dá pra sentir o cheiro do manjericão de longe.
O Manjericão é um dos 46 blocos signatários do abaixo-assinado que pedia à prefeitura transporte público gratuito ao menos durante os dias de carnaval. Com a omissão do órgão, os foliões decidiram se organizar e conseguiram um ônibus antigo emprestado e dinheiro para pagar um motorista e o diesel que será utilizado. Esse veículo levará foliões de um bloco a outro gratuitamente.
Este é um claro exemplo do que o geógrafo Dozena vê como potencial do carnaval: desafiar estruturas de poder consolidadas no espaço urbano. “Ele cria novos discursos quando subverte a ordem que orienta as práticas sociais homogeneizadoras e também quando resiste aos poderes que instituem e afirmam os territórios da disciplina, da administração e da burocracia”, aponta.
SP: culturas às ruas
Em 2014, as ruas de São Paulo serão palco para o décimo desfile do bloco afro Ilú Oba de Min, que celebra há dez anos a cultura afro-brasileira. Uma das integrantes do Ilú, Baby Amorim, admite que seria difícil manter o bloco vivo não fosse o crescimento das manifestações carnavalescas na cidade nos últimos anos. “São Paulo está proporcionando um carnaval democrático, onde as pessoas vestem fantasias e têm liberdade para curtir diversas linguagens, diversos estilos, cada um com um conteúdo”, afirma Baby.
O Ilú é um dos signatários do Manifesto Carnavalista. Lançado em 2012, o movimento teve a pretensão de unir população, poder público, mídia e grupos carnavalescos para discutir as demandas do carnaval de rua paulistano. Foi uma tentativa de deixar de lado os problemas do passado – como boicote, repressão, falta de estrutura e não reconhecimento – e atingir uma nova etapa de estímulos aos desfiles no espaço público. O objetivo, claro, é garantir alegria e cidadania aos foliões.
“Ao criar uma política pública para o carnaval, a prefeitura assumiu uma postura de realização e reconhecimento perante essa festa popular”, analisa José Vieira, integrante do Bloco Bastardo e um dos representantes do Manifesto.
Bloco Ilú Oba de Min | sexta-feira (28/2), concentração a partir das 19h30 no Viaduto Major Quedinho. No domingo (2/3), o bloco se concentra às 14h em frente à Cia. São Jorge de Variedades, localizada na rua Lopes de Oliveira, 342, em São Paulo (SP).
Bloco Bastardo | durante o carnaval, o cortejo sairá sempre da Praça Benedito Calixto, em São Paulo (SP), nos seguintes horários: sábado às 18h, domingo às 15h, segunda e terça às 19h.
Para o jornalista Marcelo Varella, que também é compositor carnavalesco, “São Paulo está se revelando e mostrando a sua cara, repleta das mais variadas culturas que compõem a cidade e o estado, onde os nordestinos dão a sua contribuição cultural”.
De acordo com uma estimativa feita pela prefeitura, o total de blocos que percorrerão as vias da cidade se aproxima dos 200.
RJ e PE : tradição
O recifense Varella, um dos fundadores do Bloco da Saudade, criado em 1974 e que até hoje desfila pelas ruas de Olinda, acredita que o carnaval de rua traduz o sentimento de um povo, “tanto hoje como nos seus primórdios, que datam do final do século 18”.
E vai além: “a rua pede o povo, o povo sem a rua não é quase nada e vice-versa. Essa simbiose existente entre o povo, o asfalto, o suor, a poeira, a cerveja e a cachaça é o que constrói o universo popular, onde se conhece as pessoas mais diferentes possíveis”.
Para ele, durante o carnaval, as ruas passam a ser a extensão das casas e as casas viram a extensão das ruas. “Ali está a felicidade, o sorriso e a alegria do povo, o retrato dele espalhado e sendo refletido pelo sol”, responde em versos o experiente folião.
Sua cidade, Recife, abriga um dos carnavais de rua mais tradicionais do Brasil e do mundo. “Nós já sofremos bombardeiros de outras linguagens culturais, como samba carioca e axé baiano, e estamos resistindo com o frevo até hoje”, relembra Varella, que acredita estar no eixo Recife/Olinda o carnaval com maior diversidade cultural do planeta. “Em um mundo globalizado, mantemos viva uma cultura regional. É isso que nos dá fôlego e prazer de sair cantando e dançando pelas ruas.”
Ao lado da capital pernambucana, a cidade do Rio de Janeiro é outro exemplo de tradição quando o assunto é o carnaval livre e popular nas ruas. Mas essa realidade também viveu um grande hiato durante os anos da ditadura civil-militar. A presidente da Sebastiana, associação independente dos blocos de rua da cidade, conta que, naqueles tempos, “as pessoas sumiram das ruas e o carnaval ficou restrito aos clubes de elite.”
É difícil, porém, calar os foliões por muito tempo. “Aos poucos eles foram tomando gosto pela rua de novo”, afirma. Segundo ela, entre 1999 e 2002 os blocos de rua eram menores e mais anárquicos, reunindo no máximo 50 pessoas. O movimento foi crescendo até chegar 2008, quando houve um boom do carnaval de rua.
“O que vemos hoje não é apenas um afã de brincar um carnaval, e sim um afã de por seu próprio bloco na rua. Esse é o caminho do carnaval do Rio de Janeiro”, comemora, sem deixar de alertar para o surgimento de blocos comerciais que, segundo ela, podem mudar a cara do carnaval. “Esses blocos nascem em escritórios que têm o intuito de ganhar dinheiro, e não da espontaneidade dos moradores de uma cidade”, adverte.
Tico Tico Serra Copo | domingo (2/3), a partir das 14h, na Praça do Cardoso, em Belo Horizonte (MG).
Bloco da Praia | sábado (1/3), a partir do 12h, na Praça da Estação, Belo Horizonte (MG).
Bloco do Manjericão | horário e local de saída ainda serão divulgados, Belo Horizonte (MG).
Bloco da Saudade | domingo (2/3), concentração às 16h na Praça 12 de Março, em Olinda (PE); na segunda e terça-feira (3 e 4/3), o desfile sai da Praça Maciel Pinheiro e vai até o Bairro do Recife, também a partir das 16h. Ainda na terça, o bloco sobe ao palco da Praça de Boa Viagem, às 18h, em Recife (PE).
Cidade para poucos
Embora tenham estilos diferentes – que variam entre frevo, marchinha, samba, axé –, o que o carnaval de rua dessas cidades têm em comum? A percepção de que a festa deve ser aberta para todos os foliões que tenham vontade de participar, seja cantando, pulando, se fantasiando ou tocando algum instrumento.
Há lugares, porém, que transformam uma brincadeira democrática em folia de poucos. Em Salvador, por exemplo, há trios elétricos que vinculam a compra do abadá à possibilidade de ver de perto o carnaval. Em pleno espaço público, aqueles que não podem pagar acabam ficando de fora do cordão.
“Carnaval é participação, é espontaneidade, vai quem quer, quem não quer assiste na televisão, quem quer vai na frente, vai atrás, vai do lado. Isso chama-se loteamento do carnaval, está à venda o sentimento de um povo para uma indústria riquíssima que o explora para poder sorrir”, indigna-se o compositor Varella. Rita Fernandes provoca: “No Rio não há corda nem abadá: aqui, o carnaval é uma mistura de tribos”.
Roberto Andrés defende que, ao ser habitada por pessoas, as ruas e avenidas tornam a cidade livre e tira o cinza das metrópoles. “O mecanismo da cidade é muito obcecado por produção e trabalho. Durante o carnaval, a própria cidade vira uma estrutura para o lazer, para o encontro, para a troca, uma possibilidade de que os seus mecanismos funcionem direcionados ao prazer da população.”