publicado dia 20 de março de 2014
“A arquitetura e o urbanismo surgiram na América Latina dois mil anos antes da cerâmica. Antes de fazer qualquer coisa, aprendemos a fazer arquitetura.” A afirmação é de José Canziani, professor da Universidade Católica do Peru, arqueólogo com formação em arquitetura e urbanismo e docente em preservação de monumentos, a respeito do legado inca para as cidades contemporâneas.
José Canziani esteve em São Paulo para o evento “A Cidade e o Jovem”, promovido pela Opção Brasil. A proposta dos encontros é reunir experiências internacionais para estimular a reflexão de arquitetos, estudantes, gestores e interessados em transformar as cidades atuais.
O povo Inca construiu um imenso império nos tempos pré-colombianos. De Santiago, no Chile até Quito, no Equador, encontram-se ainda hoje resquícios de estradas, sistemas de irrigação e cidades planejadas. Transformaram territórios áridos em terras fertéis para o cultivo de subsistência. E os ecos deste tempo, apesar de abafados por séculos de dominação colonial, ainda podem ser captados por ouvidos atentos.
É o que enseja Canziani. “Os primeiros habitantes de nosso continente desenvolveram uma forma de lidar inteligente com o meio. Por mais que pareça paradoxal, é algo que nós, com nosso conhecimento, as vezes não estabelecemos corretamente”, afirma em seu livro “Cidade e Território nos Andes”.
Para ele, é necessário olhar para os primeiros povos como agentes e protagonistas do processo civilizatório das Américas, assentando a fundação do que veio depois. Com isso em mente, Canziani apontou seis aprendizados possíveis para as cidades de hoje a partir das construções incas. Confira abaixo:
1) Estreita relação entre cidade e território
As cidades incas foram construídas por um povo regido por imperadores, dentre os quais, o mais famoso foi Pachacutéc, que também tinha um grande interesse por arquitetura. Ordenou a reconstrução de Cusco, capital inca, que durou 20 anos e mobilizou milhares de homens e mulheres. O esforço gigantesco construiu uma cidade que se relacionava com seus rios e montanhas, entrelaçando territórios e paisagens distintas num desenho capaz de contemplar vocações urbanas manufatureiras e agrícolas. O centro, no entanto, teve vida curta com a chegada dos espanhóis cerca de cinquenta anos após sua construção.
“Nós, quando construímos nossa modernidade, olhamos para frente sem olhar para atrás. Os instrumentos que fizeram tudo isso eram simples. Um pau para cavar, uma bolsa de pano, eram instrumentos rudimentares. A tecnologia está em transformar o território em uma ferramenta, usando as tecnologias essenciais da cultura inca: terra, pedra e materiais orgânicos”, relata Canziani.
2) As cidades fazem parte de uma rede territorial que promove o desenvolvimento
A cidade de Huanco Pampa, localizada à 3.800 metros do mar, manteve-se conservada, uma vez que os espanhóis não se aclimataram ao ambiente montanhoso. Localizada estrategicamente com rotas que ligavam ao litoral pacífico e à floresta amazônica, ela era um dos pontos de passagem do império e contribuía para a ligação de trabalho, informação e recursos. Servia como descanso para os viajantes que percorriam os mais de 40 mil quilômetros de rotas e o Caminho Inca, uma trilha que conectava toda essa civilização, do sul do Chile até o Equador. As cidades, nesse sentido, concentravam cultura, transmissão de informação, conhecimento e possibilidade de produção de manufaturas a partir dos recursos naturais colhidos pelas comunidades agrícolas.
3) Cidades sustentáveis, vinculadas a paisagem, ao clima e a geografia, que mesclam o ambiente urbano e rural.
A “domesticação do terreno”, para os incas, caminhava junto com a construção das cidades. O plano urbano levava em conta os caminhos dos rios e diversas intersecções entre fronteiras agrícolas e urbanas. Todo o meio ambiente natural era levado em consideração em sua construção. Os depósitos de alimentos em Puna, por exemplo, eram construídos de forma a manter uma temperatura constante de 5 graus em seu interior, usando apenas pedra, barro e o clima do local. O sol servia como plano mestre da cidade, seu desenho e formato eram reproduzidos pelos arquitetos indígenas, levando em conta a iluminação e o calor natural, baseado no binômio “irradiar e concentrar”.
4) Cidades que dispõem de dispositivos de articulação entre espaços abertos e públicos e os privados.
O ponto central do planejamento urbano inca eram as praças. A praça original de Cusco, antiga capital do império, era 5 vezes maior do que a atual. Além de proporcionar uma relação maior dos habitantes com a paisagem ao redor, as praças eram cercadas pelas Kallankas, edíficios enormes, vazios e multifuncionais, que abrigavam as pessoas quando havia condições climáticas adversas, serviam como espaço de trabalho coletivo e ponto de ligação entre espaços públicos e privados. “O mundo ocidental nos impôs praças limitantes, rígidas, que não permitem articulações entre cidades e praças, não têm essa permeabilidade”, pondera Canziani.
5) Cidades que admitem a diversidade social e cultural
Canziani afirmou que recentemente começou a estudar os vestígios de construções “paralelas” ao redor de uma cidade inca. Para ele, o que poderia significar algo parecido com uma “favela” antiga, deveria ser, na verdade, uma forma de adaptação da cidade ao seu entorno agrícola. Ou seja, muitos camponeses não abdicavam do seu modo de vida e construíam nos arredores da cidade edificações que respondessem às suas necessidades. Para o professor, isso é símbolo de uma cidade diversa, antes de ser uma cidade marginal. Dentro da cidade, haviam as “kanchas”, quarteirões, ruas e casas de uso transitório para os cidadãos, com amplos pátios e áreas comuns abertas em cada quadra.
Ainda assim, a cidade era cindida entre os Hanan (cidade baixa) e o Huarin (cidade alta). “As relações sociais e de parentesco se transmutam na estrutura urbana. Há bairros de trabalhadores da mita (trabalho escravo), responsáveis por construir a cidade, transformar produtos agrícolas, ou seja, não há que deixar de lado o contexto histórico, era um estado autoritário e centralizado, que impunha ordem. Mas faziam suas coisas com vínculos de reciprocidade, respeitando diversidade e assimilando-os ao Estado, de acordo com a cosmovisão andina”, analisa o professor.
6) Cidade como espaço de representação, socialização e festa. A cidade deve ser parte do bom viver
Para o professor, o espaço urbano inca sempre esteve intimamente ligado à realização de rituais de celebração e comunhão. No desenho das cidades, a existência de praças enormes, templos e edíficios – como as kallankas – revelam a importância da socialização, das festas e da representação do conjunto de valores de um povo. Essa dimensão deve ser, sempre que possível, restaurada. As cidades, desde os tempos mais antigos, também foram feitas para dançar.