publicado dia 29 de janeiro de 2014
Por Paula Sacchetta
O Brasil está cercado de países que prestaram contas de seu passado de repressão. Diferentemente de nós, Chile, Argentina, Uruguai e outros, transformaram os porões de suas ditaduras em museus e centros de memória. Segunda-feira passada (27/01), 29 anos depois do fim do regime militar (1964 – 1985), finalmente o prédio onde funcionou o DOI-Codi paulista, um dos maiores centros de repressão e tortura, foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, o Condephaat.
Paula Sacchetta é jornalista e diretora do documentário Verdade 12.528, filme que trata da importância da Comissão Nacional da Verdade, através de depoimentos de vítimas da repressão, ex-presos políticos e outras pessoas afetadas direta ou indiretamente pela ditadura civil e militar entre 1964 e 1985.
O processo, aprovado por unanimidade, foi proposto ainda em 2010 por Ivan Seixas, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). No ano que marca os 50 anos do golpe militar, o tombamento representa uma vitória.
Mas afinal, qual a importância de se tombar uma casa de horrores? Em um país onde agentes do Estado que cometeram as mais graves violações de direitos humanos como desaparecimentos forçados, assassinatos e tortura estão impunes e nunca foram julgados, o ato é de extrema importância, é educativo, pedagógico. Nossa Lei de Anistia, de agosto de 1979, serviu para anistiá-los e deixá-los intocáveis até os dias de hoje. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionou contra a revisão dessa mesma lei.
Sendo assim, no país da impunidade, jovens e adultos devem ter, no mínimo, a possibilidade de conhecer seu passado recente. Esses espaços precisam e devem ser todos transformados em museus, espaços culturais, com atividades educativas sobre o tema da ditadura. Precisamos ensinar à toda a população, em especial aos mais jovens que não viveram aquela época, que o poder não pode ser usurpado por pequenos grupos e que cidadãos e cidadãs não podem ser submetidos a regimes de exceção.
Para quem diz que a ditadura é “coisa do passado” ou “página virada”, podemos dar alguns exemplos extremamente didáticos:
Nos anos 1960 e 1970, opositores ao regime militar eram barbaramente assassinados pelas forças de repressão e no boletim de ocorrência constava apenas que haviam “resistido à prisão”. Nos anos 2000 assistimos à morte de jovens, praticamente todos os dias, com a mesma desculpa, que agora tem nome, os chamados “autos de resistência”. Ou seja, jovens “suspeitos” – que não são mais militantes de esquerda, mas bastando serem negros, pobres ou morarem na periferia – “resistem à voz de prisão” e, por isso, podem ser assassinados.
Em janeiro de 1971, o então deputado Rubens Paiva dirigiu seu fusca até a sede do DOI-Codi do Rio de Janeiro, para “prestar depoimentos”. Ele nunca mais foi visto. Em 14 de julho de 2013, o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza é levado em um carro da polícia “pacificadora” para o mesmo procedimento e também desaparece. Soa familiar? Alguma coisa em comum? A pergunta de 43 anos da ditadura “cadê Rubens Paiva?” ecoa hoje em nossa democracia mambembe, atualizada para a era digital #cadeoamarildo?”.
No prédio do antigo DOI-Codi, agora tombado, localizado à rua Tutóia nº 921, estima-se que passaram mais de 6.000 pessoas, que foram presas e torturadas, das quais pelo menos 50 foram assassinadas. Hoje, nesse mesmo prédio funciona a 36a Delegacia Policial. Delegacia de Polícia Militar, a mesma polícia, de um só Estado, São Paulo, que em cinco anos matou nove vezes mais que toda a polícia dos Estados Unidos.
O deputado Adriano Diogo, hoje presidente da Comissão Estadual da Verdade, um dos presos e torturados no local, afirmou sobre isso: “é como ter uma fábrica de gás em cima de um campo de concentração”.
Já está na hora dessa “página do passado” ser devidamente lida e esclarecida pra que fique de uma vez por todas no passado. Não se pode aceitar que em uma democracia episódios do passado se confundam com os do presente, em uma mistura sombria, da história repetida como tragédia.
Nesse sentido, lugares de memória são fundamentais para a educação, para a construção de uma democracia de fato, para a efetividade dos direitos humanos e, também, como reparação simbólica para as vítimas e familiares de vítimas. O que vimos até agora foi a lógica do esquecimento e do aniquilamento de nossa história recente. Ivan Seixas afirmou em entrevista que “se você não vê, você não lembra. Se não lembra, parece que nem existiu”.
Assim, com o tombamento do prédio, estamos afirmando que a sociedade como um todo não quer e não deve esquecer o que aconteceu no passado, para que isso nunca mais se repita.
(Fotos de Rodrigo Alencar com placas do Parque da Memória das Vítimas do Terrorismo de Estado, em Buenos Aires, Argentina.)