publicado dia 24 de janeiro de 2014
Ao atravessar o Elevado Costa e Silva, a Avenida Angélica, artéria principal de Higienópolis, vira Alameda Eduardo Prado e troca de mão. Seguindo o curso contrariado da via, chega-se até um trilho de trem da Companhia de Transportes Metropolitanos de São Paulo, que passa embaixo de um viaduto.
Leia mais
Conheça outras iniciativas da Favela do Moinho
Favela do Moinho realiza campanha para construção de parque público
Após apitos, depois do trem, a cancela se abre. Atravessando trilhos que te convidam ao tropeço, é aberto o sinuoso caminho da favela do Moinho, a última favela do centro de São Paulo. Com 25 anos de existência, ela abriga atualmente cerca de 500 famílias – onde já estiveram 1.200. Em 2011 e 2012, dois incêndios destruíram centenas de casas e mataram um número até hoje contestado de pessoas: a imprensa noticiou dois, os moradores dizem que foram até 30. Apesar da falta de laudos oficiais, esses incêndios são apontados pelos moradores como criminosos, e deixaram um recado claro: em São Paulo, quem teima queima.
Caminhando, sempre à esquerda, encontra-se um terreno rebaixado, de piso de azulejos vermelhos, ladeado por muros e desníveis. Nele, crianças e jovens de férias se jogam numa piscina inflável e se refrescam da estufada tarde paulistana de janeiro.
Observada por prédios altos e pelas velhas construções industrias, lá está o embrião do Parque Vermelhão, uma área cimentada de cerca de 100 m² que, mesmo não finalizada, serve como uma fonte de lazer adaptadas da comunidade. O Parque fica ao lado da Casa Pública, uma casa de madeira que abriga reuniões, atividades e Caio Castor, 30, morador da favela há dois anos e membro do Coletivo Comboio, um projeto de pesquisa e intervenção urbana em comunidades, que atua no espaço do Moinho.
O local escolhido para a construção do Vermelhão e da Casa Pública foi um dos lugares incinerados pelo fogo. Seus azulejos contam história: era o chão de fábrica do Moinho Matarazzo, que lá funcionava. Virou uma área de brincar das crianças, um espaço vazio. Adjacente às queimadas, serviu de depósito de entulho. Hoje desentulhado, volta a ser um espaço ocupado pelos moradores, que trabalham comunitariamente na sua construção. Quando a reportagem do Portal Aprendiz chegou lá, estavam sendo assentados velhos tijolos do Moinho, na rampa que dá acesso ao pátio, sobrepondo histórias e histórias.
Memórias do fogo
Não há no Moinho quem não tenha o gosto de fumaça no céu da boca. Quando a moradia de madeira é o combustível e o reagente são anos de descaso do poder público somados a uma das áreas que mais se valoriza na cidade – e que está em disputa judicial (entre os moradores por usucapião, a prefeitura e uma incorporada) -, as memórias da chama habitam as preocupações cotidianas dos que se foram de vez, dos que aguardam a vez e dos que permanecem. “É um trauma coletivo”, relata Caio Castor, “eles sempre sonham com isso”.
O movimento conseguiu, desde os últimos incêndios, avançar em medidas de prevenção. Alguns moradores fizeram cursos de bombeiro civil e há poucos meses um incêndio foi controlado nos primeiros minutos. Além disso, em agosto do ano passado, um muro construído pela gestão de Gilberto Kassab (PSD), que dividia a favela em dois e impedia, segundo laudos técnicos, a entrada de caminhões de bombeiros e estabelecimento de rotas de fuga, foi derrubado – literalmente – por moradores em ato.
Mas ainda falta muito. Uma das principais brigas dos moradores da região é a regularização da rede elétrica e de saneamento básico, construídas artesanalmente pela necessidade. Promessa de campanha de Fernando Haddad, lugar de visitação na época da eleição, o Moinho aguarda, mas o faz se refazendo.
“Uma coisa é você passar um trator onde tem um monte de barraco velho. Outra coisa é passar onde tem gente, tem planta, tem tijolo, tem construção, tem trabalho, tá cuidado”, afirma Castor, que aposta na organização comunitária em torno do espaço e na criação de um projeto popular de urbanismo como um centro aglutinador na região.
“É a questão do fazer, de colocar o corpo em ação, jovens, crianças, adultos. As pessoas daqui sabem mais que um arquiteto. E quanto mais a galera trabalha junto, mais vão se unindo em torno da mesma causa, pensando no espaço. Passa pela construção de espaços coletivos, de reforçar esse sentido”, analisa Castor, interrompido por uma vizinha que trouxe uma trouxinha com o jantar. “É pra gente?”, pergunta. “Para os dois”, responde. “Deus lhe pague em dobro”, conclui.
Flávia Lobo, sua parceira na Comboio, lembra que após um dia destinado ao plantio, diversos moradores começaram a buscar mudas para suas casas. A intervenção, singela, despertou novos espaços de sociabilidade, em portas de casas. “É impressionante como é forte, contagiante”, declara Flávia, que agora trabalha na construção de um dragão de concreto armado que servirá como brinquedo para as crianças no Vermelhão. Uma criatura mítica que solta fogo pelas ventas, num Moinho tantas vezes destruído por chamas, não deixa de passar uma imagem de transformação de sentidos.
Vermelhão
André Moreira, 15, é um dos mais empenhados na construção do parque, apesar de ser mais velho que as crianças que lá estão brincando. “Eu queria fazer alguma coisa, deixar o lugar mais bonito, para poder assistir uns filmes na telona, se divertir. É importante estarmos juntos, para ajudar o próximo. E isso aqui tá ficando até com cara de parque”, afirma, encabulado.
Enquanto vai tomando forma, o Vermelhão mostra suas potencialidades. O paredão ao fundo já foi pintado de branco e servirá de tela para projeções de filmes. Os declives do terreno são aproveitados como futuras arquibancadas. O espaço também poderá servir como teatro de arena, playground e lugar para assembleias e reunião. A Casa Pública, ao lado, tem funcionado como sede para reuniões, uma vez que a Associação de Moradores do Moinho nunca contou com sede própria.
No entanto, todo este esforço não vem do investimento de uma ONG ou de um orgão público. Após algumas experiências com movimentos de moradia, Caio resolveu morar no Moinho. Hoje com 30 anos, ele havia abandonado sua carreira na fotografia para tentar encontrar alguma coisa que fizesse sentido para si e para o mundo.
Passou meses apenas vivendo ali, conversando com as pessoas, jogando bola, buscando brechas e observando as incursões intimidadoras das polícias. Desconfia bastante do conceito de “mutirão” e de “ajuda” e sabe quem é e de onde vem: “A gente é branco demais, sabe?”, observa enquanto olha o Vermelhão. “Aqui não tem projeto express, tudo aconteceu fazendo errado, tentando o certo. Levou muito tempo para conhecer. Eu sei que tenho o que ensinar, mas tenho muito mais o que aprender”, conta.
Sem financiamento e com independência, a construção do parque depende muitas vezes de doações de materiais, ferramentas e dinheiro. “Com 600 reais a gente faz um monte de coisa”, afirma Caio, enquanto recebe uma caixa de pregos. Quem quiser ajudar pode fazer contatos pelo e-mail projetocomboio@gmail, pelos telefones (11) 97229-1503 (Caio Castor) e (11) 99740-5409 e aproveitar para conhecer o trabalho, os moinhos, os quixotes, os pixotes, os dragões e todos aqueles e aquelas que enfrentam a última tempestade no centro do furacão.
(Fotos de Pedro Ribeiro Nogueira)