publicado dia 1 de dezembro de 2020
Mudar o nome da escola: um processo participativo de reescrita da História
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 1 de dezembro de 2020
Reportagem: Cecília Garcia
Carolina Maria de Jesus passou boa parte de sua vida na região do Canindé, zona norte de São Paulo. Embora sua produção literária tenha começado antes da migração de Sacramento (MG) para a capital paulista — a escritora escreveu poemas, romances, provérbios e peças teatrais ainda não publicadas —, foi a partir das vivências na comunidade paulistana que ela se inspirou a escrever Quarto de Despejo, sua obra mais reconhecida. Durante os últimos quatros anos, a EMEF Infante Dom Henrique, localizada no território onde viveu Carolina Maria de Jesus, tenta mudar o seu nome para homenagear a autora.
Para a comunidade escolar, é imprescindível reescrever a história da sua escola — e também da comunidade que a circula — a partir de uma figura da qual possam se orgulhar. Isso porque ao contrário de Bitita, como Carolina Maria de Jesus era carinhosamente conhecida, o Infante Dom Henrique é execrável personagem da história brasileira, responsável pelo tráfico de pessoas escravizadas entre Brasil e o continente africano.
“Carolina Maria de Jesus está no nosso currículo todos os anos e tem um valor grande para a comunidade onde a escola está. É inclusive uma comunidade migrante, do mesmo jeito que Carolina foi”, relata Cadu Fernandes, coordenador pedagógico da EMEF e um dos que tenta protocolar a mudança de nome.
Foram três tentativas de mudar o nome da escola, e as duas primeiras aconteceram via Câmara dos Vereadores. O primeiro veto, de 2017, aconteceu porque já havia uma escola com o mesmo nome. Em 2018, a escola protocolou uma tentativa de se chamar Escritora Carolina Maria de Jesus, mas foi novamente vetada na alegação de que duas escolas públicas não podem homenagear a mesma figura — mesmo que outras escolas já tenham conseguido fazer a mesma mudança, como a EMEF Dr. Sócrates Brasileiro.
Na última tentativa, via Secretaria Municipal de Educação (SME), a escola optou pelo nome Espaço de Bitita. Não só o pedido foi barrado, como a escola recebeu a notícia de que SME havia pedido um parecer do Arquivo Histórico Municipal, que se manifestou contrário à decisão alegando que o nome da escola era tradicional na cidade.
“Não ser reconhecido pelo corpo social da cidade é uma tristeza grande. Nós até jocosamente temos nos anunciado como EMEF Assassino e Sequestrador Infante Dom Henrique, para ver se pega mal, se mostra a urgência que é a mudança de nome”, conta Fernandes.
Em adição à terceira rejeição, no fim de novembro a escola recebeu a notícia que o prefeito reeleito Bruno Covas (PSDB) renomeou 12 CEUs (Centro de Educação Unificado) com nomes de personalidades negras. O CEU Carrão, ainda em construção, foi renomeado CEU Carolina Maria de Jesus, o que invalidaria os argumentos impeditivos da mudança de nome da escola.
Procurada na última quinta-feira (26/11), a Secretaria Municipal de Educação pediu detalhamento da pauta por e-mail para averiguação. Até o fechamento desta matéria, não respondeu.
Mudança de nome é direito da escola e da História a serem reescritas
A maioria das figuras históricas que dá nome à escolas, ruas e outros espaços públicos não é escolhida pela população, ou nem ao menos reconhecida por ela. Mas dos nomes conhecidos, muitos carregam sem reflexão papéis determinantes nos inúmeros genocídios e epistemicídios que formaram o Brasil. É o caso da Rodovia dos Bandeirantes, que liga a capital de São Paulo a seu interior, ou a estátua de Joaquim Pereira Marinho, traficante de pessoas escravizadas, que fica no centro de Salvador (BA).
“Nomes, praças, monumentos, ruas, tudo isso tem a ver com a ideia de lugar de memória, que é uma forma de comemoração pública. Quando espaços públicos são nomeados como ditadores, escravagistas, isso é feito com objetivo, com o poder que essa história hegemônica ainda tem. Mas esses lugares podem e dever apoiar nossa consciência histórica”, defende a mestre em ciências sociais Patrícia Oliveira, que desenvolveu itinerários por territórios negros de São Paulo com o Coletivo Pisa.
É para qualificar a discussão da ditadura brasileira como um dos momentos mais condenáveis da história do país que o movimento Ditadura Nunca Mais (organizado pela CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) mantém a campanha Mude o Nome da sua Escola. Mais de 900 escolas no Brasil têm um patrono relacionado à ditadura, e a campanha mostra como é possível fazer a troca.
Em paralelo, movimentos negros e antirracistas sempre questionaram monumentos que glorificam figuras relacionadas ao período escravagista. No ápice dos protestos antirracistas deste ano, houve retirada e derrubada de alguns deles. A deputada Erica Malunguinho (PSOL) protocolou um projeto de lei pela retirada das estátuas de espaço público de São Paulo e armazenamento delas em museus.
“Mudar o nome de espaços com relação ao tráfico e a escravidão pode nos ajudar a pensar no legado desse crime — que é o pilar da construção desse país — e nos encoraja a pensar quais foram as condições estruturais, limites, contextos e autorizações que nós como sociedade admitimos para que esses crimes fossem possíveis”, continua Oliveira.
“Ao mesmo tempo, homenagear escolas com nomes como Carolina Maria de Jesus ajuda na reconstrução da história das vítimas diretas e indiretas desses processos. Porque ser negro não é somente estar conectado a uma história de escravização. É a de estar ligado a uma potência cultural, resistência social, econômica e política e essa parte do legado é sempre opacizada por uma ideia nociva de democracia racial”, adiciona.
O caso da escola Nelson Mandela
Há seis anos, a EMEI Nelson Mandela, no bairro do Limão (SP), também mudou de nome para refletir valores e currículo. Antes chamada EMEI Guia Lopes, por muito tempo a comunidade não soube quem era esse patrono. Quando se dispôs a descobrir, soube-se que ele foi um bandeirante e desbravador do Brasil no período colonial.
Na mesma época, a escola estava fazendo fazendo um trabalho sobre a vida de Nelson Mandela, ativista e ex-presidente da África do Sul que lutou contra o apartheid. Crianças e comunidade escolar sugeriram que ao invés de se chamar Guia Lopes, a escola poderia adotar como patrono o ativista que tanto inspirava seu currículo, fortemente baseado na educação antirracista e nos saberes afro-brasileiros e indígenas.
“A nossa escola é exemplo vivo de como é importante ter um patrono que represente os ideais do espaço educativo”, relata Cibele Racy, ex-diretora da EMEI e que fez parte da comitiva pela mudança do nome. “Essa mobilização para dar um patrono que unisse significado e significante, a comunidade em torno do que ela pudesse representar, como valor de território, foi fundamental. A escola ganhou corpo e alma. Mudou a relação da escola com a comunidade”.
Para Oliveira, movimentos como o da EMEI Nelson Mandela ou da EMEF Espaço de Bitita, como ela sonha ser chamada, dizem de uma sociedade que não tolera mais espaços físicos que não reflitam sua complexidade histórica e identitária. E que isso tem a ver com a participação social, o que num ambiente de defesa da democracia como a escola deve ser largamente incentivado:
“Tem uma coisa importante acontecendo: o Estado tendo intervenção da sociedade civil e sendo atravessado e impactado por essa perspectiva. É uma demanda da sociedade que está dizendo que precisa mudar o nome e isso tem porquê. São as narrativas negras pautando avanços democráticos, nós falando por nós, acessando a universidade, estando em cargos decisórios, somos nós impactando as decisões do Estado. Não é uma vitória terminada porque nunca é, já que a memória é um campo de disputa, mas já é possível notar que há uma ampliação e variedade de sujeitos, tópicos, outras camadas de paisagem, outras vozes para a discussão sobre espaços públicos.”