publicado dia 27 de novembro de 2020
Redução de danos por meio de arte e cultura: conheça a campanha Biricada
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 27 de novembro de 2020
Reportagem: Cecília Garcia
É possível falar sobre o território conhecido como Cracolândia*, no centro da capital de São Paulo, a partir de suas vulnerabilidades. Ali se materializa o abandono do Estado e as frágeis políticas públicas que atuam sobre a população local, misto de pessoas sem situação de rua, usuários de substâncias psicoativas e moradores da região.
*Cracolândia é um termo em disputa: O neurocientista Carl Hart, atuante no combate à política de drogas no Brasil e no mundo, critica o uso da expressão, argumentando que ela reduz todo um espectro de população à questão do crack. Para coletivos que atuam na área, como “A Craco Resiste”, houve uma apropriação do termo cracolândia pelas pessoas da comunidade e isso tem que ser levado em conta.
Mas também é possível e necessário reconhecer que além das violações de direito que acontecem neste território, há uma produção de vida, arte e cultura. É esse o trabalho do coletivo Birico.Arte, grupo que articula geração de renda e redução de danos a partir da produção e venda de arte.
“Surgimos a partir das demandas do território, das ideias e ânsias de alguns artistas que são ou estão nele, seja com sua própria arte ou militância”, conta Marina Barbosa, produtora da Birico.Arte e participante no coletivo Tem Sentimento, que trabalha com geração de renda e apoio à mulheres cis e trans.
Do coletivo, nasceu a campanha Biricada. Artistas venderam prints de suas obras, arrecadando um fundo monetário que foi dividido igualmente entre os artistas – independentemente de quantas obras cada um vendeu – e para organizações que atuam no território, com o supracitado coletivo de Marina, o Pagode na Lata, É De Lei, Cia. Mungunzá e outros.
“A ideia era, além das doações para a Cracolândia em si, também ajudar artistas, que se encontram em uma situação complexa desde o começo da pandemia”, explica Sol Casal, uma das artistas participantes.
Residência Artística Social: reconhecendo as potências da região
Os princípios da campanha de arte Biricada são ancorados na redução de danos, que constituem um conjunto de práticas e políticas voltadas para integralidade de sujeitos e reduzir as consequências adversas para saúde, sociais e econômicas do uso de drogas lícitas e ilícitas.
Na primeira edição, alguns moradores do território foram contemplados com um auxílio-moradia, inspirada na política canadense Housing First, onde pessoas em situação de vulnerabilidade recebem ajuda de custo e um espaço de moradia para facilitar sua ressocialização.
Para a segunda edição, Marina explica que a ideia é expandir o auxílio-moradia para seis pessoas da região, que serão contempladas no primeiro semestre de 2021: “Além da moradia, vamos usar o espaço do Teatro de Contêiner para criar uma pequena escola livre de artes, aberta não só aos contemplados mas também a qualquer pessoa. A contrapartida para que esses artistas recebam o auxílio-moradia é que eles topem fazer as atividades da residência artística, que terá aulas de marcenaria, pintura, serigrafia, história da arte e literatura entre outras”, conta Marina.
A ideia não é, contudo, construir uma residência artística que suponha o que é melhor para as pessoas que habitam no território, mesmo porque ali se produz muita arte e ela é o referencial. São nomes como Badaross, artista plástico que vende suas pinturas na calçada da Cracolândia; MC Kawex, que compõe rap sobre a região; ou o poeta Fábio Rodrigues, que já morou no território e hoje milita por políticas públicas de qualidade.
“Reconhecer a potência desse lugar vem da experiência de conhecê-lo. Quem não tem essa vivência tem uma visão deturpada que a mídia e o Estado fazem questão de passar, como se as pessoas não tivessem capacidade de fazer nada. O que a Cracolândia tem são pessoas diversas, desde usuários, pessoas em situação de rua, artistas, trabalhadores, que estão circulando, produzindo, tentando viver”, complementa Casal.
Reconhecimento da cultura como parte da política de redução de danos
As ações do Birico.Arte e que culminam na Biricada são baseadas em um trabalho duradouro de arte e cultura no território. Principalmente na pandemia, quando a já escassa atuação do Estado arrefeceu, equipamentos que atuam com cultura tiveram um papel primordial na garantia de direitos básicos das pessoas da região.
A Cia. Mungunzá foi um deles. Há quatros anos realizando um trabalho teatral no espaço Teatro do Contêiner, sempre aberto à comunidade, os artistas optaram por migrar suas atividades artísticas para ambientes digitais e usar a sede para cozinhar, distribuir marmitas, kits de higiene e piteiras para os habitantes locais.
“O nosso papel é olhar o território pautado nas humanidades. Nos utilizar da nossa força para denunciar a violência em diversas esferas do Estado e exigir políticas públicas que trabalhem em uma lógica de entender a subjetividade de cada pessoa. O Teatro do Contêiner, assim como a Birico, utilizam seus manifestos artísticos como redução de danos”, elucida Marcos Ferreira, artista da companhia.
*Foto de capa por Jornalista Livres, em cobertura do Blocolândia, bloco de carnaval organizado por coletivos que atuam na região da Cracolândia em 2020.