publicado dia 18 de agosto de 2020
Fundamentais nos territórios, agentes comunitários de saúde são subaproveitados e expostos e durante a pandemia
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 18 de agosto de 2020
Reportagem: Cecília Garcia
Atendente de Lagoa de Dentro, comunidade rural de 300 habitantes do município de Itatira (CE), o agente comunitário de saúde Expedito Cruz Bonfim reconhece a casa de seus vizinhos pelo café. “A gente é tão próximo da comunidade que, quando queremos tomar um café mais amargo ou chegado, sabemos aonde ir. Sabemos quem tem criança, quem é hipertenso”, relata o agente, que exerce sua função há 19 anos.
O trabalho de um agente comunitário de saúde (ACS) depende desse conhecimento territorial e interpessoal, como corrobora Rodrigo Rodrigues Costa, presidente do Sindicato de Agentes Comunitários da Região Metropolitana de São Paulo (SINDACS).
Os agentes comunitários de saúde fazem parte da estratégia federal Saúde da Família. Os municípios não são obrigados a tê-los, mas são incentivados pelo Governo. Eles respondem às três esferas de poder em níveis diferentes, mas são pagos pela União. “É um profissional do setor público do município, mas temos sempre demandas estaduais, principalmente na vigilância comunitária, e também as federais, como visitas e cadastros”, explica Rodrigo.
“É um profissional de cunho diferenciado, cuja principal atividade é dar qualidade de vida para as pessoas. Por estar no território, conhecer a situação das famílias e também a rede de saúde, o agente comunitário consegue encaminhá-las para os serviços de saúde da melhor forma possível.”
Desde março, quando começaram os primeiros casos de Covid-19 no Brasil, a rotina destes agentes de atenção primária mudou. Não só se viram impossibilitados de realizar o seu trabalho com a proximidade exigida, como também ficaram reféns da ausência de uma ação coordenada e de orientações federais muitas vezes em discordância com as ações nem sempre claras dos municípios.
“Posso resumir a situação em uma palavra: insegurança”, desabafa Vanda Vitoriano da Silva, ACS de Santo André (SP). “No começo foi bem confuso, porque nem sabíamos a dimensão da pandemia. Trabalhávamos sem máscaras e sem álcool em gel. Na unidade em que eu trabalho, houve casos de colaboradores que se contaminaram.”
Para compreender o impacto da pandemia nos ACS e outros profissionais de saúde pública, a pesquisadora do CEM (Centro de Estudos Metropolitanos) Gabriela Lotta e um time de pesquisadores de instituições brasileiras e internacionais realizaram a pesquisa A Pandemia de Covid-19 e os profissionais de saúde pública no Brasil.
“Em outras doenças como o zika vírus, tivemos estratégias coordenadas em que agentes entendiam sua função, papel e cumprimento. No Covid-19, não. O caso dos agentes comunitários de saúde durante a pandemia é uma metonímia do desastre de saúde no Brasil. Tudo que podia ser feito não foi”, explica Lotta, que é também professora de gestão pública na Fundação Getúlio Vargas (FGV), uma das financiadoras da pesquisa.
Indecisão governamental e protocolos confusos
Em uma cidade pequena, onde o agente de saúde realiza “de tudo um pouco”, como opina Expedito, a pandemia impôs uma alteração radical na rotina dos profissionais. “A gente não parou, mas não adentrava e até hoje não entra mais na casa das pessoas. Deixamos de acompanhar o peso das crianças, ficar próximo do idoso hipertenso”, revela o agente, que também contraiu o coronavírus.
Na coleta de dados sobre a situação dos ACS, o que fica mais evidente para Gabriela é que a inércia de diversas camadas do governo – sucessivas trocas e ausência atual de um Ministro de Saúde, a reabertura precoce em cidades com curva ascendente do vírus e confusão de diretrizes sobre o que os agentes comunitários de saúde deveriam fazer – foi muito prejudicial nos primeiros meses de pandemia.
“A série de indecisões e decisões muito equivocadas do Ministério de Saúde criou um cenário crítico e quase trágico de trabalho. Caberia ao governo regular o que seria a nova possibilidade de trabalho para esses agentes, como essa força vai ser usada no enfrentamento da pandemia e como será o trabalho para o acompanhamento dos grupos prioritários, que precisa acontecer.”
Como o Ministério demorou a elaborar um protocolo, coube aos municípios e aos próprios agentes de saúde determinar as diretrizes para os agentes de atenção primária. “Estamos acostumados com questões sanitárias de bloqueio, como o zika, mas nada parecido com o que aconteceu. Até abril não havia um protocolo claro e cada município fez o que pôde, o que gerou contaminação”, relata Rodrigo.
A ausência de orientação do governo federal e o pouco diálogo com osmunicípios acentua a desigualdade em um país caracterizado pela diversidade. Na pesquisa, profissionais de saúde do Centro-oeste e Sudeste relatam se sentirem mais preparados e amparados para enfrentar a pandemia do que outras regiões.
“Essa falta de coordenação acabou gerando efeitos perversos no território porque o prefeito faz o que pode e o que sabe fazer. Enquanto alguns municípios decidiram fechar as UBS (Unidade Básica de Saúde) e mandar todos os agentes para casa ou dar férias coletivas, outras prefeituras usaram os agentes comunitários para fazer telemonitoramento; outras para acompanhar filas de recebimento de auxílio emergencial nos bancos, e alguns até obrigaram os agentes a fazer visitas sem o equipamento de proteção necessária”, explana Lotta.
O que poderia ter sido feito
A pesquisa do CEM mostra que as consequências de uma falta de direcionamento efetivo têm um custo alto na saúde e no cotidiano desse profissional essencial. “87% dos profissionais estão com questões de saúde mental, o que mostra que tem uma carga emocional muito forte nessa pandemia. Os agentes e outros profissionais de saúde também relatam hostilização por parte da população. Como o ACS está rodando na comunidade, ele representa a política de saúde que eles não concordam ou que desconfiam.”
Lotta afirma que os dados revelam um subaproveitamento da força de trabalho dos agentes comunitários de saúde no combate da pandemia: “Os agentes comunitários de saúde (ACS) são capilarizados. Conhecem as pessoas, têm a dimensão física do acesso e a dimensão comunicacional, porque conseguem traduzir em linguagem simples questões de saúde. Por exemplo, eles poderiam ser a força de rastreamento sem contato de pessoas doentes: descobre a pessoa doente, onde ela passou, liga para cada uma das pessoas com quem ela teve contato e orienta a quarentena, além de acompanhar as condições de saúde da pessoa. Esse é um típico trabalho do agente baseado nas relações pessoais que existem no território”, conclui Lotta.